O bolsonarismo não é só um fenômeno eleitoral
Decretar o início da morte do fenômeno social que alçou Bolsonaro é uma postura equivocada e despreocupada
Uma das narrativas mais comuns pós-eleições municipais diz que o bolsonarismo foi o grande derrotado nas urnas (ao lado do PT) e, assim, deu-se o início inevitável do seu fim – uma análise equivocada de setores progressistas ansiosos ou de uma ciência política apressada que insistem em declarar a morte de um fenômeno ainda relativamente incompreendido.
O argumento decisivo para anunciar a morte lenta do bolsonarismo é de que, dos 13 candidatos que o presidente apoiou para diferentes prefeituras do país, durante diferentes lives dias antes do primeiro turno, apenas dois terminaram a campanha eleitos – Gustavo Nunes (PSL), em Ipatinga, Minas Gerais, e Francisco Souza, o “Mão Santa” (DEM), em Parnaíba, no Piauí. Além deles, dos 45 vereadores para quem Bolsonaro pedira votos diretamente, apenas dez ganharam, de fato, cadeiras nos parlamentos de suas cidades. Ao final do pleito, então, 12 dos 59 candidatos mencionados por ele saíram ganhadores nas urnas – pouco menos de um quarto (20%).
Foi com esses números debaixo dos braços que, já no nascer do dia 30 de novembro, a imensa parte das análises políticas decretou a ferida de morte do bolsonarismo, não ainda capaz de exterminá-lo, mas fatal o suficiente para fazê-lo agonizar daqui em diante – um erro analítico que permanece em suspenso por quem o considera apenas um fenômeno eleitoral.
Mesmo se o fosse, os dados das eleições municipais não sustentam o argumento. Em primeiro lugar, porque o presidente – em outro ineditismo institucional do histórico político brasileiro – não encabeça ou mesmo é filiado a nenhum partido político, essa instituição ainda tão fundamental na organização e coordenação da máquina de campanhas eleitorais no Brasil, com suas coligações, apoios formais, distribuição de recursos, imagens, etc. Sem o peso de uma sigla responsável por organizar com um mínimo de racionalidade os acordos regionais e municipais entre candidatos – como agem, historicamente, o MDB, o PT e o PSDB, por exemplo, por meio de campanhas inteiras que carregam os figurões, as pautas e os grandes feitos de cada partido na história recente –, os apoios do presidente não apenas foram informais (as tais lives eleitorais) como se restringiram a pouco mais de uma dezena de nomes entre as mais de 5 mil cidades que saíram para votar no final de novembro.
Em segundo lugar, essa narrativa puramente estatística sugere uma estranha homogeneidade nas disputas municipais: em São Paulo, não é a primeira vez que o candidato desta vez apoiado por Bolsonaro – o apresentador de televisão Celso Russomanno (Republicanos) – larga na frente das pesquisas, é desidratado pelos oponentes ao longo da campanha e termina na zona intermediária de votos ao fim do primeiro turno. A competição na cidade estava, desde o início, demarcada entre o candidato do PSDB (como sempre) e alguma opção à sua esquerda. No Rio de Janeiro, ao contrário, houve uma união de forças políticas entre progressistas de diversas estirpes contra o então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que não necessariamente via no oponente mais forte, o ex-prefeito Eduardo Paes, o seu nome ideal – numa eleição que foi traduzida também como o confronto decisivo entre a mínima civilização e a completa barbárie. Situações ainda mais distintas estavam dadas em Recife (PE) – onde estavam na corrida dois nomes de uma mesma família tradicional da política pernambucana – e em Belo Horizonte (MG), onde não apenas o atual mandatário, Alexandre Kalil, vinha de uma das gestões mais bem avaliadas do país, como também o candidato apoiado por Bolsonaro era um jovem desconhecido de um partido minúsculo, Bruno Engler, do PRTB.
Ainda dentro de argumento justificado só pelos números, não deixa de ser politicamente razoável que 20% dos candidatos apoiados informalmente pelo presidente, sem a colaboração da máquina partidária e a sua consequente parafernália eleitoral, tenham sido eleitos. O número é, numa conta vulgar, a metade da aprovação positiva (bom/ótimo) que ele tinha no país em setembro: 40%, segundo o Ibope.
O ponto, no entanto, não é esse: o equívoco maior está em supor que o bolsonarismo é um fenômeno que se mede pelo número de votos que ele angaria para si e para seus apoiados e que, assim, há uma simetria exata entre o homem que ocupa a chefia do Executivo atualmente e o acontecimento social que o fez chegar lá. Essa percepção expressa, mais do que um desconhecimento sobre o bolsonarismo, uma certa propensão a minimizá-lo, a considerá-lo encapsulado, compreendido, pronto para se tornar o objeto total de qualquer análise rápida ou mesmo para vê-lo como um acontecimento traiçoeiro e imediato na história recente brasileira. Não o é – e lê-lo de outra forma é justamente um dos caminhos possíveis para superá-lo.
