O bom viver para todos - Le Monde Diplomatique

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

O bom viver para todos

por Matheus Otterloo
4 de janeiro de 2009
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A decisão de sediar o encontro em Belém resulta da compreensão sobre o valor estratégico da Amazônia para o futuro da humanidade. O desejo de todos que estão engajados na construção de um mundo diferente é o de escutar os povos originários do mundo, secularmente oprimidos, explorados e marginalizados

De 27 de janeiro a 1º de fevereiro de 2009, o Pará acolherá, em nome de todos os países que pertencem à Amazônia, o IX Fórum Social Mundial (FSM). A escolha de Belém como sede foi tomada pelo Conselho Internacional do FSM após a realização da VIII edição do encontro, em Nairóbi, no Quênia.

As consultas às organizações da sociedade civil na Amazônia brasileira foram determinantes para a decisão de dar ênfase à região pan-amazônica, compreendendo seu valor estratégico em termos de biodiversidade conservada.

A área pan-amazônica engloba Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Peru, República Federativa da Guiana, Suriname e Venezuela. Tem em seu território a floresta tropical com maior biodiversidade do mundo e é considerada essencial na dinâmica mundial de preservação do planeta.

O FSM 2009 acontece no contexto de uma crise mundial que tem vários aspectos, sejam energéticos e ambientais, sejam econômicos, culturais e políticos.

Aparentemente, esse colapso anunciado representa a confirmação das inúmeras denúncias e reivindicações não atendidas, formuladas no decorrer dos oito encontros globais do FSM – e, nos seus intervalos, em tantos outros lugares no mundo: se a humanidade continuar do jeito que está, a vida no planeta terra será inviável. Por isso, e com mais insistência do que em qualquer momento anterior, estamos sendo chamados a lutar por um mundo diferente. Mais do que nunca consideramos que está na hora de uma mudança de rumo.

Os povos da floresta pan-amazônica, articulados em centenas de organizações da sociedade civil – como fóruns, associações, sindicatos,conselhos, etnias –, conscientemente aceitaram o convite e o desafio de hospedar este evento mundial.

Consideram que esta opção evidencia não somente o reconhecimento da importância vital dos recursos naturais ainda existentes neste pedaço do planeta que, aliás, estão duramente ameaçados; mas também pode valorizar e potenciar a incrível capacidade de mobilização social, de resistência secular à dominação, à exploração e destruição dos seus recursos naturais, das suas culturas e da sua qualidade de vida. Significará também uma oportunidade de dar visibilidade às alternativas para uma vida com mais qualidade que já estão em andamento na floresta, e as propostas para outro modo de viver, o bom viver para todos e todas.

A partir do momento que essa decisão foi tomada e aceita pelo conjunto das organizações da Amazônia diretamente envolvidas, deixamos claro que não desejávamos só oferecer o chão e o contexto da Amazônia para o mundo e o resto do Brasil. Queremos proporcionar uma oportunidade inédita de encontro de pessoas de todas as regiões da Pan-amazônia, para intercambiar suas vivências e lutas e estabelecer uma dinâmica permanente de construção e realização de propostas em defesa da vida, extrapolando as limitações de tempo do próprio evento.

Além disso, e não menos importante, as organizações amazônicas pretendem estabelecer um diálogo real entre a Amazônia e o mundo, e vice-versa, algo nem sempre possível atualmente.

A experiência histórica dos povos da Amazônia, até hoje, é de que os rumos de sua vida e de sua terra são decididos de fora para dentro, enquanto a democracia é usada como um processo de aparente participação, viabilizando os interesses daqueles que não vivem ou moram na região. Neste evento se deseja que os povos da Amazônia falem, sejam escutados e levados em conta na construção permanente do diálogo e de alternativas sustentáveis para garantir seus direitos.

Além da dinamização e aprofundamento dessas dinâmicas, é importante destacar um terceiro elemento que caracteriza o próximo FSM e representa um desejo de todos e todas que estão engajados neste processo de construção de um mundo diferente: escutar os povos originários do mundo, secularmente oprimidos, explorados e marginalizados. Aprender com a sua experiência e valorizar a sua presença tornou-se uma dimensão prioritária do encontro, evidenciada no próprio logotipo do FSM 2009 Amazônia, resultado de uma pesquisa dos símbolos culturais de vários povos originários do mundo.

