“O apego é parte fundamental da nossa cultura”
A luta de mães Terena para que as crianças iniciem os estudos dentro da própria comunidade
Poucos minutos de caminhada separam as casas das crianças até a escola da comunidade indígena Córrego Seco, em Aquidauana, interior de Mato Grosso do Sul. Ir e voltar a pé para a escola todos os dias pode ser algo corriqueiro para não indígenas, mas para o povo Terena o trajeto é parte importante do aprendizado das crianças durante a primeira infância.
“Quando nossos filhos começam a vida escolar os ensinamos a irem sozinhos para que adquiram autonomia, independência, segurança e percepção do ambiente natural. Nós os acompanhamos, no início, até que se sintam tranquilos para percorrer esse caminho. Seguimos olhando até a chegada na escolinha”, explica Patrícia Amorim ao caminharmos entre sua casa e a escola. O mesmo trajeto que ela percorreu quando criança está na memória de suas duas filhas mais velhas e é por onde passa, hoje, a caçula da família, para estudar a 3ª série do ensino fundamental.
Escolinha é a forma carinhosa que todos na aldeia chamam o espaço de três cômodos – formado por uma sala de aula, um banheiro, cozinha e pátio – construído pela comunidade no fim da década de 1970 para ser um ambiente onde as crianças iniciariam a educação infantil junto à cultura Terena.
A estrutura de barrote coberta por palha se transformou em Núcleo Escolar Indígena Córrego Seco a partir de 1988, quando o município de Aquidauana e o Conselho da Aldeia Indígena Córrego Seco concordaram que as crianças indígenas estudassem na comunidade até a 4ª série do ensino fundamental, com a escolinha incluída na rede municipal de educação como uma extensão da Escola Municipal Indígena Lutuma Dias, localizada na comunidade vizinha, Limão Verde, para onde os estudantes iriam a partir da 5ª série. Essa configuração só aconteceu por causa da mobilização das mães da aldeia.
“A intenção da prefeitura, independente da gestão, sempre foi nos convencer a mandar nossos filhos ainda pequenos para a escola da outra aldeia. Contudo, nós nunca abrimos mão de manter a nossa escola como referência às nossas crianças, porque entendemos que o aprendizado nesse período da vida é formado pela proximidade entre escola, casa e comunidade. É cultural, como enxergamos o mundo, e tem de ser repassado quando ainda são crianças”, pontua Patrícia, ao se recordar das inúmeras reuniões entre aldeia e representantes da educação do município.
A escola na sala da igreja
A mudança na organização da escola indígena, na época, fez do município de Aquidauana responsável pela estrutura do local, com a disponibilização de professores, merenda, uniforme, material didático, limpeza, dentre outros compromissos administrativos, como é realizado em qualquer outra escola.
A quantidade total de crianças na aldeia dificilmente ultrapassava 40 e, por isso, foi adotado o ensino de classes multisseriadas. Bastante comum no Brasil em áreas com baixa densidade populacional, esse modelo estrutura-se entorno de um único profissional, que trabalha com alunos de faixas etárias e séries diferentes em um mesmo tempo e espaço.
Dois professores indígenas regentes com auxiliares foram contratados para o Núcleo Escolar da aldeia. Isso permitiu uma divisão de turmas em que, no período matutino, um professor ficava com alunos da 1ª e 2ª séries; à tarde, outra professora oferecia o ensino às crianças da 3ª e 4ª, todos do ensino fundamental. Houve períodos em que apenas um professor regente era contratado e, assim, ficava responsável pelos dois turnos. Apesar de ter sido difícil, as turmas estavam mais organizadas se comparado ao que encontramos nos dias de hoje na Aldeia Córrego Seco: 38 crianças, de 4 a 16 anos, apertadas em uma sala emprestada pela Igreja da comunidade.
É sexta-feira, 11 de agosto, e um professor à frente de todos os alunos tenta ensinar com um quadro pequeno pendurado na parede. Dois ventiladores buscam amenizar o calor e uma cartolina pendurada quer lembrar uma sala de aula.
No início do ano letivo de 2023, a prefeitura desligou a professora regente e passou a mantê-la apenas como auxiliar porque há entre os estudantes uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outra com diagnóstico em andamento. O único professor contratado pelo município para este ano é Sérgio Gonçalves, e a sua carga horária remunerada é somente para um período. Outros professores ministram aulas durante a semana, com todas as crianças na mesma sala.