Indo do universal para o particular, há análises políticas, sociológicas e até filosóficas que indicam coincidências do bolsonarismo no Brasil com a ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e que, por sua vez, conecta contradições próprias dos estadunidenses (a transferência de postos de trabalho para outras partes do mundo) com questões sociais que não nos são estranhas, como o racismo e a xenofobia estruturais. Há quem ainda veja o fenômeno social bolsonarista como um dos eixos de uma narrativa global à direita, calcada contra o aumento significativo dos fluxos de pessoas, coisas e imagens pelo mundo, e que vai de Viktor Orbán, na Hungria, a Rodrigo Duterte, nas Filipinas, ou de Matteo Salvini, na Itália, ao partido Lei e Justiça (PiS) na Polônia. Quase todos eles ainda estão no poder.
No contexto nacional, um dos bons consensos analíticos sobre o fenômeno bolsonarista – trazido à superfície pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado – é que o presidente emprestou sua figura, seu ódio, sua violência e seu sobrenome para um movimento profundo da vida social brasileira resultante tanto das crises econômicas pós-governos Lula como da expansão das narrativas de liberdades individuais e da possibilidade de reagir a elas por meio de redes sociais. Nesse sentido, Bolsonaro foi o responsável por fazer um conjunto de percepções, arranjos e desilusões ainda abstrato e deformado ganhar uma cara, um sentido de grupo e um programa de governo. Nessa percepção, os louros não são dele, já que é apenas o produto casual de um acontecimento maior que lhe usa como canal. Isso poderia ser corroborado pelo aumento do “rótulo” bolsonarista em movimentos semelhantes de extrema-direita espalhados pela América Latina.
Dessa leitura surgiu uma outra, com alcance rápido nas redes sociais, que tentou dar conta do bolsonarismo como se ele fosse a feição mais próxima do “Brasil profundo” ou do “brasileiro médio” – essa figura simpática, informal e caricata, mas também violenta, egoísta, preconceituosa e contraditória que é usada constantemente como matéria-prima para memes e análises políticas com a mesma intensidade. Se por um lado é uma clara demonstração do mesmo tipo de preconceito, apenas revestido por conceitos das ciências humanas e por uma dose de capacidade de convencimento, por outro há algo de uma certa camada da sociedade brasileira, difícil de delimitar, que consegue, de fato, individualizar e incorporar essas ideias abstratas.
Talvez quem tenha conseguido desenhar melhor, de um ponto de vista ontológico, o acontecimento bolsonarista no Brasil destes tempos, foi o professor de filosofia política da PUC-RJ, Renato Lessa, na edição de julho de revista “Serrote”. Para ele, este é o momento do homo bolsonarus, um “animal artificial com características distintas tanto do fascismo histórico como da própria tradição republicana brasileira pós-1930”, porque agora “não se trata de pôr a sociedade dentro do Estado, mas de devolver a sociedade ao estado de natureza; de retirar da sociedade os graus de ‘estatalidade’ que ela contém, para fazer com se aproxime cada vez mais de um ideal de estado de natureza espontâneo: um cenário no qual as interações humanas são governadas pelas vontades, pelos instintos, pelas pulsões, e no qual a mediação artificial é mínima, ou mesmo inexistente”. Esse estado de natureza, no entanto, longe daquela imagem contratualista de liberdade primitiva – e até de uma certa solidariedade anterior ao contrato social, como propôs Locke – “não é composto por sujeitos individuais iguais e equivalentes, ávidos e alegres para empreender, mas por uma assimetria longamente fixada na experiência histórica brasileira”, que é desigual de diversas formas. O homo bolsonarus vive confortável – até pode-se dizer satisfeito, em uma necrossociedade em que ele, na sua individualidade primitiva, no seu “cada um por si”, só precisa se preocupar consigo mesmo.
Essas poucas compreensões do bolsonarismo, vale dizer, são parciais e imediatas, e não pretendem decretar seu fim definitivo. No entanto, olham para o fenômeno para além do seu aspecto eleitoreiro, seus resultados mais supérfluos, suas leituras rápidas e apressadas, suas feições puramente estatísticas. Há muitas outras – como aquelas que sustentam que ele não é nada mais do que os preconceitos que desistem de ser “não ditos” para serem “ditos” ou que é um eterno retorno do mesmo da vida brasileira, marcada pelo colonialismo, pela escravidão e, no meio disso, por uma tentativa liberalóide. A última talvez seja a coletânea “Bolsonarismo: Teoria e prática” (Gramma), que reúne 14 artigos de diferentes perspectivas organizados por Geraldo Tadeu e Carlos Sávio Teixeira e lançado nestes primeiros dias de dezembro.
Ainda cabe, por último, apontar que uma análise estatística, eleitoral, do bolsonarismo, poderia ser mais preocupada com seus impactos sociais, ontológicos, mesmo individuais, do que só com a possibilidade de se ter uma conclusão científica: afinal, qualquer “porcentagem” de um fenômeno como esse, observado em qualquer sociedade democrática, em qualquer momento histórico é, antes do que uma “derrota nas urnas”, um fato social – no sentido durkheimniano do conceito – tão relevante para entender cientificamente como para agir socialmente.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).