O audiovisual no contexto das transformações nas políticas públicas
Sistema vigente de financiamento ao audiovisual encontra-se desestruturado por completo
Historicamente, é notória a relação que o cinema brasileiro mantém com o governo federal. O fomento à produção existe desde o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), através do Departamento do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), fundado em 1936. Em 1966, em plena ditadura militar, foi criado o Instituto Nacional de Cinema (INC), encarregado pelo financiamento das produções e distribuição. Em 1969, ele recebeu um apêndice via decreto n.862, que estabeleceu a criação da Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme. Com esta, a atividade cinematográfica assumiu papel central dentre as políticas públicas para a cultura, ligado ao projeto nacional-desenvolvimentista do regime militar.
Nos anos 1970, auge da atuação da empresa, foram produzidos em torno de cem filmes, entre eles grandes obras da cinematografia nacional, como São Bernardo (1972), de Leon Hirzman, e Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, que até 2010 foi o filme nacional recordista de público. Nos anos 1980, iniciou-se o declínio da Embrafilme. Entre os motivos, “a redução da capacidade de investimento do Estado diante da crise do petróleo; a dolarização das atividades cinematográficas no país; o progresso técnico do cinema norte-americano e sua maior agressividade na conquista de mercados na América Latina; a queda brusca de público com a difusão dos aparelhos de vídeocassete”, como aponta o site do Centro Técnico de Audiovisual (CTAV). Em julho de 1986 foi criada Lei nº 7.505 de incentivo à cultura no Brasil, a primeira deste caráter, a chamada Lei Sarney. Diante da crise econômica e administrativa do Estado, os filmes fomentados pela Embrafilme passaram a contar com complementação orçamentária por meio de recursos obtidos mediante renúncia fiscal, disputando verbas com outras artes.
Mas foi entre 1990 e 1992 que o Brasil viveu um dos períodos mais conturbados de sua história no que tange a política cultural. Na área cultural, o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) foi marcado pelo desmantelamento do sistema de fomento estatal em vigor. Episódio emblemático desse período foi o fechamento da Embrafilme, em ação integrada ao Programa Nacional de Desestatização (PND), o que praticamente paralisou as atividades do cinema brasileiro.
No governo de Itamar Franco (1992-1994) foi formatada no Congresso a Lei do Audiovisual (1993), garantindo ao menos a volta da produção. A legislação passou a permitir que o contribuinte “investisse” na produção de obras audiovisuais nacionais previamente aprovadas pelo Ministério da Cultura (MinC), utilizando recursos de renúncia fiscal. Concebida para vigorar por um período de dez anos, visando incentivar o mercado a investir no audiovisual para que posteriormente o segmento tivesse autonomia do incentivo, essa lei perdura até hoje e quase não há perspectivas de revogação ou reformulação.
Nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), os esforços foram então concentrados na estruturação da produção cinematográfica, com a ampliação gradual dos investimentos e do número de lançamentos nacionais, viabilizando um padrão que se convencionou chamar de “retomada”. Os resultados vieram a partir da intensificação da operação das leis de incentivo fiscal ao setor cinematográfico, consolidando um novo modelo das parcerias entre o público e o privado. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi criada nesse contexto, em 2001, pela Medida Provisória n° 2.228, visando pautar a regulação do setor. A mesma medida instituiu a cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), que passa a impactar a produção dos anos posteriores e cria as bases para a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, em 2006.
A produção de filmes foi retomada com financiamento indireto do Estado, mediante incentivo fiscal, com a distribuição privada também sendo incentivada e uma expansão da rede de salas de cinema, sendo de 1997 a inauguração do primeiro cinema multiplex no país. Entre 1995 e 2002 foi de R$ 253,9 milhões o total de recursos captados pelos longas-metragens brasileiros lançados nas salas de cinema, consideradas as leis Rouanet e do Audiovisual, sendo essa última responsável por 77% dos investimentos, conforme dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, da Ancine.
Nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), mantiveram-se as políticas de incentivo fiscal à produção cultural criadas no período anterior, tendo sido adotadas novas medidas. Com crescimento expressivo do montante de recursos investidos mediante o fomento indireto, somando mais de R$ 816 milhões – se considerados, além das leis Rouanet e do Audiovisual, os mecanismos dos artigos 39 e 41 da MP 2.228-1/2001 (isenção do Condecine e Funcines).
Concomitantemente, e não mais restrito ao setor audiovisual, desenvolve-se um esforço na ampliação do conceito de cultura, abrindo o foco para a noção de diversidade cultural, em franco diálogo com pauta global da Unesco e valorizando-a como ativo cultural e político. Com iniciativas de pouco investimento relativo, mas peso político significativo, o audiovisual na gestão petista foi visto também como uma área não limitada ao dito “cinemão”, pois além de contemplar grandes produtores, começou a integrar outros segmentos da sociedade, tais como cineclubes, coletivos e associações culturais, grupos jovens, movimentos sociais e festivais. Ao mesmo tempo, avançou a ideia de uma política fortemente ligada à inserção no mercado por meio do empreendedorismo de caráter sociocultural.
Mas o grande cinema também teve sua vez. Em 2006 foi aprovada e sancionada pelo ex-presidente Lula a lei no 11.437, criando o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que destina as receitas decorrentes da Condecine, paga pelos agentes econômicos do setor e que tem por obrigação ser reinvestida no desenvolvimento das atividades audiovisuais. A partir daqui, para além da política de fomento, passa-se a conceber uma política de investimento econômico voltada para o retorno financeiro. A participação dos recursos do FSA no total captado pelas obras brasileiras foi ampliado largamente ao longo da década de 2010, chegando a 46,3% em 2018, ano em que atingiu o valor de R$ 122,02 milhões pelo mecanismo. Nesse ano foi verificada a captação/contratação de R$ 263,8 milhões nos filmes lançados, valor superior ao captado/contratado ao longo dos oito anos do mandato de FHC (sendo importante ressaltar que os resultados das políticas, sobretudo no campo do audiovisual, podem ter seus impactos mensurados após anos, considerando o tempo entre o desenvolvimento dos projetos e o seu lançamento).
Ainda em 2006, Manoel Rangel foi nomeado diretor-presidente da Ancine, que teve atuação destacada na criação da lei no 12.485 em 2011, a chamada lei da TV paga, que ampliou as obras brasileiras nos canais por assinatura, sancionada já pela presidenta Dilma Rousseff (2010-2016). Na gestão de Rangel, a Ancine foi um órgão muito forte, tendo um orçamento robusto e expandindo as atividades do audiovisual, tais como a digitalização do parque exibidor, a ampliação das salas de cinema, a presença brasileira em eventos internacionais, além de editais e fomento via FSA.
Os indicadores referentes ao mercado de audiovisual no Brasil em 2018 apontaram uma taxa de crescimento de 8,8%, gerando mais de 300 mil empregos, movimentando em torno de R$ 26 bilhões (0,46% do PIB), uma marca considerável e que supera outros setores industriais como os de papel e celulose e de eletrônicos. No mesmo ano, foram lançados 185 filmes, desde histórias sobre famílias, relacionamentos, violência urbana, música, temática LGBT+, religião e meio ambiente, entre outros, mostrando a pluralidade de abordagem no cinema brasileiro nos últimos anos.
