O dia em que o Fed se tornou socialista
Na iminência de uma quebradeira apocalíptica, os chefes da Reserva Federal e do Tesouro americano jogam no lixo os sagrados dogmas liberais e orquestram um resgate-monstro que inclui nacionalizações de dar inveja a Hugo Chávez. Mas o cassino financeiro continua, com apostas cada vez mais altas
Só mesmo a alma ingênua de uma criança ou a fé cega dos adultos mais inclinados à credulidade poderia levar a sério a postura marcial das autoridades americanas perante a falência do banco de investimentos Lehman Brothers – um comportamento substituído, apenas dois dias depois, por uma coreografia de desespero. A recusa de socorro a uma poderosa instituição financeira à beira da falência era apenas uma aposta pontual e extraordinariamente arriscada, em uma palavra, insustentável, se o objetivo era assinalar uma reviravolta estratégica com a recusa em prestar socorro a um banco em apuros.
É verdade que existem nos acontecimentos atuais motivos de sobra para perder a cabeça, e que a sucessão cada vez mais rápida de situações críticas, cada qual percebida em tempo real como o “ápice” da crise, para ser em seguida apagada por outra situação ainda mais grave e mais espetacular, acontece de forma a mergulhar os que regulamentam essas atividades em abismos de desordem e desorientação.
Os finais de semana de urgência extrema se seguem a um ritmo acelerado – no dia 16 de março, a falência do Bear Stearns; 12 de julho, o primeiro ato do salvamento da Fannie Mae e da Freddie Mac, as duas gigantes do crédito hipotecário; em 6 de setembro, o segundo ato (leia o artigo de Ibrahim Warde, página 12); 13 de setembro, a quebra do Lehman Brothers e a venda da Merrill Lynch; 16 de setembro (e não tinha se passado nem uma semana), o resgate da empresa de seguros American International Group (AIG). Em cada uma dessas ocasiões, a dobradinha Secretaria do Tesouro e Reserva Federal (o banco central americano, Fed, como é abreviado em inglês), acredita ter superado a si mesma, somente para descobrir logo depois que nada está resolvido e que ainda resta tudo por fazer.
Em algo concordamos: tudo foi apresentado até aqui em performances espetaculares, ainda que perfeitamente inúteis como tentativas de interromper de uma vez por todas a derrocada das finanças dos Estados Unidos. Tudo isso foi feito a um custo que não é simplesmente financeiro, uma vez que nem o presidente do Fed, Ben Bernanke, e muito menos Henry Paulson, antigo presidente da Goldman Sachs, adorno absoluto de um capitalismo absoluto, transformado no secretário do Tesouro de uma administração de ultra-direita, nunca teriam imaginado vivenciar um dia o doloroso paradoxo de se verem tratados de “socialistas” toda vez que fossem obrigados a fornecer socorro público às finanças do setor privado.
E é sem dúvida também para pôr um fim a essa infâmia que tanto um como o outro, desde a semana do dia 8 de setembro – no momento em que, esgotados com o mega-resgate de Fannie-Freddie, ainda tinham de dar conta do quebra do Lehman –, decidiram dar um basta, indicando aos banqueiros e especuladores que a etapa seguinte seria negociada sem eles.
Redescobrindo as vantagens do Estado
Deixando de lado pudores pessoais, é possível compreender a posição da dupla Fed –Tesouro. As autoridades se inquietam, não sem razão, diante dos precedentes gerados por cada uma de suas intervenções. Preocupam-se com a idéia de que os banqueiros poderiam deixar o barco correr e navegar confortavelmente para a falência, cientes de que no último momento “será preciso” salvá-los, como já foi feito com a Bear Stearns e Fannie-Freddie. A moral se ofusca nessas situações e o fato é que é difícil manter uma atitude serena diante do espetáculo de uma comunidade financeira arrogante e enriquecida nos tempos de bonança, agora se protegendo no colo do poder público – esse mesmo poder público que ela costuma chamar de aberração sovietóide – e reivindicando do Estado mais proteção e novos privilégios.