Sérgio relata o quanto as dificuldades educacionais aumentaram nos últimos anos, e como a esperança de melhorias – a ampliação do espaço e valorização da cultura indígena – nunca se tornou realidade. “É como se quisessem nos obrigar, por meio de todo esse descaso, a fechar nossa escola e as crianças fossem, desde a primeira infância, estudar na outra aldeia. A quantidade de alunos que temos é reflexo da nossa própria comunidade, sempre fomos uma aldeia pequena, se comparada às demais. O que não significa que as necessidades educacionais das nossas crianças indígenas devam ser negligenciadas ou que a forma de educarmos tenha de ser apagada”, avalia o professor.
A prefeitura ficou responsável, ainda, pelo transporte escolar dos estudantes até a escola da outra aldeia, quando elas passam para a 5ª série. Aqui há, também, antigos registros de dificuldades enfrentadas pelas crianças e suas famílias. “Esse atendimento sempre foi precário, com ônibus velho e constantemente em manutenção. Quantas crianças já tiveram de voltar a pé porque iam para aula, mas não tinham transporte para retornar para casa? São seis quilômetros, não é pouca coisa para uma criança de cinco, seis anos ter de andar. Quantas vezes não ficaram sem ir à escola? O poder público, na verdade, nunca melhorou muita coisa para nós. Sempre foi insuficiente”, desabafa o único professor regente em 2023 na comunidade.
As aulas acontecem no cômodo da igreja por causa da reforma da escola, que está sendo realizada após muitos pedidos registrados pela comunidade na prefeitura. “Isso não é normal. Estamos vivendo um multisseriado de Pré 1, Pré 2, 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries juntos, em que todos os alunos estão sendo prejudicados, tanto os pequenos quanto os maiores, e nós professores também. Fazemos o possível pela nossa comunidade, no entanto, estamos muito cansados. Não é justo o que estão fazendo com a gente”, diz.
Após procurarem a Secretaria de Educação de Aquidauana diversas vezes pedindo melhorias, os membros do Conselho da Aldeia foram informados que a outra turma de alunos foi desativada porque não houve matrículas o suficiente para 2023. Porém, o conselho registrou, algumas semanas após o período de matrículas, um aumento da procura por vagas na comunidade já no segundo bimestre. “Nos responderam que no segundo semestre o problema seria resolvido com a contratação de mais professores, até porque não existe falta de professor indígena. Nossa comunidade tem oferta de professores habilitados para assumir novas turmas. Mas nada mudou”, pontua Patrícia, representando as mães da comunidade.
O apego como parte da educação indígena
O Censo Escolar de 2019 é o que traz informações mais recentes e detalhadas sobre educação multisseriada. Conforme o estudo, houve o registro de mais de 80 mil turmas nesse modelo de ensino em todo país. A discussão sobre essa forma de ensino é complexa, sobretudo pelo fato de as turmas multisseriadas não serem avaliadas pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Para o caso da Aldeia Córrego Seco, o que podemos constatar é que, embora a forma de educar as crianças já fosse precária por conta da negligência do município, a divisão mínima das turmas somada à participação ativa da comunidade – chamada de “apego” pelas mães indígenas – resultaram às famílias da comunidade Córrego Seco profissionais indígenas renomadas em Mato Grosso do Sul. “Essa escola é uma grande conquista para nós, nossa história e cultura. Convivendo nesse período da infância com a gente e estudando dentro da comunidade, com os dois professores que tínhamos anteriormente mais os auxiliares, nossas crianças sempre aprenderam bem”, destaca Patrícia, técnica de enfermagem responsável da aldeia, que também estudou na comunidade.
Esposa do cacique, ela relaciona os êxitos educacionais dos estudantes da aldeia ao comportamento do apego desenvolvido pelas mães da comunidade. “A nossa educação é trabalhada em momentos distintos dentro da aldeia, então mandar nossas crianças para estudar em outra comunidade ainda com 4, 5, 6 anos de idade não é algo simples, ou que não queremos porque somos desesperadas, ignorantes. Mas porque temos nossa própria forma de ensinar e organizar a nossa educação, que é com apego”, sorri ao finalizar.
