O Brasil atômico
Apoiado em tecnologia francesa, o Plano Nacional de Energia prevê a construção de até 8 novas instalações nucleares. Mas basta analisar a história recente de Angra 3 para saber que essa expansão será desastrosa: enquanto a usina de se arrasta num pântano econômico e jurídico, o país perde o bonde das energias renováveis
Enquanto a sociedade brasileira se volta ao calendário cultural do Ano da França no Brasil, a relação entre os dois países ganha novos contornos geopolíticos com o avanço da cooperação nuclear. Um dos patrocinadores do rendez vous é a estatal francesa Areva, empresa que desenvolve e vende reatores nucleares e participa do projeto de construção da usina Angra 3, recém-licenciada pelo governo federal.
Assinados em dezembro de 2008 pelos presidentes Lula e Nicolas Sarkozy, os tratados binacionais incluem transferência de tecnologia e a construção de um submarino nuclear brasileiro, além de estaleiros. Apesar da relevância política das negociações, a mídia preferiu destacar os figurinos e os passos da primeira-dama e celebridade Carla Bruni durante a temporada carioca da comitiva francesa.
O que os meios de comunicação deixaram de divulgar foi que, de um lado, os acordos realçam o caráter militar da retomada do Programa Nuclear Brasileiro, e, de outro, consolidam a França como o principal parceiro estratégico na aplicação dessa tecnologia, papel que historicamente coube à Alemanha.
Não faltam motivações
Em 1975, no auge da ditadura militar, foi assinado o Acordo sobre Cooperação para Uso Pacífico da Energia Nuclear Brasil-Alemanha. Apesar das ambições iniciais, ao longo de quase 30 anos, os mais de US$ 40 bilhões investidos foram suficientes apenas para concretizar Angra 2 e desenvolver algumas pesquisas na área de combustível nuclear. Em 2004 o acordo foi praticamente abandonado, em função da decisão alemã de desativar seu parque atômico e investir em fontes renováveis de energia.
Enquanto a Alemanha desliga suas usinas atômicas, a França se estabelece como líder na política e indústria nucleares mundiais (ver box) e vende seu modelo a nações como o Brasil.
Do lado francês, a motivação da cooperação vai além da venda de reatores e da construção de um submarino: envolve todo o ciclo de produção de combustível nuclear, de nossas reservas de urânio às unidades de enriquecimento e fabricação de elementos combustíveis em Resende (RJ). Seria, portanto, uma oportunidade para a França diversificar suas fontes e escapar do monopólio exercido pelo consórcio europeu Urenco, que domina o mercado de urânio enriquecido em escala internacional. Já do lado brasileiro, os tratado binacionais significam mais fôlego político e novos investimentos para uma tecnologia que, por aqui, ainda está em escala piloto.
Mas, para que o Brasil se torne uma alternativa de suprimento de urânio enriquecido às usinas francesas, é necessária forte expansão dessa mineração e das instalações nucleares, além de aumento na frequência de transportes radioativos pelo país – o que agravaria os riscos de acidentes e as dificuldades no gerenciamento dos rejeitos.
Os primeiros passos foram dados quando a Areva herdou os contratos de fornecimento de tecnologia para Angra 3, que pertenciam originalmente à alemã Siemens KWU – em 2000, a Siemens KWU se fundiu com o grupo francês Framatome, formando a Areva. A Areva também está envolvida na manutenção de Angra 1 e participou recentemente da troca de um gerador de vapor da usina, serviço que custou à Eletronuclear mais de R$ 700 milhões.
A cooperação nuclear com a França posiciona o EPR (European Pressurized Reactor), menina dos olhos da Areva, como forte candidato a modelo de reator em um cenário de construção de novas usinas no Brasil. Pelo menos é o que consta do Plano Nacional de Energia (PNE), que aventa a possibilidade de quatro a oito instalações nucleares desse porte até 2030.
Elefante branco
Basta analisar a história recente de Angra 3 para saber que a expansão da geração nuclear será desastrosa para o Brasil.
Em 2007, quando o governo Lula anunciou, via CNPE (Conselho Nacional de Política Energética), a intenção de construir Angra 3, apresentou uma tarifa “competitiva” de R$ 138 MWh (MegaWatt / hora) para a energia atômica. A organização não-governamental Greenpeace questionou o número e apontou que, para viabilizar essa tarifa, a Eletrobrás praticou taxas de retorno para os investimentos estatais em Angra 3 de 8% a 10%, ou seja, abaixo da realidade do mercado. O subsídio oculto aí poderia implicar perdas anuais médias de até R$ 4 bilhões para os cofres da União. Se a empreendedora praticasse taxas de 12%, a mínima possível hoje, a tarifa nuclear chegaria a pelo menos R$ 152 MWh.
