O bestiário do Cristo
Sem a desconfiança dos primeiros homens da Igreja, ciosos em preservar o dogma cristão contra aquilo que identificavam como um vestígio das idolatrias pagãs, Charbonneau-Lassay vai buscar não só a interpretação religiosa, mas as numerosas fontes pagãs e o modo como os primeiros cristãos se apropriaram de antigos emblemas locais: a águia, o golfinho, a fênix, o íbis no Egito, o leão em RomaPablo Simpson
Louis-Charles-Joseph Charbonneau-Lassay nasceu em Loudun, França, em 1871. Noviciado da Congregação dos Irmãos de Santo Gabriel, foi professor em Poitiers e Moncoutant até a promulgação da lei de 1901 sobre o direito às associações, quando se tornou laico. Arqueólogo, colecionador de objetos do período galo-romano e da Idade Média, e de imagens que copiava habilmente gravando-as sobre madeira, certo dia, relata-nos um de seus biógrafos, visitou o gabinete do arcebispo de Paris, o cardeal Dubois. No meio de uma conversa sobre Leão XIII e o emblema de um coração transpassado como símbolo da salvação, ambos teriam constatado que tal simbolismo “era coisa muito pouco conhecida nos dias de hoje”.
Nos trinta anos seguintes, incapacitado de manter atividades de ensino devido a uma laringite crônica, Charbonneau-Lassay se dedicou a uma tarefa improvável: pesquisar toda a simbólica do Cristo, desde os tempos primitivos até a Idade Média, através da representação de animais, de pedras, de flores, de plantas – bestiarium, lapidarium, florarium, vulnerarium. “Missão apostólica de minha vida”, como confessaria a Pierre Delaroche, divulgar a linguagem simbólica das imagens como parte essencial da tradição cristã. Desse projeto, precocemente interrompido com sua morte, restou apenas a primeira parte, publicada em 1940 e quase inteiramente destruída num bombardeio alemão à gráfica belga onde acabara de ser impressa, arruinando a composição tipográfica e as matrizes das gravuras em madeira.
O bestiário do Cristo, a misteriosa emblemática de Jesus Cristo, reeditado em 2006, pela Editora Albin Michel, em edição fac-similar, reúne 1157 imagens feitas pelo próprio Charbonneau-Lassay – cópias de iluminuras, insignes heráldicas, símbolos geométricos, emblemas de animais, peças arqueológicas, capitéis e pórticos de igreja – acompanhadas por sua interpretação simbólica e religiosa, na medida em que conduziriam ao Cristo (in quantum ducunt ad Christum, segundo Tomás de Aquino). São artigos de extensão variada, organizados sob a forma de um grande dicionário. Leões, touros, cavalos, pombas, cervos, salamandras, todos analisados a partir de sete fontes documentais: as religiões pré-cristãs, os livros sagrados, os livros de naturalistas – Aristóteles e Plínio [1] -, as doutrinas gnósticas, os estudos e bestiários medievais, relatos de viagens como os de Marco Polo, e o folclore. A elas se poderiam somar outras fontes: as fábulas de Esopo com seus bichos e concepções morais, influentes na Idade Média como atestam os afrescos do monastério de Fleury em Saint-Benoît-sur-Loire, na França; ou trechos de Platão, com seu animal monstruoso, representando as paixões e o domínio irracional da alma humana, com esta, por vezes, atrelada a dois cavalos, um dócil, outro arisco [2].
Simbolismo, emblemática
Em O bestiário do Cristo, Charbonneau-Lassay se coloca na trajetória do pensamento medieval, para o qual o mundo material e o mundo espiritual são obra de um mesmo Deus. Como para Isidoro de Sevilla (570-636), os animais não teriam autonomia com relação ao homem, mas um sentido que lhes foi atribuído e que deve ser interpretado: o branco da pomba, o negro de um corvo, a crueldade do lobo, a lubricidade da serpente. Para Raban Maur (776-856), em De rerum naturis, eles possuem uma mensagem de caráter moral, teológico ou espiritual que ultrapassa “o quadro estreito da vida cotidiana” [3].
Sem a desconfiança dos primeiros homens da Igreja, ciosos em preservar o dogma cristão contra aquilo que identificavam como um vestígio das idolatrias pagãs – o Concílio de Clichy (626-627) condenaria comer animais imolados aos ídolos – Charbonneau-Lassay vai buscar, portanto, não só a interpretação religiosa, mas as numerosas fontes pagãs e o modo como os primeiros cristãos se apropriaram de antigos emblemas locais: a águia, o golfinho, a fênix, o íbis no Egito, o leão em Roma. No caso deste último, observa a sua representação no culto egípcio da deusa Sekhet ou o seu caráter sagrado no culto de Mithra na Pérsia, com sua festa particular: as “Leônticas”. Ele se tornaria mais tarde alegoria da justiça, por atacar sua presa no intuito, supostamente, de apenas se alimentar. Na Idade Média, a partir também da descrição do trono do rei Salomão, será esculpido na entrada de algumas igrejas romanas.