Como acontece com freqüência, as considerações morais são o caminho mais seguro para desviar de uma análise acertada – o que não significa, de modo algum, que a indignação diante desses fatos seja ilegítima, nem, muito menos, que esse sentimento de repulsa moral não deva ser capitalizado como um recurso político para revidar vigorosamente mais tarde. Somente mais tarde, contudo, depois de esclarecer analiticamente o que está acontecendo – e, ainda assim, sem alimentar muita expectativa… O que está acontecendo atualmente é uma situação de risco sistêmico, ou seja, a possibilidade de que, dada a densidade dos negócios entre bancos, a quebra de apenas um ator dê início, por ondas de choque sucessivas, a uma cascata de falências.
Para os liberais que ainda não entenderam a mensagem: quando se diz “risco sistêmico”, a palavra “sistêmico” significa que se trata do “sistema”, ou seja, da totalidade das instituições financeiras privadas, potencialmente envolvidas em uma derrocada global. Acrescente-se, caso seja preciso ser ainda mais explícito, que, uma vez em ruínas o sistema financeiro, e portanto o crédito, extingue-se simplesmente a possibilidade de qualquer atividade econômica. Toda e qualquer atividade. Essa afirmação é suficiente para que se imagine a enormidade das conseqüências?
Reféns dos especuladores
Por mais desagradável que isso possa parecer, não existe alternativa à constatação de que, uma vez estourada a bolha financeira e armado o risco sistêmico, o banco central perde quase toda a margem de manobra. O que o setor financeiro está fazendo com a sociedade americana é um ato comparável à tomada de reféns em troca de um resgate. Os bancos privados atrelaram o destino de toda a economia à sua própria sorte. No caso de se darem mal, a derrocada do sistema financeiro será a derrocada da economia como um todo. Essa tomada de reféns, cujo efeito é o de forçar a intervenção pública em socorro aos bancos, constitui o próprio coração da crise. É por isso que uma re-regulamentação financeira significativa só pode ser feita se tiver como objetivo estratégico impedir que as bolhas se refaçam – porque depois será tarde demais. A única maneira de lutar contra um risco sistêmico é erradicá-lo. Quando esse risco se reconstitui e, sobretudo, quando ele se ativa, a batalha está perdida.
Na falta de qualquer manifestação de uma vontade séria de erradicar o perigo, a Reserva Federal (Fed) ao menos está consciente do grau de submissão estratégica em que se encontra no jogo em que se opõe às finanças privadas – um setor em crise, mas que, paradoxalmente, fica mais forte quanto mais se agrava sua agonia. O Fed também se submete, com dor no coração, às imposições sucessivas dos diversos bancos que desabam, implorando por socorro e ameaçando causar uma catástrofe irreparável se essa ajuda não vier.
Em março de 2008, o banco Bear Stearns ameaçou dar um calote de US$ 13,4 trilhões em transações sobre derivativos de crédito – dez vezes mais que o Gerenciamento de Capital de Longo Prazo (LTCM, na sigla em inglês) que quase arrasou as finanças americanas à bancarrota em 1998. Em julho, as agências hipotecárias Freddie e Fannie ameaçaram não cumprir com seus US$ 1,5 trilhão em dívidas. Muitas instituições financeiras de grande porte tinham investido nesses títulos: fundos de pensão (aposentadorias), fundos mútuos (cadernetas de poupança comuns) e até mesmo bancos centrais estrangeiros. Para a sobrevivência do sistema financeiro americano como um todo, era essencial que esse calote fosse evitado.
O secretário do Tesouro, Henry Paulson, não precisa que se faça um desenho para entender: US$ 25 bilhões dos cofres públicos foram alocados no dia 12 de julho para linhas de crédito, no que deveria ser um início de recapitalização. Em 6 de setembro, descobriu-se que essa recapitalização demandaria provavelmente… US$ 200 bilhões. Perfeito! Então o contribuinte entrará com esses 200. “I didn’t want to have to do that”, confessou Paulson, assustado ao ver a iminência de se tornar um socialista. “Eu não quis ser obrigado a fazer isso” – mas ele o fez mesmo assim. Na verdade, não teve escolha.
Já no caso do Lehman Brothers, tratava-se de uma instituição financeira bem menor que as agências hipotecárias ou o Bear Stearns. A dupla Fed – Tesouro imaginou que, dessa vez, tinha encontrado uma chance de “ter escolha”. Era uma oportunidade imperdível. Tratava-se, por isso, de fazer com que o Lehman Brothers pagasse – e caro – por todos os casos precedentes, torcendo-lhe o braço com toda a cólera que as autoridades tinham guardado para si mesmas nas vezes anteriores. Ainda assim, a “oportunidade” Lehman pedia igualmente uma avaliação cuidadosa antes de “deixar morrer”. Levando em conta seu tamanho e a vulnerabilidade a que ficariam sujeitos outros bancos, seus avalistas, uma falência do Lehman constituiria ou não um risco sistêmico?
