O cenário da mídia árabe ameaçado pelo dinheiro
Ao longo das batalhas da Primavera Árabe, a Al Jazeera perdeu sua credibilidade ao se alinhar à estratégia internacional do Qatar. Paralelamente, emergem televisões privadas locais, frequentemente dominadas por capitais sauditasYves Gonzalez-Quijano
(Em Washington, âncoras do canal local da Al Jazeera, Ghida Fakhry e Dave Marash, se preparam para apresentar telejornal)
Bem menos celebradas do que as redes sociais, as emissoras de TV locais desempenharam papel igualmente importante na “Primavera Árabe”. Os celulares podem substituir as câmeras dos profissionais, mas apenas até certo ponto: suas sequências curtas não têm o impacto emocional das cenas transmitidas pela Al-Jazeera ou pela Al-Arabiya, as duas maiores redes de notícias da região, capazes, por exemplo, de reunir dezenas de milhões de espectadores durante a cobertura ao vivo dos eventos na Praça Tahrir, no Cairo.1 Nenhuma forma de navegação na rede pode ser comparada ao que esses telespectadores tiveram chance de ver a cada sexta-feira de fevereiro de 2011, em suas telas que simultaneamente exibiam, em vez de eventos esportivos globais, os protestos nas capitais árabes: Túnis, Cairo, Trípoli, Sanaa, Manama… Uma experiência que sem dúvida ficará gravada por muito tempo no imaginário político regional.
No Egito, o Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA) não se enganou e vem atacando há um ano, por diversas vezes, os repórteres de televisão, incluindo nisso a intervenção pela força em estúdios de transmissão. Se a morte, em uma partida de futebol em Port Said, no início de 2012, de várias dezenas de Ultras, os fãs de futebol que costumam estar na linha de frente das batalhas contra as forças do regime, e, um pouco depois, o primeiro aniversário da revolução não geraram as mesmas mobilizações do ano anterior, não foi somente por causa do esgotamento e do medo de uma boa parte da opinião pública, mas também porque eles não se beneficiaram da cobertura favorável dos majorsárabes.
No entanto, com conteúdos que migram facilmente de um meio para outro, a distinção entre novas e velhas mídias já não tem muito sentido: a imprensa escrita está associada aos recursos on-line e as redes de TV transmitem a quase totalidade de seus programas na internet. Mais uma vez, a Al-Jazeera tem desenvolvido nessa área uma política inovadora, ainda que, em razão de suas dificuldades de transmissão − apesar dos elogios feitos pela secretária de Estado Hillary Clinton, em março de 2011, àqualidade de sua cobertura das revoluções árabes −, seja inacessível por satélite aos telespectadores norte-americanos! Inaugurado em 1998, seu site chegou a figurar durante a guerra de Gaza, em janeiro de 2009, entre os 25 primeiros do mundo, muito à frente da maioria de seus rivais internacionais, principalmente porque permitia a republicação de suas reportagens, publicadas sob licença livre (Creative Commons), num momento em que era praticamente o único a garantir, de dentro da Faixa de Gaza, a cobertura da ofensiva israelense. Desde então, a cadeia tem reforçado continuamente a interação com os internautas, como evidencia, por exemplo, a parceria firmada no auge das revoltas em janeiro de 2011 com o X Media Lab, um prestigiado think tankinternacional especializado em mídia digital.
Com mais de setecentos canais, centenas de milhares de blogueiros, quase 40 milhões de usuários no Facebook, é impossível hoje em dia impor um blecaute total à informação árabe. Mas a multiplicidade de canais e a interligação constante entre as diferentes redes serão suficientes para garantir uma diversidade de oferta, especialmente no campo televisual, em que o grosso da opinião continua a se formar? Causando a queda de alguns regimes ditatoriais, os eventos de 2011 podem ter mandado definitivamente para o passado algumas das práticas mais grotescas de cadeias totalmente obedientes, que não podiam abrir um boletim de notícias sem informar fatos e gestos – inauguração, encontro de delegações estrangeiras… – do homem no poder. A tendência a um mínimo de pluralismo na região, perceptível há alguns anos, deveria se confirmar: assim, as autoridades argelinas parecem resolvidas a abrir para a concorrência o espaço audiovisual nacional. Atores privados vão necessariamente entrar em cena, e seu posicionamento em relação aos poderes políticos é uma das questões mais importantes do período.
