O Brasil de hoje está em um disco de 1978
Como o Clube da Esquina II mapeou o sentimento anti-bolsonarista há mais de quatro décadas
“Cachoeiras sem as águas
É barranco torto, morto, tudo igual
Como correnteza sem barranco
É apenas água a rolar”
Milton Nascimento e Lô Borges
Clube da Esquina II (1978)
A mesma Minas Gerais que os historiadores dizem ter refundado a tragédia colonial brasileira e que hoje os cientistas políticos apontam como o lugar que melhor reflete o voto brasileiro também produziu, há quase meia década, o álbum de música que melhor expressa o estado de espírito de quem resiste ao fenômeno do bolsonarismo. Os dilemas entre a esperança e a lamentação, a beleza e a miséria, o passado que não termina e o futuro que não começa, a exasperação mais emotiva e a conjuntura mais econômica são inequívocos em cada detalhe do segundo disco de Milton Nascimento e Lô Borges, ou Clube da Esquina II, de 1978, curiosamente nas sombras do sucesso do primeiro, de quatro anos antes.
Essa experiência complexa entre tudo o que o Brasil poderia ser e tudo o que ele é, de bom e de ruim, até se condensa em uma única canção. Começa com um canto abafado, como se estivéssemos diante de um coral de igreja, interrompido pela voz cortante de Elis Regina, agora como se fôssemos levados para o momento em que, em uma mesa de bar, a conversa simples fica séria, perguntando o que todos nós já perguntamos nesses últimos anos no Brasil: o que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou?
Como tudo neste álbum, o peso da pergunta se dilui na resposta. É uma filosofia própria, em que os dilemas brasileiros são resolvidos sempre a partir de uma possibilidade real, nunca utópica, cuja condição de acontecer se funde nas temporalidades. Esse é um primeiro motivo para ler esse texto ouvindo-o. Em todas as músicas de Clube da Esquina II, de alguma forma entendemos que passado não foi em vão porque lá já havia muita gente sonhando um país diferente. Que o presente é exatamente o lugar de transformar os sonhos em ação, de forjá-lo como cotidiano, e que o futuro, desconhecido, é o horizonte inequívoco de tudo o que foi feito (repito: feito, não sonhado) de vera.
É assim que, “se muito vale o já feito, mais vale o que será, e o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir. (…) É cobrando o que fomos que nós iremos crescer”.
Seria uma filosofia maravilhosa para o Brasil se, em vários momentos, o eu-lírico não confessasse certa incredulidade no seu próprio argumento. É essa hesitação, marcada por uma tristeza convicta, que faz o disco refletir tão definitivamente nossa condição sentimental de agora. E é por isso que devemos escutá-lo. “No pranto que criei, nem vá dormir como pedra e esquecer o que foi feito de nós”, canta Milton para, algumas canções depois, admitir seus ódios e medos repetindo, cinicamente, “e daí?”. Não há como julgá-lo, porque todo esse estado de espírito que resiste também já teve seus dias de desilusão extrema com o destino do Brasil.
O “e daí” nunca ganha, mas também nunca some do nosso horizonte pessoal.
Mas Clube da Esquina II também é atual pelos sujeitos narrados: os índios sobrevivem, mas amassados no chão pelas rodas dos bondes e pelas pernas da boiada. Os negros fazem festa, mas morrem de frio no dia seguinte. Os famintos esperam o circo acabar para devorar um pão e uma água mal servidos que, mesmo assim, são devorados. Os mortos não descansam, antes pedem desesperados que os outros tenham piedade dos seus familiares e, enquanto tudo isso acontece, as mulheres ainda conservam uma estranha fé na vida.
A verdade é que se esse é um disco que retorna no tempo para explicar o presente, sua primeira música (Credo) é um grito que só adquire alguma atualidade porque estamos fazendo o percurso inverso, voltando desesperados para trás até trombar com o passado. Nesse sentido, não é a atualidade do álbum que marca sua força argumentativa, mas justamente a volta do Brasil àquele ano em que ele fazia algum sentido. Vale lembrar que, no período anterior ao seu lançamento, em meados de 1978, o Congresso Nacional fora fechado pelo general Ernesto Geisel – que, na mesma canetada, suspendera eleições estaduais e suprimira manifestações que voltavam às ruas do país. A discussão política da abertura do regime era nublada pela oposição conservadora de Silvio Frota. Tudo isso em meio a um período chamado pelos historiadores de “democracia relativa”.
Credo resume todo o dilema de nossa solidão, em que Milton e Lô cantam com uma voz determinada, quase pode-se dizer aguerrida, que, apesar de tudo, é preciso ter fé no nosso povo que ele acorda.
No privilégio do imediato, não é possível pensar nessa frase sem uma interrogação no final.
Mas não é à toa que essa é a canção que abre o álbum, à medida em que ela preenche de uma esperança sincera toda a realidade que vem na sequência das músicas (“Caminhando pela noite de nossa cidade/Acendendo a esperança e apagando a escuridão…”), ainda que faça isso à luz, justamente, da dualidade entre um passado que, sim, acabará, e um futuro que, tão óbvio quanto o sol que nasce todos os dias, chegará (“Caminhando e vivendo com a alma aberta/Aquecidos pelo sol que vem depois do temporal…”). É aqui que está toda a afirmação de um Brasil melhor. Se era, de fato, uma expectativa em 1978, ouvir Credo agora é mais angustiante, já que a solução indicada por Milton Nascimento e Fernando Brandt é derramar juventude pelos corações. Fazia sentido lá, mas talvez não hoje, em que a mesma Minas Gerais estabeleceu a maior votação de sua história para um deputado de 26 anos cujo cheiro faz lembrar imediatamente os tempos imemoriais da colônia.