Retrocessos, rupturas, boicote e paralisação
A partir da gestão de Michel Temer (2016-2018), contudo, começa a hecatombe da Ancine, principal fomentadora do setor no Brasil. O órgão passou por inúmeras investigações conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou irregularidades e falta de transparência na agência, questionando o sistema de prestação de contas vigente desde de a implantação dos programas de financiamento. Essa situação levou a um bloqueio burocrático do órgão em 2018, manifestado pelo TCU, paralisando o fomento da agência. Cerca de 780 projetos aprovados entre 2016 e 2018 ainda não foram contratados. Entre 2008 e 2016, o FSA distribuiu em torno de R$ 1 bilhão para 1.500 projetos. Centenas dos filmes e séries foram concluídos, mas a maioria não teve a prestação de contas analisada, gerando uma instabilidade institucional na Ancine que dura até o fechamento deste texto.
Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito e a situação que já era drástica ficou sem saídas. Ao assumir a presidência, em 2019, foi determinado o fim do MinC, e, junto ao impulso pela censura cultural, o governo foi eficaz em manter os órgãos responsáveis pela cultura em grande instabilidade, asfixiados e sem expectativas de mudanças positivas. O governo, de quase nenhum diálogo com o setor, não sinaliza novas medidas nem interesse em conter a grave crise. Os novos filmes produzidos no Brasil, em geral, foram feitos por editais dos governos estaduais e municipais, que também sofreram com paralisações ou reduções orçamentárias nos últimos anos. Neste ano em que completa duas décadas, a Ancine não avançou em áreas estratégicas para aprimorar o setor, tais como fomentar o segmento do Video on Demand (VoD), fomentar a indústria de games, o cinema popular, entre outros; o órgão foi ficando cada vez mais hipertrofiado.
Com cinco sucessivas trocas de comando na Secretaria Especial da Cultura, é em 2021 que o governo efetivamente passa a operar medidas para o bloqueio da homologação de projetos da Lei Rouanet, atingindo o mecanismo que garantia algum respiro ao setor. A redução progressiva da captação de recursos a partir desse instrumento deve atingir patamares ainda mais alarmantes, considerando seu impacto para além do ano vigente.
A resposta neoliberal à política de Estado-produtor da Embrafilme desmantelou a estrutura existente que se consolidava como a base de um cinema nacional forte, mas que nunca conseguiu sua autonomia como indústria. Inicialmente concebidas dentro de uma política de transferência da responsabilidade da produção cultural para o mercado, as políticas de incentivo fiscal são hoje mecanismos de injeção de recursos públicos num mercado que não opera por si mesmo, que também não gerou o cinema como indústria.
A política cultural da diversidade, realizada durante quase quinze anos no governo federal nas gestões petistas, ocupou peso importante junto ao financiamento à cultura de mercado, sendo uma política “permitida” na medida em que não afetou o sistema da economia cultural dominante. Mas é possível questionar se o atual fenômeno de demonização da Lei Rouanet, disseminada por setores autoritários e conservadores que ganharam expressão com a eleição de Bolsonaro, deriva em parte de reação à política da diversidade cultural de uma maneira mais ampla.
É ainda difícil metrificar a real proporção dos impactos da paralisação das políticas públicas de fomento ao setor audiovisual e à produção cultural de uma maneira geral, sobretudo na vigência de um governo que não presa pela transparência, e mais ainda em um setor em que os produtos demoram anos para serem lançados. A pandemia de Covid-19 garantiu abalo adicional e ainda não é possível vislumbrar um cenário positivo frente à paralisia do governo. A Lei Aldir Blanc, apresentada pelo Congresso Nacional e que dispôs sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural, resultando em ação de apoio à cultura de volume e capilaridade inédita, garantiu algum respiro em 2020 que deve se estender por 2021. Mas o sistema vigente de financiamento ao audiovisual encontra-se desestruturado por completo. A cultura está diretamente implicada numa economia cultural e, portanto, inscrita nas forças em luta que disputam concepções e projetos de desenvolvimento. No caso do governo federal atual, somente é possível identificar retrocessos, rupturas, boicote e paralisação.
Wilq Vicente é pesquisador de audiovisual popular, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e mestre em Estudos Culturais (USP). É organizador do livro Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais (2014).