O balanço de 2011, no entanto, é pouco encorajador, mesmo nos países que assistiram rapidamente a mudanças de regime. Na Tunísia, o ponto de partida das convulsões políticas que continuam a percorrer o mundo árabe, a Nessma – principal rede privada fundada em 2009 por meio da associação de vários investidores locais e da Mediaset, empresa de propriedade de Silvio Berlusconi – rapidamente rompeu os laços com um poder que, contudo, tinha demonstrado muita boa vontade para com ela. Mas suas escolhas de programação, especialmente com a transmissão, pouco antes das eleições, de Persépolis, de Marjane Satrapi, foram encaradas como uma provocação pelas correntes próximas ao islã político. Estas ficaram furiosas com o momento escolhido para essa crítica ao poder religioso no Irã, que além de tudo continha uma representação da figura divina, tudo transmitido em dialeto tunisiano: uma iniciativa particularmente irritante para aqueles que veem com maus olhosqualquer coisa que venha competir com o uso do árabe corânico. Esse caso, amplamente divulgado pela mídia internacional, não necessariamente merecia toda a atenção que recebeu. Ele não é menos representativo das tensões no seio da opinião pública e constitui um mau sinal da capacidade dos atores privados de estar acima na briga para cumprir sua missão de informar.
No Egito, onde as questões regionais são mais importantes ainda, os levantes acabaram por desacreditar o canalpúblico, que, imperturbável, continuava a oferecer imagens suaves das margens do Nilo, quando todas as redes do mundo transmitiam ao vivo os conflitos entre a polícia e os manifestantes. Os meses que se seguiram à revolução viram surgir uma dúzia de iniciativas privadas, que vinham ora de profissionais experientes, apoiados por companhias com recursos significativos, ora de ativistas inexperientes, que tinham como riqueza apenas o entusiasmo. Rapidamente a CSFA decidiu adiar qualquer novo lançamento, ao mesmo tempo que brandia a ameaça de um retorno da censura, denunciada com estardalhaço pelo jornalista Yousri Foda, que apresentou sua renúncia ao vivo em outubro de 2011.
Mais de um ano após a saída de Hosni Mubarak, as redes que se beneficiam de posições relativamente sólidas têm em comum o fato de falar em nome das principais forças políticas ou econômicas: a Al-Hayat é de propriedade do atual líder do partido Wafd; a Misr25 é a voz não oficial da Irmandade Muçulmana; a ONTV, a última rede que ainda toma o partido da revolução, é financiada pelo bilionário liberal Naguib Sawiris, patrono do partido Ahrar. Os atores mais fracos foram eliminados ou desviados de suas orientações iniciais: a TV Tahrir, com jornalistas como Ibrahim Issa, uma figura famosa da oposição ao antigo regime, foi comprada pelo empresário Suleiman Amer, que rapidamente eliminou dela os colaboradores mais críticos. A nova configuração política em nada mudou os modelos econômicos: na falta de recursos publicitários suficientes, seria inútil buscar as iniciativas capazes de sobreviver sem o apoio de poderosos grupos financeiros, raramente muito distantes dos círculos políticos.
Portanto, as tempestades de 2011 apenas começaram a ameaçar a dominação das grandes redes pan-árabes de notícias. Criadas respectivamente em 1996 e 2003, a Al-Jazeera e a Al-Arabiya permanecem, para o Catar e a Arábia Saudita, os principais instrumentos de influência capazes, apesar de todos os comentários sobre as novas mídias, de cobrir com um véu quase total a severa repressão no pequeno reino do Bahrein, enquanto sopram as brasas na Líbia e mais ainda na Síria.