Sem dúvida, o valor dos derivativos em poder do Lehman era infinitamente menor do que a quantia envolvida no caso do Bear Stearns – US$ 29 bilhões contra US$ 13,4 trilhões. Mas, ainda assim, essa seria a maior falência da história dos Estados Unidos. Evidentemente, os números reais do calote seriam bem menores, pois o Lehman possui ativos e o procedimento de liquidação consiste exatamente em realizá-los.
Mas quanto valem concretamente esses ativos? Eis a questão. Existiam no mínimo US$ 85 bilhões em títulos “podres” (dos quais US$ 50 bilhões de derivativos de subprime). Pode-se indagar, porém, o quanto restará, de fato, ao fim do processo de liquidação. Essa pergunta permanecerá no ar ainda que as autoridades americanas, conscientes do risco de que os valores despenquem ainda mais, busquem uma liquidação “ordenada”, ou seja, que se prolongue por vários meses.
Grande “queima” de ativos financeiros
Isso não impedirá a degola que se anuncia severa. E o problema vai muito além do Lehman. A norma contábil do mark-to-market, ou seja, a contabilização instantânea dos ativos pelo valor de mercado obrigará todas as demais instituições financeiras a nivelar os ativos que ainda recheiam suas carteiras pelos preços da “liquidação Lehman”, fechando tudo com o deságio suplementar que já se antevê.
Ao perigo das desvalorizações em cascata se junta o risco dos avalistas, decorrente do fato de que as múltiplas transações nas quais o Lehman estava implicado permanecerão em aberto. E, por fim, há o risco da cobrança dos CDS (Credit Default Swap), derivativos que oferecem aos compradores garantia contra a perda de valor de seus ativos. Se existem segurados, é porque existem, na outra ponta, agentes de seguros. Uma falência dará início às operações implacáveis de cobrança dos CDS emitidos para proteger a dívida do Lehman, e as indenizações a serem pagas se prenunciam rechonchudas.
Isso é realmente deplorável, pois, segundo mostra a experiência, o mecanismo de seguros de CDS, impecável no papel, revelou-se dos mais duvidosos na prática. E o mercado dos CDS é de extrema fragilidade, o que provoca grandes sobressaltos toda vez que se recorre a esse mecanismo. Infelizmente, no momento em que ocorreu a falência do Lehman, acabava-se de sair da nacionalização de Fannie-Freddie, em meio aos receios de que esse não era o único grande perigo para o mercado dos CDS.
É justamente com esse conjunto de ameaças que a dupla Fed – Tesouro contava para se esquivar do salvamento do Lehman e para “convencer” os banqueiros a absorvê-lo, uma vez que era o interesse deles que estava em jogo no episódio. Nada se fez e nenhum plano privado foi lançado depois daquele fim de semana frenético. Wall Street, vale a pena lembrar, não passa de uma abstração que encobre um conjunto de interesses particulares, às vezes divergentes. O plano de recuperação, cujo fracasso conduziu o Lehman à bancarrota, previa a recompra do “banco bom” pelo Barclays e pelo Bank of America, e a recuperação do “banco ruim” mediante um financiamento coletivo a ser obtido na praça.
Porém “a praça” – entendida aqui como aqueles que, não tendo os meios para comprar os melhores pedaços do bolo, ainda assim eram pressionados a engolir as desvalorizações dos piores pedaços – não aceitou ser meramente um figurante disposto a pagar um alto custo para permitir que dois sortudos (o Fed e o Tesouro) escapassem com as jóias da coroa, deixando para outros a dura tarefa de consertar o castelo em ruínas.
