‘O catador de histórias’: uma conversa com o Edmar Neves sobre memória afro-brasileira e seus ensinamentos para crianças
Publicada pela Editora Jandaira, a obra ensina o leitor a explorar as histórias de Orixás, prestando atenção sobre a escuta e alteridade
As histórias de Orixás trazem ensinamentos valiosos sobre escuta, alteridade, respeito e confiança, principalmente para crianças. Trazer esses ensinamentos para além de um viés religioso, dando ênfase à apresentação da cultura afro-brasileira e ao entendimento de uma cosmovisão africana – mais especificamente banto-iorubá – em que não há a distinção maniqueísta de bem e mal, é o que faz Edmar Neves em sua nova obra publicada pela Editora Jandaíra, O catador de histórias.
O livro, contemplado pelo edital ProAC/SP para a realização e publicação de obra literária infantojuvenil inédita, conta com ilustrações do quadrinista Afa Vasquez e paratextos desenvolvidos para auxiliar diferentes tipos de leitores e mediadores de leitura, como glossário e referências bibliográficas.
Edmar Neves se define como filho de Oxóssi e nasceu em Mogi Mirim, mas passou grande parte de sua vida em Mogi Guaçu, também no estado de São Paulo. É licenciado em Letras pela UFSCar, mestre e doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp. Desenvolve pesquisas sobre literatura brasileira contemporânea, grupos marginalizados e pensamento literário e social. Além disso, atua como professor de ensino médio e técnico, pesquisador, redator e produtor cultural. O catador de histórias é sua estreia literária.
Confira abaixo a entrevista completa com o autor
Por que você decidiu explorar as histórias dos Orixás de uma forma que transcende o aspecto religioso, conectando-as a temas universais? O que essa abordagem significa para você?
Partindo das obras que li sobre a temática, percebo que, quando há adaptações ou referências aos Itans dos Orixás, normalmente não se abre espaço para pensar questões que vão além do contexto religioso. Portanto, ao suscitar temas que dialogam com as narrativas e com as características dos Orixás ali abordados, mas que também fazem sentido em outros contextos, pretendo abranger o público-alvo da obra, produzindo um livro que tem como objetivo principal apresentar aspectos da cultura afro-brasileira, sendo que as expressões religiosas também fazem parte da cultura e da história de um povo/comunidade, mas que também possam trazer ensinamentos aplicáveis a outras vivências, como a importância de saber ouvir e transmitir conhecimentos, de confiar na capacidade das pessoas e de não julgar ninguém pela aparência. Ou seja, busquei acrescentar diversas camadas de leitura ao livro, utilizando não só as narrativas verbais e visuais, mas também os paratextos (Apresentação, Glossário e Referências), visando diferentes públicos e formas de abordar os temas ali presentes, dependendo do contexto em que a obra está inserida.
Como surgiu a ideia de escrever este livro? Houve algum momento específico ou experiência pessoal que despertou sua vontade de criar essa obra? E como esse processo evoluiu desde os primeiros esboços até a publicação?
A ideia do livro surgiu em 2017, ano em que me iniciei no culto ao Orixá Oxóssi, dentro do candomblé de nação Ketu, e estava me experimentando como escritor, compondo alguns contos e roteiros de quadrinhos, além de começar a atuar profissionalmente com a escrita, ao pegar alguns trabalhos freelancer como redator.
Na mesma época, meu sobrinho tinha 1 ano de idade, e eu queria comprar livros para ele que apresentassem um pouco mais da minha fé, da cultura e de toda a história que eu estava descobrindo naquela época. Com alguns materiais em mãos, pensei: “Por que não escrever meu próprio livro infantil?”. Foi nesse raro momento de petulância artística que comecei a esboçar as primeiras linhas da obra. Entretanto, o projeto ficou engavetado até que, em 2021, durante a pandemia, ministrei um curso de extensão sobre histórias em quadrinhos na Universidade Federal de São Carlos e, em dado momento, comentei com a turma que tinha esse projeto de livro infantil e que pretendia submetê-lo ao Programa de Ação Cultural (ProAC), iniciativa de fomento à cultura no Estado de São Paulo, e que estava buscando algum parceiro para ilustrar as histórias. Foi assim que um dos participantes do curso, o ilustrador e quadrinista Afa Vasquez, entrou para o projeto. No ano de 2023 fomos aprovados no Edital do ProAC e firmamos parceria com a Editora Jandaíra para a publicação do livro.
