O colapso do sistema soteropolitano de transportes coletivos
Atual modelo de transporte coletivo por ônibus de Salvador vem aprofundando a exclusão – e consequentemente o racismo
A crise dos transportes coletivos, no Brasil, não foi criada pela pandemia de Covid-19, como volta e meia dão a entender os gestores municipais. Ela apenas escancarou a falência de um modelo de financiamento e gestão do serviço, ainda entendido como mercadoria ao invés de um direito social. O colapso de vários sistemas metropolitanos de transportes coletivos entre 2020 e 2021 poderia ter sido evitado, como o foi em vários países.
Salvador é uma das capitais onde essa crise foi mais sentida. Apesar de ter remodelado todo o sistema em 2014, ainda no primeiro mandato do agora ex-prefeito ACM Neto (DEM), a drástica queda do número de usuários – e consequentemente da arrecadação – levou a uma das três concessionarias que exploravam o serviço a quebrar em 2020, obrigando a prefeitura a intervir e a finalmente subsidiar o sistema. A questão é que essa e as demais concessionárias já vinham enfrentando dificuldades desde quando foram contratadas, o que se refletia na péssima qualidade do serviço prestado.
Ingênua esperança
Em 2014, às pressas e de forma autoritária, foi finalmente concedida a exploração do serviço de transporte coletivo por ônibus de Salvador. Após mais de quarenta anos operando por meio de autorizações – um instrumento precário – pelas mesmas empresas e famílias de sempre, esperava-se que a partir dali, após a nova contratação, teríamos um serviço fiscalizado pelo poder público, além de transparência e controle social.
Tudo ocorreu no interstício entre as mobilizações (e revoltas) contra os aumentos tarifários de 2013 e a emenda constitucional que elevou o “transporte” ao status de direito social em 2015. Foi por isso que a Prefeitura de Salvador, provavelmente prevendo mudanças drásticas no setor, correu contra o tempo para garantir que nada mudasse e que o sistema continuasse a ser operado pelos mesmos de sempre, agora resguardado por um contrato de 25 anos.[1]
Sabíamos que a licitação estava sendo feita sem superar a maioria dos retrocessos, pois não apontava para um transporte coletivo enquanto direito social ou instrumento de combate às desigualdades. Mesmo assim havia uma ingênua esperança de que teríamos pelo menos um documento para dizer à prefeitura e aos empresários o que devia e o que não devia ser feito, superando o caos que reinava. Isso porque o antigo sindicato do setor, SETPS (Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador), havia capturado os poderes executivo e legislativo da cidade, empurrando sistematicamente suas vontades e suas taxas de lucro exorbitantes à custa do empobrecimento e da exclusão da população.
Entretanto, além de esses avanços terem sido rapidamente descartados, novos retrocessos se somaram aos de sempre. Uma sucessão de usuras, incompetências e silenciamentos se sobrepuseram, impedindo que a cidade se debruçasse sobre o problema e exigisse dos responsáveis uma solução satisfatória. O pouco de pressão popular e as escassas críticas dos especialistas não foram suficientes para convencer a Prefeitura de Salvador de que o modelo adotado estava fadado ao fracasso. Seriam então as transformações econômicas e tecnológicas que se encarrariam de expor os equívocos.
Imobilidade urbana
Ora, no ano da licitação, os índices de imobilidade urbana já eram alarmantes, ou seja, a parcela da população soteropolitana que não tinha motivo para se deslocar ou dinheiro para pagar a tarifa dos transportes coletivos (ou para utilizar qualquer outro meio de transporte motorizado) se aproximava de um terço, segundo a última Pesquisa Origem-Destino divulgada.[2] Essa fração passou a ficar restrita aos seus territórios de proximidade, diminuindo a escala da cidade usufruída, restando-lhes apenas os seus bairros, na maioria das vezes geograficamente periféricos.
Sabemos que Salvador está longe de ser uma cidade policêntrica, apesar de a economia dos setores populares se estender por todo o território. Os empregos, atividades de lazer e cultura, universidades, além dos serviços de saúde especializados, continuam concentrados em poucos bairros. Na prática, não poder pagar pela tarifa dos ônibus ou não poder utilizar qualquer outro meio de transporte para além dos seus próprios pés (ou uma bicicleta), isso significa estar excluído de diversas formas. Obviamente a parcela da população que mais sofre com o insulamento social soteropolitano é formada por mulheres e pessoas negras.
