O desafio da saúde na restauração da Unasul
As terríveis consequências econômicas e sociais da pandemia de Covid-19 convidam à reflexão e exigem a retomada da saúde entre as prioridades da nova Unasul
Cumprindo com o mote “o Brasil está de volta na política externa”, já nos primeiros cem dias da presidência Lula, o Brasil reingressou na Celac e na Unasul; participou ativamente do comitê executivo da Organização Mundial da Saúde, onde apresentou inédita proposta de resolução sobre saúde dos povos indígenas; e participa ativamente da elaboração de um tratado sobre pandemias e da reforma do Regulamento Sanitário Internacional. Além disso, o presidente visitou a Argentina, o Uruguai, os Estados Unidos e a China e até o final de abril visitará Portugal e Espanha.
Em 6 de abril de 2023, o presidente Lula assinou decreto por meio do qual promulgou o Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), firmado pela República Federativa do Brasil, em Brasília, em 23 de maio de 2008. O Congresso Nacional havia aprovado o tratado por meio do decreto legislativo 159, de 13/07/2011, mas o governo brasileiro só depositou o instrumento de ratificação ao tratado junto aos Estado-membros da Unasul, agora em 6 de abril de 2023, entrando em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, em 6 de maio de 2023.
O Brasil prepara uma cúpula de chefes de Estado dos 12 países da América do Sul para a última semana de maio, em Brasília, para que decidam como será a nova Unasul. Para Celso Amorim, assessor do presidente para a política exterior, o Brasil buscará fazer voltar uma realidade que nunca deveria ter sido interrompida. Certamente estarão com Lula nesta histórica reconstrução: Fernandez, da Argentina; Boric, do Chile; Arce, da Bolívia; Petro, da Colômbia; Maduro, da Venezuela; Santokhi, no Suriname; Ali, na Guiana; como também Benítez, do Paraguai; Lacalle, do Uruguai; Lasso, do Equador; e Boluarte, do Peru.
Em seu mais recente livro, Celso Amorim1 diz que a América Latina e o Caribe, mais especialmente a América do Sul, constituem nossa circunstância imediata, e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade. Assevera Amorim que a reconstituição de “laços de confiança” é um dos principais desafios de uma política externa que defenda os interesses nacionais sem abandonar a solidariedade e o respeito por nossos vizinhos. Superar as brutais desigualdades e romper com a dependência externa é, e continuará a ser por muito tempo, uma tarefa de todos que desejam uma América Latina mais justa e autônoma. A nova geopolítica mundial, com seus traços de multipolaridade e de rivalidade bipolar entre Estados Unidos e China, apenas reforça essa necessidade.
Os estudiosos e ativistas da diplomacia da saúde esperavam a materialização do prometido (e agora cumprido) retorno do Brasil à Unasul para arregaçar mangas e trabalhar no contexto do “conceito ampliado de saúde” no espaço da diplomacia regional. Com isso, oferecerá propostas de como a saúde deve aparecer na governança da “nova” Unasul. Certamente também nosso Ministério da Saúde o fará. A ida da ministra Nísia com a delegação de Lula à reunião de adesão do Brasil à Celac, em janeiro, em Buenos Aires – de onde retornou com um amplo acordo sobre saúde, firmado com a ministra da saúde da Argentina – sinaliza que a restauração da cooperação em saúde na Unasul também receberá tratamento prioritário.
A imediata restauração do Conselho de Saúde da Unasul, para estabelecer ações conjuntas entre os países se justifica, não só pelos inúmeros benefícios que trará à saúde das populações da América do Sul, como o fez no passado2, como para enfrentar, hoje e no futuro, o terrível impacto da desordenada (ou inexistente, melhor se diria) ação multilateral regional no enfrentamento da pandemia de Covid-19: dos quase 7 milhões de mortes registradas pela enfermidade no mundo até aqui, nada menos do que 2,95 milhões ocorreram nas Américas, e cerca de 1,4 milhão nos países da América do Sul, segundo a OMS, onde pontearam Brasil e Peru.