A escuta é um elemento central em O catador de histórias. Como você utilizou esse recurso no processo de criação da obra? Quais foram as fontes de escuta que mais influenciaram sua escrita, sejam elas relatos, tradições orais, leituras ou vivências?
Inicialmente, busquei os relatos que ouvia dentro do terreiro e lia em livros de pesquisadores do tema, que ajudam a explicar o sistema ritualístico, os dogmas, os preceitos religiosos, em suma, as tradições culturais que vieram para o Brasil com as pessoas escravizadas e que são preservadas, transmitidas e atualizadas dentro das comunidades tradicionais, como os terreiros. Selecionei alguns Itans (narrativas associadas aos Orixás) que serviram de base para as adaptações e os expandi, trazendo mais características associadas aos Orixás abordados que não estão descritas nos registros “originais”, ou ainda, ditados e resumos de outros Itans que tratam dos mesmos Orixás. Foi esse o processo de escuta, pesquisa, escrita e reescritas que fez os textos do livro tomarem corpo.
Além de destacar aspectos da cultura africana, que mensagens e reflexões você espera que os leitores levem ao final da leitura? Há algum ensinamento ou sentimento específico que você buscou transmitir com esta obra?
Creio que a principal mensagem que fica com o livro é que, mesmo tendo que sobreviver em um ambiente extremamente hostil, que ainda busca exterminar sua existência nos mais diversos âmbitos, a população negra do Brasil consegue manter suas tradições e seus traços culturais, vindos de várias regiões do território africano, vivos, através de sua religiosidade ou de outras práticas cotidianas.
O que O catador de histórias representa para você, tanto pessoal quanto profissionalmente? De que forma essa obra se conecta com sua jornada pessoal e com o momento atual da sua vida?
O livro representa um movimento de autoafirmação para mim, no sentido de sentir mais confiança na minha escrita e na minha capacidade de coordenar um projeto dessa magnitude. Já em relação à escrita do livro, este foi o espaço em que pude colocar em prática alguns conceitos relacionados à análise literária que aprendi ao longo da minha graduação. Mas o que achei mais enriquecedor foi o processo de elaboração das ilustrações que acompanharam o texto na composição da narrativa, pois eu e o Afa pensamos em vários detalhes que remetem não só a outros Itans, como também ao relacionamento entre os Orixás.
Quais autores e vivências influenciaram sua escrita e contribuíram para a criação deste livro? Além das influências literárias diretas, como os autores que você admira, quais experiências e vivências pessoais, culturais e religiosas tiveram um impacto significativo no desenvolvimento da obra?
Eu costumo enxergar o escritor santista Plínio Marcos como meu grande mentor, sendo que tudo o que escrevo e pesquiso hoje foi graças às leituras que fiz dos roteiros de suas peças teatrais e de seus contos, quando estava no final da adolescência. Dito isto, creio que, para além das leituras de autores como Reginaldo Prandi, José Beniste e Mãe Beata de Yemonjá, este livro tem como principal influência artística e literária a transmissão de conhecimentos através dos relatos dos meus mais velhos dentro do meu ilê, como meu babalorixá Junior de Odé, minha yalorixá Luciana de Oxalá, meus irmãos Felipe de Lufan, Kauã de Iansã, Janaica de Oxum, entre outros, que, entre uma tarefa e outra do terreiro, me explicavam os porquês das coisas através dos ensinamentos dos Itans.
Ana Ferrari é uma jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduanda em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Sempre teve forte ligação com a literatura e às vezes se aventura a escrever textos ficcionais.