O arcaico e o novo na Amazônia
Com 17% da floresta consumidos, chegamos a uma situação limite. O governo precisa escolher entre liderar uma transição para novos parâmetros de desenvolvimento global ou continuar sendo fiador do passado, garantindo sobrevida a uma concepção baseada na superexploração dos ativos sociais e ambientais para usufruto de poucos
Vários estudos recentes têm exposto diferentes facetas do modelo econômico arcaico e predatório ainda predominante na Amazônia brasileira. Em que pesem os esforços realizados pelos governos federal, estaduais e municipais e pela sociedade civil nos últimos anos – o que resultou em redução contínua nos índices de desmatamento desde 2005 –, o fato é que já foram consumidos 17% da floresta; e continuam em ação os mecanismos e práticas que destroem a biodiversidade, prejudicam os serviços ambientais1, geram conflitos sociais, empobrecem a cultura, marginalizam populações, contribuem para agravar o aquecimento global e comprometem a imagem do país.
A edição de junho da revista Science2 traz um estudo sobre o tema. Assinado por pesquisadores do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o artigo batiza esse modelo de “boom-colapso”, em alusão ao efeito gangorra que caracteriza a economia da região. Num período inicial, grandes ganhos financeiros para um pequeno grupo; depois, perdas e prejuízos para a sociedade em geral.
Os pesquisadores constataram que, em curto prazo, melhoram os indicadores socioeconômicos, a exemplo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Porém, os benefícios duram em torno de uma década e meia, esgotando-se quando acabam a exploração de madeira e a produtividade da pecuária. Então os municípios passam a apresentar índices de qualidade de vida parecidos com os do período anterior ao desflorestamento, com uma diferença fundamental: perderam a oportunidade de fazer uso adequado dos ativos naturais e de criar uma economia durável e com distribuição de renda mais equânime. Somado a isso, herdam solos degradados, desemprego, concentração fundiária, êxodo rural, miséria urbana e, é claro, o fim de suas florestas e dos recursos naturais de que antes dispunham.
Outros importantes trabalhos foram publicados por organizações não governamentais desde o ano passado, tendo causado impacto na opinião pública o relato das práticas deletérias de poderosos grupos empresariais e de seus negócios mundo afora.
Em outubro de 2008, a ONG Repórter Brasil relacionou as empresas sediadas em São Paulo que se beneficiam do avanço predatório da agropecuária e da atividade madeireira ilegal sobre a floresta, além de manterem relações comerciais com proprietários e investidores rurais que exploram o trabalho escravo. A divulgação do trabalho, intitulado “Conexões sustentáveis São Paulo–Amazônia: quem se beneficia com a destruição da Amazônia”3, resultou na assinatura de três pactos empresariais para controle das cadeias produtivas da madeira, da pecuária e da soja oriundas da Amazônia.
Já a organização Amigos da Terra – Amazônia Brasileira publicou, em abril do ano passado, o relatório “A hora da conta – Pecuária, Amazônia e conjuntura”4, onde mostra que a Amazônia se consolidou como importante região produtora de carne devido à instalação de megafrigoríficos financiados com recursos públicos subsidiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da ordem de R$ 6 bilhões em 2008 – um recorde histórico, do qual quase nada foi destinado ao aumento da produtividade e à recuperação de terras degradadas ou abandonadas. Mostra ainda que um dos fatores centrais para a viabilidade da pecuária nas principais regiões produtoras da Amazônia é a invasão e posse ilegal de terras públicas, acompanhada de desmatamento irregular.
No início deste mês, o Greenpeace Brasil divulgou, após três anos de estudo, o relatório “A farra do boi”5, revelando que a destruição da Amazônia se deve majoritariamente ao setor pecuário, responsável por um em cada oito hectares de florestas tropicais destruídos em âmbito global. Esse trabalho analisa os pesados investimentos governamentais no setor para consolidar a liderança do Brasil na exportação de carne bovina, dobrando sua participação para 2/3 do mercado até 2018. Lista também várias empresas nacionais e internacionais que se abastecem de produtos dessa cadeia produtiva ilegal e antiética. E acusa o BNDES de contribuir para a devastação ambiental, na medida em que financia os frigoríficos sem exigir contrapartidas ambientais.
A novidade do estudo do Greenpeace foi a parceria com o Ministério Público Federal, que no Pará move ações civis públicas contra os frigoríficos e redes de varejo citados no texto. A medida tem gerado diferentes reações: grandes varejistas, como Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar, suspenderam as compras dos frigoríficos envolvidos, exigindo dos fornecedores rastreabilidade e garantias socioambientais críveis para os produtos provenientes da Amazônia. Já as entidades ruralistas tentam desqualificar o estudo e intimidar seus autores com processos judiciais, em lugar de adotar técnicas produtivas sustentáveis que permitam ganho de produtividade, rastreabilidade e recuperação de áreas degradadas.