Por isso, a programação destacará a construção de espaços específicos de encontros e discussões dos povos indígenas e afro-descendentes e dará, na abertura, visibilidade para as culturas africanas e indígenas, indicando a transição do VIII Fórum (Quênia) para o IX (Pan-amazônica).

Diálogo Pan-Amazônico

A construção do diálogo pan-amazônico ganha vitalidade com a realização de cinco encontros transfronteiriços entre os países que fazem divisa com a Amazônia brasileira, todos marcados por forte presença indígena.

O objetivo é aprofundar as questões centrais da sua região. O primeiro encontro já ocorreu no Oiapoque (AP) e contou com a presença de representantes do Brasil, Suriname, República Federativa da Guiana e Guiana Francesa, que discutiram a questão das migrações humanas.

A matriz energética será o tema da reunião em Guajará-mirim (RO/BO) entre Brasil, Bolívia e Peru. Em Rio Branco (AC), Brasil e Bolívia debaterão sobre a IIRSA (Iniciativa pela Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana). Já em Boa Vista (RR), Brasil e Venezuela abordarão a questão da terra e do território. E finalmente, em Benjamim Constant (AM), Brasil e Colômbia tratarão do tema da militarização. Os resultados destes encontros chegarão ao FSM por meio de caravanas fluviais e terrestres.

Além disso, em Belém, o segundo dia do evento também será dedicado ao diálogo pan-amazônico, sob o lema “500 anos de resistência, conquistas e perspectivas afro-indígenas e populares”.

Tanto as discussões em andamento nos encontros transfronteiriços, quanto as 2.400 atividades inscritas alimentam a esperança de que o espaço oferecido pelo FSM satisfará as expectativas em termos de denúncias e de contribuições efetivas para a desejada mudança de rumo. Da mesma forma, evidencia correspondência a todos os objetivos listados pelo conjunto das pessoas e organizações do evento, especialmente aquele que reivindica “a defesa da natureza (Amazônia e outros ecossistemas) como fonte de vida para o planeta Terra e para os povos originários do mundo (indígenas, afro-descendentes, tribais, ribeirinhos) que exigem seus territórios, línguas, culturas, identidades, justiça ambiental, espiritualidade e bom viver”.

Este ponto é particularmente inovador em relação aos fóruns anteriores, pois se refere de modo especial à região pan-amazônica. A inscrição das atividades autogestionadas demonstra uma riquíssima variedade de experiências inovadoras em andamento, tanto do ponto de vista econômico e social quanto político, cultural e ambiental.

Encontramos nas diversas oficinas, conferências, mesas de diálogo e controvérsias, as propostas dos povos indígenas em relação aos Estados plurinacionais; o esforço da sociedade civil para recriar os instrumentos internacionais de regulação; as novas abordagens de terra, território e identidade, que buscam uma cartografia diferente para a Amazônia; o aproveitamento sustentável dos recursos naturais; e a valorização da expressão dos povos originários, inserida em numerosas atividades culturais. Uma riqueza impressionante, que reforça a convicção de que existe no mundo uma forte vontade de inovar a partir das experiências já acumuladas do “Bom Viver”.

Temos certeza que a partir deste diálogo as 3.740 organizações já inscritas, vindas de todas as partes do mundo, e os 60 mil participantes registrados até agora indicarão as possibilidades existentes diante do caos da crise econômica, social, cultural e ambiental, para construir assim um mundo – e também uma Amazônia – livre dos grilhões da dominação, da injustiça e das desigualdades gritantes.

 

*Matheus Otterloo é educador da FASE, Federação de órgãos para Assistência Social e Educacional, Programa Amazônia, através da qual preside o Comitê Gestor do Fundo Dema, e foi integrante do GF local FSM 2009, no qual represtou o FAOR – Fórum da Amazônia Oriental.



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