O caminho da morte
Analisar as mortes ocorridas dentro do sistema prisional indica, contraditoriamente, muito mais, como se (sobre)vive em uma prisão no Rio de Janeiro.
Como se morre nas unidades prisionais fluminenses? Quais são as causas dessas mortes? Essas perguntas vêm circundando o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) desde 16 de março de 2020, quando tudo indicava que os números que já eram desoladores de quase duzentas mortes anuais, subiriam ainda mais por conta da pandemia.
Mais de dois anos depois foi possível perceber que analisar as mortes ocorridas dentro do sistema prisional indica, contraditoriamente, muito mais, como se (sobre)vive em uma prisão no Rio de Janeiro. No dia 10 de outubro deste ano havia 43.236 pessoas presas no Estado, distribuídas entre 50 prisões e quatro unidades de saúde. A taxa global de ocupação deste sistema é de 146%, ou seja, quase 50% acima do que as unidades possuem de capacidade.
A capacidade advém de uma contagem de vagas que, por sua vez, não tem uma metodologia transparente. Desde que se aumentou um terço da capacidade em todas as Cadeias Públicas a partir da colocação de mais um andar nos beliches, não ficou evidente se as vagas são contadas por: número de comarcas (camas)? Tendo em conta a capacidade de suportabilidade do sistema de esgoto? O número de sanitários? O volume cúbico de ar ou de água e o espaço em metros quadrados que cada cela possui para cada preso?
Podemos afirmar que em quase todos os locais que visitamos, a capacidade de fornecimento de água suporta a abertura dos registros de três a quatro vezes ao dia, por aproximadamente 15 minutos, pois não há vazão para mais do que isso. Também podemos asseverar que na maioria das celas que estivemos, se todos os presos decidirem sair da cama e ficarem ao mesmo tempo em pé, dificilmente conseguirão se mexer livremente. Observamos ainda, ao longo dos anos, que quando alguém em uma cela tem tuberculose, normalmente, os demais também serão contaminados. Presos pegam essa doença três, quatro, cinco vezes durante o aprisionamento. Isso indica que a circulação de ar tampouco é levada em consideração na estrutura interna das unidades.
O alimento também é insuficiente. Todos recebem uma quentinha, porém, essa é praticamente toda composta por arroz, sendo que o intervalo entre a última refeição de um dia e a primeira do outro possui uma média de 15 horas de jejum forçado. O esgoto vaza dentro das celas, que, por vezes, possuem dois bois (sanitários turcos) no chão para uma média de 140 presos onde há 75 vagas, o que seria insuficiente mesmo que a cela estivesse dentro desta capacidade.
Obviamente, somente esse cenário já é suficiente para se saber por que se adoece tanto no sistema prisional. Mas não se adoece apenas, se morre por causas evitáveis a todo o tempo. Para se ter uma dimensão, entre os anos de 2011 e 2021, 1.973 presos morreram no Estado, uma média de um preso morrendo a cada 45 horas, valendo a menção de que estamos falando de jovens. No entanto, tais dados não parecem fazer jus à brutalidade do sistema prisional. Então, faz-se necessário olhar ainda mais a fundo para as especificidades envolvidas em casos emblemáticos dos últimos três anos, que nos dão pistas deste cenário e dos diversos gargalos encontrados.
Desde 2018, temos apontado sistematicamente para a falta de análise sobre a possibilidade de sobrevivência de presos que são hospitalizados previamente à entrada no sistema prisional, já que a audiência de custódia é feita sem as suas presenças, sendo analisada a manutenção ou não da prisão apenas através do processo. Quando o preso recebe alta e entra na Cadeia Pública José Frederico Marques (porta de entrada da capital), a apresentação do preso-paciente será tão somente para observar se houve ou não tortura, independentemente do grau de deterioração da saúde da pessoa apreendida, ou seja, o risco de morte não é levado em conta como fator para retirá-lo do sistema prisional. Este foi um dos motivos para que solicitássemos, junto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, medidas cautelares para a proteção da vida e integridade física dos presos da Cadeia Pública Jorge Santana (SEAP JS), já que pelo menos duas celas possuíam somente presos com ferimentos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos deferiu as solicitações em fevereiro de 2020.
