O caminho da rua
Primeiro, os EUA apoiaram a Irmandade; depois, mantiveram sua ajuda militar ao Cairo quando o presidente Morsi foi “deposto”.Serge Halimi
A Irmandade Muçulmana tinha jurado não disputar a presidência egípcia. Depois de romper esse primeiro juramento, ela deveria trazer “pão, liberdade e justiça social”. Sob sua autoridade, a insegurança aumentou, a miséria também. A multidão então retomou as ruas para exigir a saída do presidente Mohamed Morsi (ler o artigo na pág. 12). Algumas revoluções começam assim. Quando triunfam, são celebradas por séculos sem que ninguém se preocupe exageradamente com sua espontaneidade relativa ou com os fundamentos jurídicos que lhes deram origem. A história não é um curso de Direito.
Logo após a ditadura de Hosni Mubarak, era ilusório imaginar que o sufocamento prolongado da vida política, do debate contraditório, não pesaria nas primeiras eleições. Frequentemente os eleitores confirmam nesses momentos a influência das forças sociais ou institucionais mais estruturadas (as grandes famílias, o Exército, o antigo partido único) ou a dos grupos organizados que fizeram conexões com suas redes clandestinas para escapar à repressão (a Irmandade Muçulmana). A aprendizagem democrática transborda no tempo de uma eleição.1
Entretanto, as promessas não cumpridas, os dirigentes eleitos de modo correto2 e que enfrentam imediatamente o desafeto e a cólera da opinião, as manifestações gigantes organizadas por uma coalisão heterogênea: nestes últimos anos, outros países além do Egito conheceram situações do gênero sem que, no entanto, o Exército tenha tomado o poder, aprisionado sem julgamento o chefe de Estado, assassinado seus militantes. Senão, isso se chama golpe de Estado.
Esse termo, os países ocidentais não empregam. Árbitros das elegâncias diplomáticas, eles parecem estimar que alguns pronunciamentos militares – no Mali, em Honduras, no Egito… – são menos inadmissíveis do que outros. Primeiro, os Estados Unidos apoiaram a Irmandade Muçulmana; depois, mantiveram sua ajuda militar ao Cairo quando o presidente Morsi foi “deposto” pelo Exército. Uma aliança conservadora entre este e a Irmandade teria constituído o roteiro sonhado por Washington, mas ele não se concretizou. Quem ficou feliz foram os nostálgicos do antigo regime, os nacionalistas nasserianos, os neoliberais egípcios, os salafistas, a esquerda laica, os monarcas sauditas.
Mesmo que o Egito esteja falido, o enfrentamento entre os militares e os islamitas não afeta mais as escolhas econômicas e sociais, que não mudaram nada desde a queda de Mubarak. No entanto, que desemboque em eleições ou que recorra a um golpe de Estado, de que vale realmente uma revolução que não altera nada esses planos? Os novos dirigentes subordinam a salvação de seu país às ajudas financeiras (US$ 12 bilhões) dos Estados do Golfo – em particular da super-reacionária Arábia Saudita.3 Se essa opção se confirmar, os juristas podem dizer o que quiserem, o povo egípcio vai retornar para a rua.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).