A despeito das evidências levantadas pelos estudos citados e de importantes resultados alcançados no âmbito do Programa de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, o pensamento e as forças que sustentam o modelo predatório continuam em plena forma, especialmente devido à postura equivocada de alguns setores do governo federal e do Congresso Nacional. Tendo em vista as urgências de nosso tempo, sintetizadas pela confluência entre o agravamento do aquecimento global e a situação dramática das populações pobres em todo o planeta, é muito preocupante a persistência em uma cartilha de desenvolvimento arcaico no Brasil, país-chave para a guinada necessária em direção a um modelo de base sustentável.
De ministérios que definem políticas vitais para a Amazônia vêm discursos e medidas que aumentam essa preocupação, ao convergirem para o desmonte da legislação ambiental e em defesa de facilidades econômicas para setores que especulam com terras na região, e se recusarem a assimilar métodos que evitem novos desmatamentos. Esses setores foram premiados recentemente com uma regularização fundiária que distribuiu mais de 60 milhões de hectares de terras públicas, boa parte delas para quem as invadiu e promoveu desmatamento em larga escala. Ou seja, autoridades responsáveis pelas políticas de desenvolvimento tratam as florestas como obstáculo e não como trunfo para a nova economia do século XXI.
A voz do povo
Tal postura, contudo, vem sendo confrontada pelos constantes alertas dados por respeitados formadores de opinião e pela própria sociedade. Em pesquisa6 realizada pelo Instituto DataFolha, em maio passado, 96% da população brasileira defendeu a legislação ambiental e deu um recado claro aos produtores rurais: quer respeito aos limites estabelecidos em lei para a proteção de florestas, rios, solos e biodiversidade. Não se aceita mais a justificativa de produção de alimentos à custa da destruição ambiental.
Chegamos, assim, a um limiar. O governo brasileiro precisa fazer uma escolha clara. Se deseja liderar uma transição que torne o país referência para a busca de novos parâmetros globais de desenvolvimento, ou se continuará sendo fiador do passado, garantindo sobrevida a uma concepção ultrapassada de mundo, baseada em privilégios e na superexploração dos ativos sociais e ambientais para usufruto de poucos, sem pesar as consequências.
A pesquisa Datafolha mostrou que os brasileiros querem emprego, renda, acesso a bens de consumo, mas não a qualquer custo. Querem também segurança ambiental, compromisso ético e visão de longo prazo para criar, hoje as condições para um salto civilizatório indeclinável.
Na Amazônia, esse dilema é colocado de várias maneiras. A exploração pecuária e madeireira irregular é apenas um dos aspectos. Outro, de igual importância, é a implementação de obras de infraestrutura. Todo o conhecimento acumulado sobre as fragilidades do bioma amazônico recomenda cuidados especiais nesses projetos, a começar pelo imprescindível processo de licenciamento ambiental, feito na forma e no tempo adequados. Diante disso, são inaceitáveis as manobras para evitar ou flexibilizar os procedimentos exigidos pela legislação, com o objetivo de acelerar a aprovação das obras, como se tenta, por exemplo, com a rodovia BR 319. A história ensina que, feitas à revelia de contingências ambientais, essas obras são indutoras de processos econômicos e sociais que podem redundar em verdadeiras catástrofes sociais, culturais, ecológicas e econômicas em toda a área de influência do empreendimento, em vez de gerar os benefícios esperados.
Vivemos no Brasil um momento crucial, que exige escolhas corajosas de mudança de rota e de padrões, para que seja possível prosperar. As alternativas já existem, têm forte base tecnológica, concepção política e institucional inovadora e setores de ponta dispostos a ultrapassar seus limites adotando-as. É um desafio que não é só nosso. Impõe-se a toda a comunidade planetária. Evidentemente, o país que detém um patrimônio de tantos significados como é a Amazônia tem uma missão diferenciada a cumprir.
Diria que é uma missão desbravadora, nos termos do século XXI. Se antes, na história da humanidade, desbravar significava dominar, subjugar e impor, hoje quer dizer ter a capacidade de reinventar a civilização, acrescentando-lhe o ambiente natural como parâmetro para a superação dos excessos e equívocos da sociedade de consumo, em uma perspectiva antecipatória da sociedade sustentável que queremos ver consolidada.
O Brasil é candidato natural a ser uma grande nação navegadora do futuro e não pode continuar preso às piores amarras de sua história, sem utilizar plenamente o que esta nos oferece como ferramenta libertadora: os excepcionais recursos naturais e a igualmente excepcional diversidade social e cultural. Ao longo das últimas décadas, essa opção já foi feita por contingentes crescentes nos espaços acadêmicos, comunitários, empresariais, de organizações da sociedade civil e em nichos de excelência do setor público. Dessa nova cultura têm emanado seguidas demonstrações de que dar o salto qualitativo é possível e viável. Falta-nos a opção decidida daqueles que têm muita força no processo decisório do país e na implementação de grandes políticas, especialmente governantes e setores empresariais de peso.
*Marina Silva é senadora da República (PT-AC) e foi ministra do Meio Ambiente (2003-2008).