Mas a interpretação não se interrompe aí. A maior parte dos animais do Bestiário representaria igualmente “o Cristo Jesus enquanto princípio de toda a vida, redentor e restaurador do Bem contra os poderes do mal”. Assim, o leão será emblema de sua vigilância, representado com olhos bem abertos no deserto; ou do verbo divino (rugido e poder da palavra do Cristo); ou dos amores humano e eucarístico; ou das provações da vida, a partir do episódio de Davi; ou da morte do Cristo, desta vez inspirado num episódio bíblico em que Sansão mata um leão e, pouco depois, encontra-o tomado por um enxame de abelhas. Por fim, será emblema também da ressurreição do Cristo, como demonstra uma representação recorrente no século 13, detalhe de um vitral da catedral de Le Mans na França e trecho de um poema do Bestiaire divin de Guillaume de Normandie: neles um leão desperta seu filhote com um sopro e uma lambida depois de três dias de nascido, “Iusque li pere, au tierz iior/ Le souffle et leche par amor”, “Até que o pai, no terceiro dia/ O sopra e o lambe por amor”.
Mas o leão, assim como o touro, a serpente, o centauro, o dragão e tantos outros, será também o emblema de Satã, dos vícios, da heresia. Para o apóstolo Pedro: “o diabo, como um leão que ruge, quer devorá-los”. O Bestiário de Charbonneau-Lassay, com sua erudição e um aparato de notas impressionante, atento igualmente aos estudos de arte religiosa medieval de Émile Mâle, recobre sentidos contíguos, contraditórios. Mesmo diante de uma única imagem, observa a sua estrutura compósita, a variedade de fontes que vão se acumulando por trás da economia expressiva. Em vários momentos, elas guardariam um mistério que as narrativas religiosas, folclóricas e as fontes documentais relutam em desvendar.
Surrealismo e novos bestiários
Charbonneau-Lassay se preocupou com a leitura contemporânea de todos esses emblemas. Artistas excelentes ou escritores, “e não dos piores”, teriam utilizado essas imagens sem conhecer “os verdadeiros significados de que foram dotadas pelo pensamento cristão de antigos séculos”.
Os animais estão por todos os lados na poesia surrealista. São faisões, corvos, grilos, estrelas-do-mar em André Breton, pássaros e insetos voadores em Louis Aragon, touros em Michel Leiris, animais de montaria e rebanho em René Char. Não raro, aliam-se à descoberta do inconsciente e à sua exploração pela poesia. Residem, tanto mais, numa espécie de primazia poética conferida à imagem. Os autores surrealistas vão buscá-las nos minotauros de Pablo Picasso, nos animais disformes ou pouco identificáveis de Max Ernst, como o gigante Célèbes. Em sentido inverso, Salvador Dali ilustraria a saga monstruosa dos Cantos de Maldoror de Lautréamont. Para Claude Maillard-Chary, há uma variedade de representações que não exclui a presença de micro-organismos infecciosos, animais investidos de poderes hipnóticos, seres extraordinários [4]. Mas há também referências religiosas. Gustave Apollinaire em seu Bestiaire, belamente ilustrado por Raoul Dufy e anterior ao período surrealista, traria poemas não muito distantes do universo de Jorge de Lima de Invenção de Orfeu, capazes de relacionar a mitologia e o Cristo. No estranho posfácio, afirma: “Orfeu inventou todas as ciências, todas as artes. Fundado na magia, conheceu o futuro e predisse cristianamente a vinda do Salvador”. Noutros momentos, imagens inusitadas auxiliam na retomada de um dos símbolos cristãos mais tradicionais.
Que teu coração seja a isca e o céu, a piscina!
Pois, pescador, qual peixe de água doce ou bem marinha
Iguala, tanto na forma, tanto no sabor,
O bom peixe divino que é Jesus, Meu Salvador?
A preocupação de Charbonneau-Lassay, entretanto, na maior parte dos casos, é justificada. Menos por desconhecimento (talvez também por ele), mas por um desejo de buscar outras formas do que é vivo, do primitivo e mitológico, dos fantasmas interiores e oníricos, de um mundo moderno técnico e animalesco. Quando surge uma referência ao culto cristão, como no Bestiaire de Jean Giono, escrito no final dos anos 1950, e com seu misto de discurso científico e falsificação, ela desfaz, portanto, os laços mais previsíveis dos bestiários antigos e há mesmo, em seus dezenove textos curtos, o flagrante de uma comédia social rebaixada, mas não menos sugestiva.
Eu entro numa igreja (é mais uma capela). Está lotada; não do tipo de gente que normalmente se vê nesses lugares, mas daquele tipo dos bistrôs: caras, espertezas, bondades, narizes em forma de tomate ou em fio de ferro, bigodes e aquele orgulho canalha que flutua nos lábios dos que apenas sobrevoam o cardápio. Algumas mulheres: conto três, quatro, cinco, seis no total, não sete, olhei direito, só seis, dispersas, em cabelos, em lenços. Tentei classificá-las: trinta, quarenta-e-cinco, sessenta anos, duas bem jovens, mesmo assim mulheres se julgo pelos olhos e pela vivacidade dos olhares. Representam o quê na minha vida? É mais difícil dizer: vejo apenas as cabeças e ainda, no caso de cinco delas, de três quartos, a sexta, só vejo a nuca. Imagino que elas são… por que me interessam essas mulheres, se o que há de mais extraordinário nessa assembléia é um cavalo? [5]
* * *
As histórias sobre as organizações místicas misteriosas na Idade Média, ou sobre a sua permanência nos dias de hoje, guardam sempre alguma curiosidade. Conta-se que em algumas delas se praticava um tipo de “alquimia interior” através da qual se liberariam energias sexuais do homem e da mulher para fins mágicos. Estoile Internelle e a Fraternidade dos Cavaleiros do Divino Paracleto são apenas duas delas, cuja documentação remonta ao século 15. Louis Charbonneau-Lassay, que escreveu sobre a primeira, co