Subsídios cruzados
Os índices de imobilidade urbana são agravados pelo fato de o desemprego e a informalidade também terem aumentado nos últimos anos, tendência que vinha de antes da pandemia. Se é óbvio que um trabalhador desempregado não tem dinheiro para pagar a tarifa do ônibus ou utilizar os aplicativos, muito menos para adquirir e manter um automóvel, a situação dos trabalhadores informais não é muito diferente. São eles que recebem os menores rendimentos, têm trabalhos incertos e intermitentes. Consequentemente, acabam pagando a tarifa cheia dos transportes coletivos, pois não são beneficiados pelo vale-transporte.
É isso que chamamos de “subsídio cruzado”: uma parcela dos usuários acaba pagando pelos deslocamentos de outra. Dito de outra forma, os trabalhadores informais – os mais pauperizados entre aqueles que continuam utilizando os transportes coletivos – acabam pagando pelo direito à meia passagem dos estudantes e pelo direito à gratuidade dos idosos e de algumas categorias profissionais. É um mecanismo cruel de subsídio que tira dos trabalhadores mais pobres para dar a outros um pouco menos pobres, mas que em nada afeta os mais ricos.
Essa crueldade empurra muitos trabalhadores informais, especialmente do sexo masculino, para as motocicletas. Outro fator se soma a esse, pois as motocicletas se tornaram ferramentas de trabalho por conta da uberização da vida e das cidades. Apesar de isso fugir dos propósitos deste artigo, o que nos importa aqui são duas consequências: a) o transporte coletivo tem se tornado mais feminino, pois são elas que persistem no sistema; e b) as externalidades negativas provocadas pelas motocicletas criam outra faceta do genocídio brasileiro, pois além de aumentar a poluição (do ar e sonora), vêm mutilando e ceifando vidas cotidianamente.
A emergência de novos modais
E já que falamos da uberização da vida e das cidades, este é outro elemento desconsiderado pela prefeitura de Salvador ao propor o seu modelo suicida de transporte coletivo ainda vigente. O transporte coletivo deixou de ser um monopólio, pois parte significativa dos seus usuários agora pode migrar com mais facilidade para outros modais. E quem não ficou insulado socialmente ou adquiriu um automóvel vem migrando para os aplicativos. Hoje não é possível pensar a mobilidade urbana desprezando essa nova forma de deslocamento e de ocupação das vias públicas.[3]
Outro fator completamente ignorado pela prefeitura de Salvador foi a chegada do sistema metroviário, cuja operação iniciou-se exatamente no ano em que foram contratadas as concessionárias dos transportes coletivos por ônibus. Sem previsão de integração modal, o Governo do Estado ameaçou implementar o seu próprio sistema de ônibus para alimentar o metrô, já que havia essa previsão no contrato de concessão. Essa medida era crucial para a sustentabilidade do sistema metroviário, já que suas linhas possuem um desenho peculiar, passando por áreas sem densidade demográfica. Sem os ônibus integrados ao metrô, este último andaria vazio.
Sem ter condições de negociar uma saída melhor, a prefeitura e as concessionárias dos ônibus acabaram aceitando uma divisão de receitas muito prejudicial a elas, tendo os recursos gastos pela população com transporte coletivo sido significativamente capturados pela concessionária do metrô, que ainda conta com subsídios regulares do Governo do Estado. Assim o metrô de Salvador consegue se sustentar em meio ao caos, enquanto os ônibus são sucateados. A consequência foi uma radical remodelação do sistema de transporte coletivo por ônibus, que de modal principal passou a ser secundário em diversos bairros, restando-lhe o papel de alimentar o metrô com linhas mais curtas. A drástica queda de receitas justificou, muito além do que deveria, os cortes de linhas e a demissões dos rodoviários.
O maior disparate
Para fechar a lista de equívocos, destacamos a medida mais disparatada. A prefeitura adotou a outorga onerosa, o que significava que as concessionárias além de não receberem subsídios governamentais para operar o sistema, deveriam transferir recursos para o poder público. Lembra daquele trabalhador informal comentado um pouco acima, vítima do subsídio cruzado? Mais do que subsidiar os deslocamentos de outros usuários do sistema de ônibus, ele também passou a custear outras despesas da prefeitura. A prefeitura de Salvador intensificou a espoliação dessa camada da população, acelerando o colapso dos transportes coletivos, incentivando a migração para os automóveis particulares (e para os aplicativos) e empurrou mais gente para a imobilidade urbana.