O preço da negligência é observado no caso de um preso de 31 anos que havia recebido um tiro na perna, ocorrido em 27 de dezembro de 2021. Ele dá entrada na Unidade de Pronto Atendimento do Complexo de Gericinó (UPA) oito dias depois de ser baleado, com a sua ferida no tornozelo já infeccionada com uma lesão de úlcera. Na sequência, é pedido uma vaga de CTI, no entanto, ele vem a óbito no dia 7 de janeiro por sepse cutânea. Segundo pesquisa lançada pela ENSP/Fiocruz, a partir de uma cooperação técnica com o Ministério Público, coordenada pela Dra. Alexandra Sanchez, a porta de entrada do sistema possui alta taxa de mortalidade, chegando à proporção de três mil a cada cem mil habitantes.
Não à toa, recentemente, foi deferida a extensão da medida cautelar, desta vez abrangendo a Penitenciária Alfredo Tranjan, unidade prisional que recebeu os presos da SEAP JS após o deferimento da medida cautelar, na qual é indicado que o Estado deve “adotar medidas com o objetivo de avaliar a compatibilidade da privação de liberdade na situação individual de risco a vida e a integridade física dos beneficiários com deficiência – temporárias ou definitivas – e outros com necessidades especificas à luz dos padrões internacionais aplicáveis”.
Mas, que padrões são esses? São equivalentes ao que temos aqui fora. No entanto, a realidade hoje do Estado é a da Lei 8493/2019, centralizando ainda mais o atendimento na UPA e no Hospital Hamilton Agostinho, unidades de saúde intramuros, deixando hospitais públicos da rede externa para casos que a SEAP não esteja aparelhada. Só que, efetivamente, só há a UPA e um conjunto de enfermarias, chamadas de “hospital”, que não possuem capacidade para lidar com a complexidade dos casos que recebem para internação. Hospital propriamente dito, desde o fechamento do Frei Caneca, implodido em 2010, não existe mais. Ou seja, se negou por lei o direito obrigatório dos presos ao acesso à saúde.
Mais uma vez, a realidade nos impõe a consequência. Em 2020, um homem preso em uma unidade de Japeri chegou em agosto na UPA, relatando vômito e diarreia em todas as refeições, já chegando desnutrido, desidratado e com baixo peso, sendo ainda pessoa que convivia com HIV, cuja medicação estava interrompida. Morreu 11 dias depois de internado, demonstrando o quanto o atendimento parece sempre estar muitos passos atrás do necessário.
Outro caso em março daquele ano: um homem morreu em menos de 24 horas após a chegada, sendo encontrado em óbito com rigidez cadavérica, não tendo recebido nenhuma atenção compatível à gravidade de seu caso. Já em agosto de 2020, foi realizado um pedido de vaga zero – que é acionada quando um paciente está com sofrimento intenso ou risco de morte – de um jovem internado de apenas 21 anos, por, perceptivelmente, ser um caso que necessitava de avaliação neurológica. O pedido era de Tomografia Computadorizada (TC) de crânio e foi negado inicialmente. No dia seguinte, novamente foi pedida a vaga zero, estando ele desacordado. Quatro dias depois, ainda a mesma situação, o paciente já comatoso. Seu quadro foi se agravando neste e nos dias seguintes, culminando em seu óbito uma semana depois.
Mas o atraso não é somente para chegar à rede externa, ele também acontece na ida à própria UPA. Mais uma vez, em agosto de 2020, um jovem que estava preso no Complexo de Gericinó chega na UPA apresentando rigor cadavérico, sendo classificado com morte sem assistência. Neste caso, pedimos informações à unidade e à Subsecretaria de Tratamento para entender o que teria havido no fluxo para que se chegasse ao ponto de um preso ser levado ao atendimento médico quando já havia morrido a pelo menos duas horas. A direção da unidade respondeu informando que o interno havia passado mal e solicitado atendimento médico, tendo sido encaminhado desacordado por volta das 19h. No entanto, o boletim de atendimento informava a confirmação do óbito com o registro de rigor cadavérico apenas 30 minutos depois do horário informado. A questão que se dá passa a ser: em qual dos pontos o atraso ocorreu? No pedido de ajuda ou no transporte ao atendimento?
Em 2021, mais um jovem de Gericinó chega à UPA já desacordado, apresentando há semanas dificuldade de andar, falar e se alimentar. No entanto, esta não era a primeira vez que ele ia à unidade de saúde, merecendo destaque que nas últimas duas vezes já informava sentir dor de cabeça. A penúltima, 20 dias antes de seu óbito, já falava em fraqueza, dificuldade de locomoção e cefaleia. Retorna dois dias depois, adicionando ao seu quadro a falta de apetite. Volta, então, pela última vez no início de novembro, 10 dias depois de seu último atendimento, já desacordado. Desta vez é realizada a solicitação de um TC de crânio e avaliação de neurocirurgia por meio da vaga zero, liberada três dias depois do pedido, no qual esperou transporte até o dia seguinte, mas ele faleceu sem ser transferido, tendo como causa mortis sepse, sífilis e desorientação não especificados.