Com a construção de Angra 3 prestes a ser iniciada, estudos recentes confirmam as previsões do Greenpeace: de acordo com simulação da empresa CPFL, esta deve ficar entre R$ 156,99 MWh e R$ 189,10 MWh. Outro cálculo, publicado no periódico Energy Policy, coloca a tarifa da energia gerada em Angra 3 como uma opção mais cara em relação às usinas hidrelétricas, termelétricas, a biomassa e eólicas. Segundo o estudo, a tarifa nuclear chega a R$ 260 MWh, valor superior aos R$ 170 MWh estimados para a cogeração por bagaço de cana, aos R$ 105 MWh da geração hidrelétrica e aos R$ 220 MWh da tarifa-base de energia eólica.
Além do preço pouco competitivo, o Tribunal de Contas da União (TCU) revelou, em setembro de 2008, um superfaturamento da ordem de R$ 469,3 milhões no projeto de Angra 3, cerca de 6% do orçamento oficial apresentado pela Eletronuclear para a construção da usina. O TCU também questionou a validade dos contratos relacionados a Angra 3: de acordo com notícias veiculadas pela imprensa brasileira em abril, os acordos originais, datados de 1983, serão mantidos, apesar de uma revisão dos custos ter elevado o valor estipulado da obra de US$ 1,8 bilhão para US$ 3,3 bilhões.
A renovação ou não dos contratos está ligada também ao cumprimento da Constituição Federal no processo de autorização e licenciamento ambiental e nuclear de Angra 3. O artigo 21, que afirma que instalações nucleares devem ser discutidas e aprovadas pelo Congresso Nacional, foi completamente atropelado: o projeto da terceira central nunca foi debatido pelos representantes no Legislativo. Para autorizar a obra, o Executivo baseou-se exclusivamente em um decreto do governo Geisel, datado de 1975, e ignorou o parecer do jurista José Afonso da Silva, um dos maiores especialistas do país e referência para o Supremo Tribunal Federal, que discorre sobre sua inconstitucionalidade.
Essa polêmica jurídica rondou o longo e tortuoso processo de licenciamento ambiental de Angra 3, que levou quase quatro anos em sua última fase. As graves lacunas e falhas apontadas no Estudo de Impacto Ambiental foram transformadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) em condicionantes da licença prévia, concedida em junho de 2008. Depois de quase nove meses de negociações, a Eletronuclear conseguiu a licença de instalação, mesmo sem ter resolvido a questão do depósito definitivo do lixo radioativo gerado pela usina, considerada um pressuposto para o início das obras. Ou seja, os rejeitos de Angra 3 serão armazenados de forma provisória, tal como já ocorre com Angra 1 e 2, e a licença foi concedida sem que o empreendedor sequer encaminhasse uma solução para o principal impacto ambiental de sua construção.
Escuridão
A instalação de Angra 3 se arrasta nesse pântano econômico e jurídico, com o apoio do governo federal, enquanto o Brasil perde o bonde tecnológico e econômico das energias renováveis. Com abundância de vento, sol, biomassa e a possibilidade de aproveitamentos hídricos em pequena escala, o país poderia alcançar 25% de geração renovável até 2020, garantindo segurança no fornecimento e reduzindo as emissões de gases de efeito estufa do setor elétrico. Para empreender essa verdadeira revolução, seriam necessários investimentos de cerca de R$ 100 bilhões que gerariam mais de 400 mil novos empregos. Com os mesmos R$ 8 bilhões destinados à Angra 3, poderia ser implantado um parque eólico com o dobro da capacidade da usina nuclear em apenas dois anos.
Contudo, a atual política brasileira opta por subsidiar a problemática energia nuclear. Uma das explicações possíveis para tamanho contrassenso é a ausência de consulta pública sobre qual deve ser a nossa matriz elétrica ou que destino dar aos investimentos em ciência e tecnologia.
A falta de transparência é ainda mais profunda em relação ao Programa Nuclear Brasileiro. As decisões são tomadas e comunicadas de forma unilateral por um setor estruturado em torno da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Em flagrante desacordo com convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, a CNEN fiscaliza, licencia e controla as instalações nucleares no país, e seu trabalho é protegido por leis de sigilo herdadas da ditadura militar. Nesse aspecto, a França tampouco é um bom exemplo.
Atitudes militaristas, somadas às crises nas usinas em construção, esvaziam o discurso de modernidade e confiabilidade promovido pelo setor. Não há nada de novo em relação a essa tecnologia. O que mudou nas últimas décadas foi o aumento das emissões humanas de gases que provocam o efeito estufa. Com o planeta à beira de um colapso climático e em plena crise financeira, investir bilhões em energia nuclear é acelerar rumo ao precipício.
*Rebeca Lerer é jornalista e coordenadora da campanha Energia do Greenpeace.