O chavismo por sua base
Ao lado do chavismo de Estado, derrotado nas urnas, existe outro, enraizado nas classes populares. Uma eleição perdida bastaria para que ele desaparecesse?Yoletty Bracho e Julien Rebotier
Ao longo dos dezesseis anos que se seguiram à chegada ao poder de Hugo Chávez, em 1999, a Revolução Bolivariana criou as condições para seu próprio teste, por baixo, por meio da promoção do “poder popular”. Essa mobilização não foi inventada pelo Estado chavista. Ela reconheceu um lugar que se tornou progressivamente significativo. Surgiram no primeiro plano novos cidadãos: eles têm a pele escura, como Chávez; são pobres e vivem nos bairros populares. Ainda que o chavismo não tenha conseguido operar as transformações estruturais necessárias para um Estado que vive de renda (ver artigo na próxima pág.), seu legado histórico poderia ter elevado essa faixa da população ao posto de categoria central da vida política.
O Estado chavista não reformou as instituições existentes: ele produziu novas, paralelas, que levam a sério os ideais de democracia participativa. Os Conselhos Locais de Planejamento Público, criados em 2002, entram, por exemplo, em concorrência com as prefeituras na definição do uso do solo na escala dos bairros. Em 2006 apareceram os Conselhos Comuns,1 que coordenam as diferentes estruturas de participação popular (missões, comitês culturais etc.) e estabelecem projetos de organização local para os quais recebem diretamente recursos do Estado central: uma ilustração da política voluntarista do chavismo na afirmação do poder popular. Esses conselhos lançam as bases das “comunas”, as aglomerações de Conselhos Comuns surgidas em 2009, depois do “Estado comum”, concebido como a conclusão da substituição das velhas instituições pelas novas, fundadas no poder popular.
A priori, é difícil imaginar a coexistência dessa mobilização cidadã e do Estado chavista sem supor uma subordinação da primeira. De fato, as tensões são muitas, tanto na teoria como na prática. Mas a experiência bolivariana se caracteriza pelas interações inéditas entre, de um lado, um Estado que cumpre um papel historicamente determinante na organização da sociedade e, de outro, movimentos populares recentemente reconhecidos (mesmo que resultem de trajetórias antigas) que não sacrificam sua autonomia tão rápido como às vezes se diz. Desenvolve-se assim uma prática política distinta daquela do poder tradicional.
Três anos depois de chegar ao poder, Chávez controlou uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pela oposição, o patronato e as mídias privadas.2 Sua reação? Ele realizou uma renovação profunda dos funcionários da administração: a prioridade foi dada à militância, à fidelidade ao projeto chavista. A revolução se apoiou, inclusive, nos movimentos sociais – aliados que nem sempre são tranquilos…
No “Acampamento dos Pioneiros” do Movimento Pobladores (“Moradores”), o sábado não é um dia de descanso. Para responder ao problema da moradia urbana, o Pobladores promove a autogestão e a autoconstrução. O dia começa muito cedo. Desde as 7 horas da manhã, os participantes (na maioria mulheres) de todas as idades preparam os materiais de construção, empilham blocos e constroem paredes, ou preparam a comida. A pausa para o almoço acaba rápido, pois no fim do dia chega o momento da assembleia semanal. Ali recebem pessoas “em estágio”, vindas de outros acampamentos menos desenvolvidos, em busca de experiência. Discutem as regras que regem a vida em comum durante os meses (por vezes os anos) de trabalho difícil. Debatem, enfim, o modo como o acampamento pode se articular com as opções de desenvolvimento produtivo promovidas pelo Estado, para que o campamento seja, mais do que um lugar de habitação, um espaço de desenvolvimento humano e político.
Assimetria entre o chavismo e os movimentos
O Movimento Pobladores se impôs com uma demanda na contracorrente: receber recursos públicos para construir moradias populares. Essa demanda implica a legalização do Estatuto da Terra, o acesso aos meios econômicos e aos materiais necessários, assim como alianças duráveis entre o movimento social e os dirigentes políticos, de modo a garantir a perenidade do projeto. O desafio é ainda maior, visto que no próprio interior da constelação chavista outros movimentos promovem uma construção de moradias subvencionada pelo Estado e garantida por empresas privadas, nacionais e estrangeiras.
A tensão entre autonomia e dependência é, então, constitutiva da democracia “participativa e protagonista” venezuelana (quer dizer, aquela que permite não somente participar da democracia, mas também se tornar protagonista dela). Estaríamos errados em imaginar que o Estado chavista controla os movimentos populares: a dependência é mútua, sutil, sempre em mutação. Frequentemente assimétrica, mas sempre presente.
A cultura, a comunicação e a habitação figuram entre os setores nos quais o poder popular penetrou mais; por outro lado, o Exército ou o setor dos combustíveis escapam em grande parte à sua influência. Em certas condições, e sem presumir as formas que ele pode tomar, esse poder pode levar a classe política a prestar contas e permitir limitar a corrupção. Ele agora está bem enraizado na Venezuela, independentemente da cor do partido no poder.
Amplamente majoritária na Assembleia Nacional depois das eleições de dezembro, a oposição já desenha os contornos de seu programa legislativo: modificar a Lei das Terras (para devolver os terrenos improdutivos que tinham sido recuperados pelo Estado), abortar a Lei das Sementes (que, até o momento, barra o caminho da Monsanto) e desfazer a lei sobre o trabalho, uma das últimas adotadas enquanto Chávez era vivo.
Henrique Capriles, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2012 e 2013, jogava melhor que seus acólitos golpistas de peso com esse “chavismo de base” quando pretendia ser a voz do “povo mais humilde” (Correo del Caroní, 4 out. 2014). Muito habilmente, ele evitava dar atenção ao ponto 162 do programa de sua coalizão,3 que visava precisamente revisar o conjunto das leis adotadas pelos chavistas a fim de “restaurar a natureza democrática da República”. É preciso descobrir que espaço vai ocupar o povo nessa democracia. Ou melhor, que espaço o povo está disposto a ceder para a oposição.