É verdade que poucos anos após assinado o contrato as empresas concessionárias conseguiram derrubar a taxa de outorga, assim como conquistaram a isenção do ISS, o direito de reajustar a tarifa acima da inflação e fora dos prazos contratualizados, além de não terem renovado a frota. Claro, tudo isso sem ter de abrir as contas para uma auditoria independente e séria. Ou seja, o contrato firmado em 2014 foi invalidado na prática, ficando a relação entre as empresas do setor e a prefeitura regulada apenas por Termos de Ajuste de Condutada (TAC), passando o poder público municipal a derramar milhões nas concessionárias sem nenhum planejamento ou transparência. Ainda assim a essência de modelo e o prazo de vigência de 25 anos continuam em pé.
O aumento da exclusão
É assim que o atual modelo de transporte coletivo por ônibus de Salvador vem aprofundando a exclusão – e consequentemente o racismo – em nossa cidade. E tudo isso é resultado de uma concepção mercadológica do transporte coletivo, ou seja, um produto que deve ser vendido àqueles que podem pagar. O problema é: quem vai pagar por um serviço caro, ruim, inseguro, ineficiente e desconfortável? Sim, a resposta é óbvia: somente aqueles que não podem consumir outra coisa. E quem pode fugir dos ônibus, o faz sem pensar duas vezes.
Porém, mesmo esses cativos dos ônibus não podem pagar o suficiente para bancar sozinhos toda a operação do serviço. Os custos jamais serão cobertos pelas receitas, como não o são em nenhum canto do mundo onde um transporte coletivo de qualidade é ofertado à população. Sem subsídios públicos dos três entes federativos, assim como fazem com a saúde e a educação, em vez de subsídios cruzados, não há saída para o iminente colapso das metrópoles brasileiras causado pela falência dos transportes coletivos.
Enquanto o transporte coletivo não se transforma em uma política pública federal, e já adianto que apenas isso não será suficiente, é preciso anular o contrato vigente em Salvador e abrir uma discussão na cidade objetivando encontrar um modelo seguro, eficiente, acessível, integrado, sustentável e com tarifas módicas. Esse modelo terá de ser fortemente subsidiado, inclusive adotando a Tarifa Zero para setores vulneráveis ou até mesmo para toda a população,[4] o que só pode vir de uma forte mobilização popular que provoque uma reforma tributária de caráter progressivo objetivando redistribuir a renda e transferindo recursos para os serviços públicos. Já é assim que funciona em boa parte do planeta.
Daniel Caribé é administrador público, doutor em arquitetura e urbanismo e um dos coordenadores do Observatório da Mobilidade Urbana de Salvador.
[1] Escrevi mais detalhadamente sobre os impactos das escolhas feitas pelos mandatários de Salvador no artigo “Financiamento do transporte coletivo soteropolitano: o melhor exemplo da falência de um modelo”, publicado na coletânea Mobilidade antirracista (2021).
[2] Os dados sobre mobilidade urbana em Salvador são escassos, precários e desatualizados. A Pesquisa Origem-Destino utilizada é do longínquo ano de 2012. Enquanto 33,3% das mulheres eram consideradas imóveis, entre os homens o índice caía para 24,1%. A média total ficou em 29,1%. Este e outros dados podem ser consultados acessando a Síntese dos Resultados Pesquisa de Mobilidade na Região Metropolitana de Salvador.
[3] Costuma ser ignorado, inclusive pelos mais críticos do campo da mobilidade urbana, o fato de a migração para os transportes individuais motorizados jogar peso não somente no espraiamento das cidades, mas também no endividamento dos trabalhadores. A mobilidade urbana já consome mais dos orçamentos familiares do que a alimentação, pelo menos era o que indicava a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE de 2018, portanto antes de a inflação ter voltado a ser um fantasma brasileiro. Então, longe de ser uma liberdade, o automóvel é mais uma prisão, além de um risco à própria vida e à vida dos outros.
[4] Sobre a Tarifa Zero, ver minha tese de doutorado, Tarifa Zero: Mobilidade Urbana, Produção de Espaço e Direito à Cidade (2019).