Escrevi em 2020, neste Diplomatique que, com a ascensão de governos conservadores em países da América do Sul entre 2015 e 2020, ocorreu um desmonte de conquistas sociais históricas, dada a implementação de ajustes dito estruturais na maioria dos países afetados pela onda neoconservadora, que corroem orçamentos fiscais da saúde, educação e outras políticas sociais, desmantelando sistemas de saúde viáveis e produtivos de outros tempos e produzindo imensas desigualdades na área. O Brasil retoma o SUS, que se consagrou globalmente. A Colômbia e o Chile encetam reformas profundas nos seus sistemas de saúde, exaustos com os maus resultados de sistemas concebidos na esteira da onda neoliberal dos anos 1980 e promovidos em regimes autoritários ou direitistas.
Olhando para o futuro, escrevi no mesmo artigo que são necessários esforços concertados para alcançar a cobertura universal de saúde e financiamento sustentável para a mesma, lidar com a crescente carga de doenças não transmissíveis, incluindo a saúde mental, e abordar a resistência antimicrobiana e os determinantes da saúde, econômicos, sociais e ambientais, bem como a poluição do ar e da água e o saneamento inadequado. Disse também que sistemas de saúde universais, integrais e equitativos, financiados com recursos públicos têm respondido melhor à epidemia do que “não-sistemas”, que segmentam a assistência à saúde da população, em função do seu poder aquisitivo ou proteção social propiciada pelo emprego.
Todas estas questões permanecem desafiando cada uma e todas as nações sul-americanas. Esta nova onda rosa progressista que se afirma na região traz a expectativa de ações intersetoriais articuladas, única forma de verdadeiramente melhorar a saúde da população, que é condicionada, de um lado, por acesso universal e equitativo a serviços integrais de saúde, e de outro, pela melhoria da qualidade de vida, quanto à renda, habitação e saneamento e outras políticas sociais, econômicas e ambientais que tenham compromisso de favorecer a saúde humana e planetária.
O Brasil tem o que compartilhar, com a retomada no setor saúde de estratégias e/ou programas como o de atenção primária integral (saúde da família), imunizações, produção local de insumos e o programa Mais Médicos, entre outros, todos já lançados e financiados nos primeiro 100 dias do governo Lula. De outro, no campo mais amplo de políticas sociais que favoreçam a saúde por ações extra setoriais, no âmbito do conceito ampliado de saúde, o relançamento, em novas bases, do Bolsa Família – que traz exigências em saúde, como imunização completa e pré-natal de mulheres grávidas; do Minha Casa, Minha Vida; e do desmatamento zero até 2030. Para financiar os programas sociais, anuncia um novo arcabouço fiscal e uma reforma tributária progressiva.
Mais recentemente, o governo anuncia a retomada do Conselho Econômico e Social e a Comissão Nacional do Desenvolvimento Sustentável, ao que se deve agregar uma câmara de saúde, considerando que todas as políticas impactam a saúde das pessoas e famílias, o que deve ser tomado em conta na formulação e implementação das mesmas, estratégia conhecida como saúde em todas as políticas.
Os novos governos progressistas da América do Sul têm concepções de políticas econômicas, sociais e ambientais diversas, mas com alto grau de convergência. As terríveis consequências econômicas e sociais da pandemia de Covid-19 e as ameaças concretas de novos processos pandêmicos que, a mão-cheia, mostraram que não respeitam fronteiras, convidam à reflexão e exigem a retomada da saúde entre as prioridades da nova Unasul que se anuncia. Contará, certamente, com unânime apoio da comunidade sanitária brasileira e dos especialistas em saúde global e diplomacia da saúde da região.
Paulo M. Buss é médico, doutor em ciências, professor emérito e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz; diretor do Centro de Relações Internacionais (CRIS, Fiocruz); membro titular da Academia Nacional de Medicina; presidente da Associação Latino-americana de Saúde Global (ALASAG)
Mas a entrada do país na UNASUL depende de aprovação do congresso, o acordo foi encerrado em 2019. Conseguiu a entrada por meio de um decreto