O destino da garota desconhecida
Ken Loach abre o percurso. Sempre engajado, o cineasta se incumbiu do destino crepuscular dos trabalhadores britânicos. Daniel Blake é o exemplar dessa classe que viveu seus tempos heroicos. Envelhecido e adoentado, a grande façanha do hábil carpinteiro se resume a enfrentar os meandros das agências oficiais para obter o auxílio-doença.
Não se pode acusar o cinema de ter passado ao largo dos reveses recentes no mundo do trabalho. A precarização das relações produtivas e o desemprego maciço ganharam as telas em filmes como Recursos humanos (Cantet, 1999), Segunda-feira ao sol (Aranoa, 2002), As neves do Kilimanjaro (Guédiguian, 2011) e A lei do mercado (Brizé, 2015). O ano de 2016 foi generoso nas estreias e somou mais três obras significativas à lista: Eu, Daniel Blake (Ken Loach), A garota desconhecida (Luc e Jean-Pierre Dardenne) e Toni Erdmann (Maren Ade). Curiosamente, as três dão dimensões distintas ao mundo do trabalho e, a despeito das especificidades estéticas, vale arriscar alguns comentários de circunstância sobre os filmes.
Loach filma ao rés do chão, onde as preocupações se encerram nas necessidades básicas: comida, aluguel, salário etc. Essas limitações objetivas definem todo o raio de ação e de anseios dos personagens. A câmera confere relevo a cada momento daquelas pessoas comuns.
É nesse contexto que Daniel Blake encenará o declínio de sua classe e verá ascender a nova geração operária, precarizada e disforme. Isso fica nítido no contraste entre a maestria e o orgulho profissional de Blake e a força de trabalho indefinida e lábil da jovem desempregada Katie. O ofício de Blake está obsoleto e fadado à loja de antiguidades, junto com sua caixa de ferramentas. O saber apurado pela experiência não tem mais valor, nem mesmo para preencher um formulário eletrônico. A reestruturação produtiva atropela Blake e todo o operariado. Mas para o velho trabalhador o algoz vem na figura do preposto estatal, isto é, a burocracia impessoal e inescrutável que dificulta o acesso ao benefício legal. Eis aí o modelo assistencial neoliberal que leva às raias da humilhação a petição por um direito. Diante dessa opressão burocrática e pétrea, Loach ampara Blake nas relações de amizade e vizinhança. Todavia, apesar do acento nos laços comunitários, o filme tem seu ápice numa reação (a pichação do prédio estatal) solitária e patética. As organizações sindical e política não medeiam mais a luta.
Para os irmãos Dardenne, a política não é o que interessa. Em seus filmes, o mundo do trabalho é a arena do conflito ético, e não de classes. A garota desconhecida segue a regra. Nele, Jenny Davin é uma médica dedicada que atua na periferia de Liège, lidando com situações sociais contundentes, que incluem trabalhadores precarizados, imigrantes ilegais e outros segmentos à margem; entretanto, sua maior preocupação é com o rigor do exercício profissional. Para o bom profissional, a eficiência técnica importa mais do que o paciente.
Esse apego profissional é estremecido após a morte na proximidade de seu consultório de uma jovem migrante negra, que estaria viva não fosse o protocolo médico. A partir daí, movida pela culpa, Davin inicia uma jornada exaustiva para identificar a jovem desconhecida e sanar o que é para ela a maior das injustiças, isto é, um ser humano viver, ou morrer, sem uma identidade. Aqui o filme inicia outra fase. Se no primeiro momento o protocolo profissional predomina, no segundo o que sobressai é a flexibilização e a informalidade. Davin se despe dos procedimentos rígidos e se investe da autoridade médica para inquirir pacientes na busca de informações sobre a jovem. A função profissional se converte em função investigativa a serviço de uma trama policial e da purgação de uma culpa.
No entanto, ao contrário do filme policial, o objetivo aqui não é solucionar um crime, mas desvendar a vítima e reparar uma indignidade humana que transcende as urgências históricas. Se há toda uma causalidade que leva à exploração de migrantes ilegais, a médica não se sente responsável por isso. O deslocamento ético é outro: parte-se do cidadão circunscrito aos interesses imediatos (profissional) e chega-se a uma ordem de valor universal e indeterminado, a Humanidade.
Enfim, Maren Ade sobe à alta cúpula corporativa. Seu universo é o dos white collars. Os trabalhadores aqui são consultores contratados, e bem pagos, por empresários e acionistas para conferir roupagem tecnocrata às suas deliberações, antes de tudo, políticas. Ines está dentro desse figurino. Com formação e experiência, ela assessora uma multinacional petrolífera em operações na Romênia. E logo poderá estar em qualquer outro lugar, nos mais variados ardis para atender à voragem do capital.
O filme procura abordar exatamente essa disponibilidade integral do trabalhador da alta gestão. A vida de Ines se confunde de modo camaleônico, até a intimidade, com a dos decision makers. Ines, porém, não faz parte deles. Dia e noite, ela é submetida a mandos e desmandos, inclusive sofrendo atitudes machistas e outras afrontas. Sua reação, contudo, é serena e às vezes até bem-humorada. A consultora está longe das caracterizações maniqueístas; não é a carreirista cínica e sem escrúpulos nem a angustiada reprimida. As situações constrangedoras a que é exposta mostram que o diploma é menos relevante do que sua maleabilidade e impassibilidade. Esses são os atributos que garantem o sucesso e a sobrevivência na rede corporativa.
A perturbação fica por conta do pai, travestido de Toni Erdmann, que invade, por meio do burlesco, a rotina de Ines e tenta resgatá-la para as emoções simples e familiares. Não obstante seu tom ferino, para Erdmann o questionável não é o caráter da exploração perpetrada nas ações empresariais que sua filha legitima. A vida alternativa não tangencia a política.
Concluída esta breve incursão fílmica e em que pese o esforço crítico dos diretores, percebe-se que as obras não apostam em mudanças por meio do acirramento das contradições inerentes ao mundo do trabalho. A ousadia se intimida diante do movimento do capital, cuja lógica acumulativa: promove cortes orçamentários, restringe direitos e atendimento público (como o Estado informatizado, terceirizado e restritivo de benefícios que subjuga Daniel Blake); invade e desestabiliza países, provoca migração desenfreada e sujeita legiões ao trabalho ilegal (como a garota africana escravizada e prostituída em Liège); especula e interfere nas economias periféricas (como a reestruturação produtiva que Ines assessora e resultará em desemprego e precarização das relações de trabalho).
Em suma, Blake, Ines e a jovem africana se irmanam no mesmo drama. O capital tem dessas coisas. Unifica o destino de trabalhadores e povos.
Para estarem à altura do embate, os filmes poderiam ter sido mais pródigos na abertura de sentidos narrativos. De todo modo, as obras são contribuições necessárias e ávidas de intervenção – o que é um bom sinal nos dias que correm.
*Roberto Noritomi é sociólogo e doutor em Sociologia da Cultura.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}