Dentre os exemplos, está Alessandra, a professora que era regente e hoje é auxiliar, que pertence à aldeia. Ela foi aluna da escolinha, se formou em pedagogia e retornou à comunidade para dar aula. Outra referência é Priscila Caetano, primeira acadêmica indígena a conseguir se formar em Direito pela Universidade Federal de MS (UFMS), curso fundado em 22 de dezembro de 1995. “Tenho as melhores lembranças da minha iniciação escolar dentro da minha comunidade, junto à minha família, na nossa escolinha. Ali aprendi a ler, escrever, a partilhar, o sentido do que é viver em comunidade, aprendi sobre a fala, a linguagem e o silêncio do nosso povo”, descreve a líder do Movimento Estudantil Indígena da UFMS.
A jovem indígena, que ingressou no mestrado em Direitos Humanos da mesma universidade, é referência em todas as aldeias de Mato Grosso do Sul por dedicar parte da sua vida a eventos e encontros com jovens indígenas de todas as etnias para falar sobre a universidade, formas de acesso, dificuldades, possibilidades e como fazer dar certo. “A nossa história tem como base a oralidade, quase não há registros escritos, e por isso os nossos anciões são tão importantes, porque nos contam a história e, assim, perpetuamos a nossa cultura. E em qual momento aprendemos isso? Ainda pequenos e dentro da nossa comunidade, no convívio com a escolinha e os parentes. Um período da nossa vida em que somos preparados a ficar longe da família, a nos distanciarmos, até termos uma idade de 10 anos para ficarmos mais tempo longe. É uma fase em que as mães indígenas são muito próximas da escola, são presença permanentes, participam ativamente”, enfatiza a liderança indígena.
Priscila também é assessora jurídica do Conselho do Povo Terena. “Se as crianças passarem a ir para outra aldeia ainda na primeira infância, como as mães fariam isso? Como é para uma mãe mandar para outra comunidade uma criança de 5 anos em um ônibus que não oferece segurança? Eu já andei diversas vezes por 4, 6 quilômetros a pé porque não tinha ônibus. Nenhuma mãe e nenhuma criança merecem passar por isso, isso não é educação”, declara a liderança indígena.
Direito à educação sem previsão
A educação dentro das aldeias indígenas no Brasil é marcada por lutas históricas e tem como uma das maiores conquistas as garantias trazidas pela Constituição de 1988, como o direito dos povos indígenas aos seus bens materiais e imateriais. Com destaque para a autonomia nas práticas de aprendizagem, uso das línguas e culturas tradicionais. A Constituição Federal foi fortalecida, em 1996, pela Lei n.º 9.394 20 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que garantiu, nos artigos 78 e 79, competências e ações de pesquisa e ensino com a proposta de viabilizar uma Educação Escolar aos indígenas, “de caráter específico, diferenciado, intercultural e bilíngue.”
Infelizmente, não é o que presenciamos hoje na comunidade Córrego Seco, onde Sérgio improvisa uma pequena aula de desenho para as crianças menores na varanda para conseguir passar algum conteúdo aos estudantes maiores. Após a pandemia, com as aulas presenciais suspensas e o baixíssimo acesso das famílias às aulas via internet, mais da metade dos alunos estão com o aprendizado de leitura e escrita comprometidos.
Com apoio da comunidade, Sérgio consegue recursos para ir toda semana até o centro de Aquidauana fazer impressão de materiais, em preto e branco, na lan house da praça. “Não tenho notebook, a escola não tem biblioteca, nunca nos oferecem internet, nem disponibilizam xerox. Fiz uma conta no ciber para pagar as cópias na data do meu pagamento. É tudo do meu bolso e dos pais das crianças”, relata o professor indígena.
Dados do Censo 2022, divulgados em agosto deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que Mato Grosso do Sul ocupa a terceira posição no ranking nacional de estados com maior população indígena. O mesmo levantamento destaca Aquidauana entre as cinco cidades que mais concentram pessoas indígenas, sendo capital Campo Grande com 18.439; seguida de Dourados, com 12.054; Amambai, que registra 9.988; Aquidauana, com 9.428; e Miranda, 8.866 pessoas.
Nos despedimos da comunidade com a imagem dos pedreiros destruindo o grafismo Terena das paredes externas da escola tão sagrada para as mães indígenas, produzido em 2008 por um artista indígena. A informação recebida é que a arte será substituída pelas cores azul e branco, da prefeitura municipal. “É assim que eles apagam a nossa cultura”, fala baixinho Patrícia.
A Secretaria de Educação de Aquidauana não retornou aos pedidos da reportagem.