O bolsonarismo não será vencido no grito
Bolsonaro não sofrerá um impeachment, e seguirá emprestando seu sobrenome para outros fenômenos difusos e violentos em outras partes do mundo, na falta do que chamá-los.
Não faz muito tempo, anunciamos que o bolsonarismo havia morrido. Sobraria dele apenas aquele cheiro insuportável de morte, que permanece mais como lembrança do que como realidade, mas capaz de empestear a memória por muitíssimo tempo. Então percebemos que o odor fétido não era do cadáver, mas justamente da própria condição de existência deste fenômeno disforme e grosseiro — a qual o presidente do Brasil emprestou, satisfeito, seu sobrenome. Desesperados, saímos tentando entender como é possível que a morte, por incrível que pudesse parecer, tivesse tanta vida. Esse tem sido o nosso dilema: matar a morte. Para dar conta temos apelado ao grito e, apesar de insuficiente, continuamos a usá-lo como o principal forma de acabar com o que, no nosso pior dos nossos mundos, já é a própria finitude.
Mais do que o grito, temos apenas paradoxal expressão a gritar: dizendo, com a pressa da voracidade, que o bolsonarismo morreu. Fizemos isso, racionalmente, quando vimos o país escolher quase a totalidade dos seus prefeitos, no ano passado, em dissonância à narrativa federal. Os cientistas políticos, que não haviam explicado quase nada até então, encontraram o momento ideal para decretar o óbito e reafirmar a potência de suas teorias. Depois, repetimos o mesmo anúncio fúnebre quando descobrimos, atônitos, que o presidente recusou comprar milhares de doses de vacinas, que salvariam milhares de vidas.
Aquela era uma morte moral, de fato, mas só para aqueles que compartilham uma mesma moralidade — o que não é o caso do bolsonarismo. Depois, gritamos novamente o seu fim, quando comprovou-se que o ministério que leva o sujeito “saúde” no nome queria uma cédula de dólar por cada dose dos imunizantes. Era impossível, para nós, que qualquer governo do mundo contemporâneo resistisse a tamanha baixeza. Ele agonizaria publicamente até morrer diante dos nossos olhos. E seguimos decretando, quase todos os dias, a morte da morte, causada pela corrupção, pelas mentiras, pela “força das instituições”, pela imposição interessada do “mercado”, pelo movimento dialético da história, pelas reações internacionais ou por qualquer outro motivo.
Enquanto isso, não notamos que, aos poucos, perdemos novamente a voz. Já havia acontecido antes, quando acreditamos que o bolsonarismo não chegaria ao poder, justamente, por seu cheiro mortífero. Aquele homem que ainda não tinha se tornado o rótulo de todo um estado podre de coisas, fedendo à ditadura, falando sobre sua condescendência com assassinatos em um canal de televisão, desejando que a sua opositora política sofresse de câncer, exaltando um homem conhecido por colocar ratos nas vaginas de suas prisioneiras, lamentando não ter estuprado uma deputada federal, colocando metáforas de pistolas das mãos de crianças, seria vencido pelos nossos berros civilizatórios de alerta. Era uma inusitada crença iluminista, amparada na inevitabilidade da vitória da razão sobre a barbárie, do contrato social sobre a liberdade primitiva. O Homo bolsonarus era um indivíduo sozinho, cheirando à morte enquanto outros zombavam dele.
Insistimos em gritar, mesmo depois de tanto tempo, porque não conhecemos outra forma de expressar esse dilema irreparável de precisar matar o que já é a morte, embora não esteja morta. Mas também porque ainda acreditamos que o bolsonarismo é mesmo apenas este homem que, apesar de toda a nossa gritaria, se tornou o governo. Acreditamos que vamos destruí-lo com a soma de nossas vozes na constância do tempo e por causa da força da história. São berros otimistas que, como qualquer desespero, também é demasiado cego. Debaixo do som de todos eles está este fenômeno social complexo, sem forma, confuso, violento e inédito que nós chamamos pelo sobrenome do presidente do país pela falta do que chamá-lo — e, como argumenta o professor Renato Lessa, do que esperar dele. De tanto gritar, fomos desidratando os significados das palavras mais pesadas que tínhamos para acusar as ameaças à nossa vida, até que delas não sobrasse nada, como foi com o “fascismo”.
Chegamos até aqui exaustos e, pior, talvez percebendo que o bolsonarismo não será vencido no grito. Há quem saiba disso, é claro, mas essa ainda não é uma conclusão, nem um consenso. Em termos práticos: Jair Bolsonaro não sofrerá impeachment nem com a comprovação do pior dos escândalos de corrupção, porque modificou estruturalmente a política. Ele será um candidato forte nas próximas eleições, também pela destruição das divisões ideológicas que sua presença criou, em que as esquerdas se movimentaram, seguras, em direção às direitas. E seguirá emprestando seu sobrenome para outros fenômenos difusos e violentos em outras partes do mundo, na falta do que chamá-los. Nossos gritos são ecos potentes, ouvidos por todos os cantos, mas também insuficientes. É preciso matar a morte de outro jeito.
Enquanto gritarmos como loucos, clamando, vejam-se só, pela razão, esse cheiro de morte vai subindo, chegando ao céu da história, se transformando em uma memória eterna da nossa existência. Esse odor terrível será sentido de muitas maneiras pelas próximas pessoas que seguirão fazendo do Brasil esse lugar do mundo onde, como só ele pode ser, tudo é tão criativo para o bem e para o mal. Um lugar onde a morte sempre esteve tão viva que não há quase nada para matá-la. Ou talvez haja: a nossa vida.
Vinícius Mendes é jornalista e sociólogo.