Desde então, conforme atestamos em visita deste ano, a organização social responsável pela administração da UPA de Gericinó à época – Associação Filantrópica Nova Esperança (AFNE) – havia saído da gestão, sendo assumida pela Fundação Rio atualmente. A partir de 2020, houve aumento de óbitos na rede externa, segundo a já mencionada pesquisa da Fiocruz, o que de alguma forma significa maior acesso à mesma. Entre 2017 e 2022, o índice de mortos na rede externa saltou de 0,74% para 23,2%. No entanto, dois índices se mantiveram estáveis nos últimos anos: o de mortes na UPA, que está entorno de 50% desde 2020, e óbitos em unidade, que está entre 25% e 26% neste mesmo intervalo. Como e por que esses índices não melhoraram?
São múltiplas as possibilidades de resposta. Somente neste ano foram implementadas equipes de atenção primária prisional de modo a dar cobertura a todas as unidades do município, já que até muito recentemente somente cinco estavam ativas. Hoje, todas as cidades com unidade prisional no Rio de Janeiro já estabeleceram ou estão em vias de terem acesso, pela primeira vez em anos, à atenção básica. Desde 1998, não há concurso para técnicos na SEAP. O sistema de pedido de atendimento não mudou, segue sendo o de “catuque”, ou seja, o preso entrega o bilhete ao policial penal e o policial penal entrega ao ambulatório.
No entanto, um dado não pode ser negligenciado, pois ele possui pertinência quando o assunto é saúde. Ele, em verdade, é a própria coluna vertebral do sistema prisional. Estamos falando do transporte de presos. Hoje, existem duas possibilidades de transporte no sistema, um para as unidades isoladas, do interior ou para fora de Gericinó, chamado de Serviço de Operações Especiais/Grupamento de Escolta Penitenciária (SOE/GSE), e o outro é o Grupo de Apoio Tático, que opera dentro do Complexo.
Desde a nossa primeira visita ao sistema prisional, há 11 anos atrás, o SOE é o grupamento que mais enseja denúncias sobre tratamento. Elas chegaram em todas as visitas de rotina que fizemos. Superlotação dos carros, não fornecimento de alimentação e água, algemamento em posição de estresse, grávidas, deficientes físicos e idosos se machucando durante o transporte, batendo na lataria do carro devido à velocidade que é dirigido, somado à impossibilidade de se protegerem por consequência da imobilização. Agressões verbais, chutes em pessoas com dificuldade de subir no carro, tapas no rosto até de grávidas e uso indiscriminado de spray de pimenta. A lista de denúncias das violências praticadas pelo SOE é interminável e o que ouvimos a todo tempo é: “prefiro morrer a ir no carro do SOE”. Ou seja, ao doente cabe a pseudo escolha entre duas formas de tortura: ser agredido no caminho ou não acessar o atendimento de saúde.
São múltiplos os problemas neste eixo. Segundo informações recentes de instituições parceiras, estão em pleno funcionamento somente cinco viaturas. Historicamente, não é dada prioridade ao transporte de saúde e tampouco se cria uma subdivisão no grupamento dedicado somente a isso, como reiteradamente recomendado pela Defensoria Pública, Ministério Público e pelo MEPCT/RJ. O pedido de transporte é feito ao SECOPEN, que é um setor de comunicação que avisa o grupamento, o qual estabelece a ordem de prioridade. A área de saúde nada pode opinar a esse respeito.
No entanto, o que reiteradamente surge como o maior detrator para os presos e as presas é a forma como a violência é a marca do transporte, levando-os a ter que escolher entre passar pelo que nomeiam de “massacre” até chegarem na UPA ou não pedirem atendimento. Se decidem passar pelo suplício do transporte, podem aguardar, sem sucesso, chegar à rede externa, caso a UPA assim indique. Nos raros casos em que ambos ocorrem, não há nenhuma segurança de que os flagelos não sejam em vão, já que não é pouco comum o atraso na chegada e até vedação pelo policial de que o paciente salte do carro, como já ouvimos em visitas. Comprovação disso é a pesquisa de 2021 realizada pela 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Saúde da Capital, que apontou o índice de absenteísmo nas consultas solicitadas pelo SISREG (sistema de regulação) de 84%, em 2018, e de 70%, em 2019 e 2020.