Partida de pôquer entre trapaceiros
Na verdade, todo o fim de semana de 12 a 14 de setembro foi apenas uma gigantesca partida de pôquer entre trapaceiros: o Fed – Tesouro, que demonstrou sua vontade de não se mexer; e Wall Street, que de início interpretou esse jogo, equivocadamente, como uma estratégia de tensão para fazer aumentar o envolvimento dos bancos privados. Tudo isso em meio ao conflito dos bancos privados que se dividem entre os oportunistas, que buscam retomar os negócios, e os financistas que, constrangidos, preferem encolher os ombros a dar flores aos primeiros, mas sabem igualmente que seus próprios interesses não são indiferentes à sobrevida do Lehman. Assim, as condições estavam mais do que reunidas para tornar improvável a coordenação do salvamento.
Então o Fed – Tesouro não estava mentindo. Aplicou o laissez-faire. Não era mais socialista. Mas o que as autoridades financeiras ainda não sabiam naquele momento é que aquela postura duraria apenas dois dias. O curioso é que estivessem tão empenhadas em acreditar nisso. Durante quase uma semana a dupla Fed – Tesouro foi vigorosamente encorajada por todos seus admiradores, um tanto desorientados devido aos caminhos que as autoridades financeiras tinham sido obrigadas a trilhar até então. O editorialista do Financial Times comentou com satisfação: “Chegou a hora em que as autoridades devem sair de cena. (…) O que foi feito até agora já foi suficiente”. Mas não é o Financial Times quem decide se “o que foi feito é suficiente” ou não, é a situação! A verdade é que a situação Lehman ainda não trouxe à tona seus verdadeiros riscos, e a aposta do Fed está longe de estar ganha no momento em que crê repudiar seu socialismo – nos bastidores, amadurecem outras situações que já ameaçam tornar a reverência parecida ao adeus dos companheiros da canção: reversíveis e repetitivos.
O baile de gala do retorno não esperou nem 48 horas para suceder o baile de despedida – uma festa e tanto! A seguradora AIG é um exemplo perfeito para ser estudado. Todas as aberrações das finanças contemporâneas aparecem em forma concentrada nesse episódio, um verdadeiro espetáculo. Como a profissão de agente de seguros andava muito monótona, a AIG criou um ramo de “produtos financeiros” e se lançou de corpo e alma no mercado dos seguros CDS.
De repente revela-se que a AIG, em pleno período de turbulência financeira, está comprometida em US$ 441 bilhões em papéis, dos quais US$ 57,8 bilhões ligados aos subprimes. Inútil dizer, suas perdas são colossais: US$ 18 bilhões nos três trimestres anteriores, e o trimestre em curso se anuncia tenebroso, uma vez que, entre a cobrança dos CDS e as desvalorizações recíprocas, a falência do Lehman poderia fazer subir a perda acumulada da AIG à casa dos US$ 30 bilhões – aí incluídos os US$ 600 milhões de prejuízo decorrentes da desvalorização completa de ações da Fannie-Freddie, que se seguiu à sua nacionalização.
Nessas condições, as agências de classificação de risco (rating), obcecadas pelo esforço de refazer a virgindade apagando os muitos erros do passado, não hesitaram em rebaixar severamente a nota da AIG. A medida teve o efeito imediato de obrigar a seguradora depositar as chamadas margin calls, a fim de compensar a deterioração de sua condição de avalista dos contratos (CDS) em que estava implicada. Mas como a AIG poderia desembolsar de uma hora para outra de US$ 10 bilhões a US$ 13 bilhões de dólares em margin calls quando ela mesma estava se esvaindo?
Por um dia, o Fed – Tesouro, ainda inebriado por sua recente “dessocialização”, mas ao mesmo tempo um pouco abalado pela amplitude dos desgastes que se anunciavam, planejou coordenar um socorro privado no qual os bancos Goldman Sachs e JP Morgan levantariam no mercado um crédito de US$ 75 bilhões para a AIG.
É preciso recordar que, no dia anterior, os dez principais bancos da praça tinham sido instados a passar um chapéu de US$ 70 bilhões para sustentar a liquidação “ordenada” do Lehman. A inviabilidade do socorro privado era previsível e a necessidade da intervenção pública, inevitável. Nem por isso a forma extrema que essa operação assumiu foi menos surpreendente. Mediante um empréstimo de US$ 85 bilhões da Reserva Federal (Fed), o Estado adquiriu 79,9% do capital da AIG.