Pode-se mesmo indagar sobre o destino da Al-Jazeera, que acaba de festejar seu 15º aniversário.2 Com sloganscomo “O povo quer…”, os acontecimentos de 2011 poderiam constituir uma ilustração de sua ambição editorial: dar voz aos atores reais, tudo com o pano de fundo da afirmação da identidade com sotaques ao mesmo tempo nacionalistas e religiosos. Mas a rede, que se caracterizava por seu profissionalismo e independência, a ponto de parecer ditar a agenda para o conjunto dos atores regionais, perdeu muito de sua credibilidade ao longo dos combates da Primavera Árabe. Após a lua de mel dos primeiros encontros revolucionários, seu total alinhamento com as posições diplomáticas do Catar – intervenção na Líbia e na Síria, em particular – acabou por fazer dela um clone a mais dos vários canais, oficiais ou extraoficiais, mera porta-voz das orientações políticas daqueles que os financiam. Para muitos, a Al-Jazeera rompeu com as exigências profissionais que haviam sido impostas por seu diretor-geral, Waddah Khanfar, que pediu demissão – ou foi demitido – em setembro de 2011. Uma partida que se junta a muitas outras, sinal do mal-estar sentido por muitos jornalistas, especialmente no seio do canal árabe.
Em Damasco, mas também em Túnis, as pessoas começam a se manifestar contra uma rede que há até bem pouco tempo mantinha sua popularidade praticamente intacta, e este é um sinal claro de que a estrela da Al-Jazeera começou a perder o brilho, enquanto a confiança do público árabe é necessária para a diplomacia do Catar. Até porque o ano em curso continuará a ver aumentar a oferta de televisão regional, especialmente na área das redes de notícias, com a Al-Ittihad e a Al-Mayadin (dirigida por Ghassan ben Jiddo, ex-correspondente da Al-Jazeera no Líbano, que também se demitiu), em Beirute; e sobretudo, no Golfo, a Al-Arab, rede de notícias desejada por Al-Walid ben Talal.
O príncipe saudita, dono da Rotana, primeiro grupo árabe no campo do entretenimento, escolheu como sócio nessa operação o grupo Bloomberg, especializado em informação econômica e financeira, embora seja parceiro de negócios de Rupert Murdoch, o poderoso magnata da mídia de origem australiana, que não faz segredo de suas opiniões ao mesmo tempo pró-sionistas e ultraconservadoras e que prepara ele próprio a abertura da Sky Arabia, seu canal árabe. Uma surpresa reforçada pelo recente anúncio de que a Al-Arab teria sua sede em Manama. Após os rumores de uma instalação em Beirute ou no Cairo, num primeiro momento, depois em Doha, inevitavelmente à custa de acordos com as autoridades do Catar, e, finalmente, nos Emirados Árabes Unidos, a escolha da capital do Bahrein quase não era esperada. Esse micropaís, com nenhuma ou quase nenhuma experiência na indústria da informação, é ainda por cima presa de distúrbios que provocaram, desde março de 2011, a intervenção de tropas de países do Golfo, liderados pela Arábia Saudita.
Da parte de um príncipe que nunca fez segredo de suas ambições políticas e que tem investido muito nesse projeto de uma rede de notícias transárabe (ele é o único proprietário dela, ao contrário de seus investimentos no grupo Rotana, por exemplo), instalar-se em Manama é reivindicar uma demarcação original para a futura rede, entre a voz oficial da Al-Arabiya e a da Al-Jazeera, mais contestadora. Confiada a Jamal Khashoggi, profissional suficientemente crítico para que as autoridades sauditas o demitissem alguns meses atrás, a redação da Al-Arab já tem seu lema: “Liberdade e desenvolvimento”, que faz eco, sem dúvida alguma, aos slogansdas redes sociais da Primavera Árabe, mas mais ainda ao futuro político que Ben Talal imagina para a região, ou seja, um “capitalismo à maneira islâmica”. Um caminho do qual se pode constatar o sucesso, desde que se organizem na região consultas eleitorais mais confiáveis.
Yves Gonzalez-Quijano é Docente de literatura árabe moderna na Universidade Lyon-II, tradutor, pesquisador do Instituto Francês do Oriente Próximo e diretor do Grupo de Pesquisas e de Estudos sobre o Mediterranêo e o Oriente Médio (Gremmo), autor do blog Culture et politique arabes ( http://cpa.hypotheeses.org).