Essas informações não são novas nem para quem atua neste campo e nem para a sociedade. Não há como esquecer o caso midiático do jovem vindo de Campos, sendo jogado na parede de entrada da UPA ainda com vida, perceptivelmente em gravíssimo estado, agonizando na porta, algemado sozinho, até vir a óbito não se sabe exatamente se nas cenas da gravação ou logo após entrar na unidade. Tal fato, à época, foi motivo de afastamento da direção da SEAP no Pronto Socorro Hamilton Agostinho, mas nada foi noticiado em relação ao SOE[1].
Quase dois anos depois desta cena, em junho deste ano, um rapaz de 21 anos deu entrada na UPA vindo de São Gonçalo. Chegou já com torpor na UPA na véspera do dia de sua morte, “contido pelos quatro membros”, sendo criado no preenchimento do Boletim de Atendimento Médico (BAM) a expressão “provável agitação prévia”, justificando potencial ato abusivo do SOE, sem sequer haver naquele momento algum questionamento sobre a conduta do grupamento. Neste mesmo ano, um idoso morreu na UPA aguardando o transporte chegar para levá-lo à rede de saúde externa.
Assim, neste cenário catastrófico, ouvimos em uma das unidades de idosos que visitamos esse ano que os presos preferem “viver do jeito que dá”, mesmo que o índice de óbitos desta unidade, em particular, chegue a pouco menos de 10% de sua população total, anualmente. Durante todos esses anos de denúncia foram diversas as recomendações sobre medidas em relação ao transporte, tais como: a criação do SOE saúde, a compra de mais viaturas e de ambulâncias. Há, ainda, uma Ação Civil Pública especificamente sobre o grupamento em fase de execução.
Existe um dado, até o momento negligenciado, que todas as instituições precisam lidar com urgência, que é a razão direta entre as mortes no sistema prisional e a violência do SOE. O regime de terror faz com que os presos prefiram quaisquer outros sofrimentos do que ficar sob sua custódia e guarda. Em contrapartida, a responsabilização desses sujeitos, ou afastamento da atividade fim, é quase impossível tendo em vista que o contato do preso com os agentes do grupamento é pontual e, assim como todos os policiais penais, não existe nenhuma identificação visível, o que por óbvio impede quaisquer tentativas de individualização de conduta e consequentemente de responsabilização.
Essas informações, para quem trabalha diretamente com o sistema prisional ou já sobreviveu a ele no Rio de Janeiro, não são novas e não são pouco divulgadas. Podemos afirmar que o SOE é um dos principais vetores de tortura no Estado. Mesmo que consigamos toda a estrutura e com todo o aparato adequado para os 495 policiais penais lotados no grupamento, nada vai mudar nos dados se não enfrentarmos a cultura de violência do setor, não apenas para prevenir como para combater a tortura já em curso. Esse debate não pode ser para amanhã, ele é para hoje. Segundo a mesma pesquisa da Fiocruz, após um pico de óbitos em 2017, a curva de mortalidade estava em queda, mas voltou a subir em 2020 e seguiu este curso em 2021. Mesmo a pandemia tendo papel nesta inversão de tendência, a projeção é que tal mudança ocorreria do mesmo jeito.
É urgente que entendamos que a prevenção da tortura impactará a redução de mortes evitáveis, afinal, “viver do jeito que dá” em um sistema que a tuberculose mata sete vezes mais e as doenças infecciosas três vezes mais do que no extramuros, pode significar não sobreviver. Estamos diante de mais uma das metodologias de morte pelo Estado da juventude negra, pobre e periférica, já que negros compuseram 67% dos mortos, em 2021, nas prisões fluminenses. É preciso enfrentar a questão de frente, sob pena de cumplicidade por negligência nas mortes do sistema prisional.
Caroline Cunha Faria, Eliene Vieira, Ionara Fernandes, Joyce Gravano, Lucas Matos Santos e Natália Damazio são integrantes do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ).
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Este especial é uma parceria Le Monde Diplomatique Brasil e Radar Saúde Favela – Fiocruz, cuja equipe é composta por Fábio Araújo, Marina Ribeiro, Fábio Mallart, Larissa França, Raimundo Carrapa, Emerson Baré, Mariane Martins, Luciene Silva e Paulo Roberto Ribeiro
[1] Hospital penitenciário do RJ diz que preso chegou morto à unidade, mas câmeras mostram detento agonizando | Rio de Janeiro | G1 (globo.com).