É curioso como uma canção romântica (Nascente) é o último respiro de um ouvinte que parece mergulhado na lama. Depois, o que resta do horizonte vislumbrado é uma lembrança (“a cidade plantou no coração/tantos nomes de quem morreu/horizonte perdido no meio da selva/cresceu o arraial…”) ou então as coisas terrenas que conseguem mantê-lo como algo possível: uma procissão cristã que, ao tomar conta da cidade, revela a fé e a agonia dos homens. É tristemente intrigante, aliás, pensar no encontro social atual mais parecido a essas velhas imagens do Brasil cotidiano. Primeiro porque elas se transformaram de pequenos arroubos dominicais em multidões pentecostais que vociferam a volta de Cristo com o mesmo desejo com que esperam pela democratização das armas de fogo. Deixam, assim, o caráter de supressão momentânea das hierarquias sociais que caracterizavam romarias católicas até mesmo durante a época da escravidão. Depois, porque os devotos não esquecem mais a sua paixão para viver a do Senhor, mas antes reforçam-na para vivê-la como se fosse a única. A agonia permanece, mas não é mais deles. Agora é nossa.
E, se o bolsonarismo é um fenômeno, uma disposição de agir, uma canalização histórica de todos os dilemas mais cruéis do Brasil, de todas as barbáries mais incrustadas no nosso cotidiano, talvez não exista expressão mais profunda disso do que ouvir Milton Nascimento cantar, entristecido, que ele já passou, mas não quer passar, que a chuva acabou, mas o sol insiste em não chegar, e que tudo isso o lembra de algo (a história autoritária brasileira?). É possível extrair daqui um diagnóstico do presente: o de que, assim como Joaquim Nabuco havia escrito sobre a escravidão, o bolsonarismo permanecerá por muito tempo como característica nacional, por ter espalhado pela nossa pretensa suavidade uma vasta solidão. Em Dona Olímpia, as mesmas metáforas voltam revestidas em uma despedida pessoal. “É passou assim, não quer passar/ Não para de doer/ E não vai parar mais/ Nem de vez em quando vai sarar/ Me xinga, me deixa, me cega, mas, vê se não esquece de voltar”.
É possível retornar a Olho D’Água e recuperar a filosofia de Clube da Esquina II, que tenta fundir todos os tempos em uma visão feliz do que o Brasil pode ser, afirmando que, da mesma, forma, tudo isso não quer chegar e já passou, quer ficar e nem ligou. Ou então ouvir exaustivamente A Sede do Peixe, onde, ao contrário, só se vê inércia (“Para o que não tem mais razão/ A calma do louco ensinou/ A dizer nada/ Para o que não tem mais nada/ A calma do louco ensinou/ A dizer razão”). Eis, na voz do Deus cristão, essa hesitação entre experimentar a dor mais absoluta de ver o país escapando pelos dedos, de lutar por ele com as nossas armas mais honestas ou, em meio ao caos, olhar para o outro lado e tentar esquecer que somos brasileiros. Não há algum anti-bolsonarista que não os tenha sentido – ou os três de uma vez só.
Para além do bolsonarismo como fenômeno social, Milton e Lô também parecem diagnosticar sua faceta formal, sem contudo argumentar que ela é menos relevante para o argumento. Em Pão e Água, eles cantam que o picadeiro pode não ter palhaço, porque todos os aplausos vão para o leão. A política institucional, embora tenha efeitos práticos definitivos, como o pão mal servido que 33 milhões de pessoas procuram comer ou o barranco morto da floresta queimada pelo próprio ministro do meio ambiente, é um acontecimento secundário, que encontra sua força na imposição do presente e no protocolo do poder. O palhaço vai e volta e, nesse movimento, reforça e desidrata os ânimos. Ao ser aplaudido, porém, o leão legitima não sua presença momentânea, mas o símbolo que faz dele um animal temido por todos os outros. Uma reflexão sociológica autêntica está em ouvir essa música revendo o assalto a Brasília no 8 de janeiro.
A miséria brasileira se expressa nessa dialética troncha, de dois lados, em que ou esperamos pelo palhaço ou aplaudimos o leão. A beleza da filosofia de Clube da Esquina II é que ela não oferece respostas definitivas, mas antes escolhe expressar sentimentalmente a experiência de ser brasileiro para quem se vê em tempos difíceis. Neles, há de tudo – de um desejo inevitável de mudar o Brasil até outro, também fortíssimo, de abrir mão dele. Entre um e outro, há dias de sol. É por isso que o verso definitivo do disco é uma ironia charmosa, em que Milton Nascimento canta, intrigado, que há uma mulher de nome simples e de acesso fácil que tem uma mania muito estranha: a de ter fé na vida.
Tê-la é uma escolha que cada um de nós, no Brasil de hoje, teremos que tomar em algum momento.