Em sua brevidade, o comunicado do Fed de 16 de setembro não deixa de ser vertiginoso. Existe algum precedente para o fato extraordinário de o Fed emprestar dinheiro a um não-banco? Por aí se mede a amplitude das concessões que a crise arrancou às autoridades. Em março, o Fed decidiu, pela primeira vez desde 1929, admitir o refinanciamento dos bancos de investimento (algo que, até então, somente os bancos de depósitos tinham direito). Agora, uma empresa de seguros era autorizada a comparecer ao guichê.
Estatização de dar inveja a Chávez
Mas o que veio em seguida foi ainda mais atordoante. Por um lado, o Fed e o Tesouro vinham demonstrando uma unidade de ação próxima da fusão pura e simples. Por outro lado, a participação federal de 79,9% na AIG aparecia como uma “contrapartida” do empréstimo do Fed. Mas desde quando um empréstimo é concedido em troca de uma parte do capital? O empréstimo era para ser pago – o reembolso estava garantido por todos os ativos da AIG, e o valor da multa foi fixado de propósito para estimular que o dinheiro fosse devolvido o mais rápido possível. Quando a dívida se extinguir, a União continuará a ser a proprietária de 79,9% das ações. Na prática, o que ocorreu foi uma expropriação! Até que, para uma recaída no socialismo, essa foi, de fato, uma expropriação das mais agressivas.
O New York Times relatou que Henry Paulson e Ben Bernanke tinham “um ar sombrio” quando vieram a público na noite de 16 de setembro para anunciar o plano. Compreende-se: comparado com eles, o presidente venezuelano Hugo Chávez é um marionete liberal a serviço do capitalismo: quando ele nacionaliza, ele paga!
Naquele momento, as acrobacias ultra-socialistas dos nossos dois compadres estavam apenas começando. Agora a crise já tinha ultrapassado, em muito, a fase das tensões ligadas à falta de liquidez – aquelas situações com as quais o Fed é bem preparado para lidar. Trata-se, desta vez, de uma crise de solvência generalizada que tomou conta do setor financeiro no momento em que as perdas faraônicas afetaram profundamente as próprias bases do capital. Uma busca frenética de recapitalização estava em andamento desde março e, do Bear Stearns ao Lehman, passando por Fannie-Freddie, todos os momentos críticos tiveram origem na dúvida sobre a capacidade dos bancos envolvidos de angariar os capitais necessários.
Para que haja recapitalizações, é preciso existirem recapitalizadores! A realidade é que não há muita gente capaz desse tipo de esforço. Os outros bancos da confraria lutam entre si para conservar o pouco de capital que lhes resta. Os fundos soberanos, dos quais muito se esperava (um pouco em demasia, talvez), meditaram sobre suas últimas desventuras. A entrada sensacional desses fundos, em março, repousava sobre a hipótese de que os preços dos ativos imobiliários e das ações haviam tocado o fundo – sabe-se o que veio depois, e as desvalorizações que resultaram disso os convenceram a pensar duas vezes desde então. Restava… o Estado, o único que pode fazer o “trabalho sujo” quando ninguém mais pode ou quer.
Mas Karl Bernanke e Vladimir Ilich Paulson não percorreram até o fim a sua estrada de sofrimentos. A boina de estrela vermelha não combina nem um pouco com o estilo dos dois, mas ao menos eles compreenderam que deviam mantê-la bem presa à cabeça todo o tempo necessário, ao contrário dos loucos liberais, partidários furiosos do “deixa quebrar” e de uma moral purificadora. Não existe senão uma leitura a ser feita desse imperativo indumentário, e por um suculento paradoxo quem deve fazê-la é um antigo manda-chuva do Goldman Sachs: a finança liberalizada é estruturalmente de uma instabilidade explosiva; ela não apenas desencadeia catástrofes repetitivas, como ainda é incapaz de enfrentá-las sozinha.
Somente o Estado, por um gesto de soberania pura, extrapolando totalmente o direito comum, permite-se fazer o impensável –nacionalizar à vista para só pagar mais tarde, captar unilateralmente todos os dividendos, inclusive aqueles oriundos de ações que não lhe pertencem (!) –, pode pôr fim aos rendimentos crescentes da destruição alimentada pelos mecanismos do divino mercado. Ou é a boina com a estrela vermelha ou é o Armagedon.
Antes a boina, pois já se pode ver a aurora radiosa que se eleva sob nossos olhos. A coluna dos subprime nem terminou de desfilar e se anuncia a chegada dos Alt-A-Mortgages. Intermediários entre os prime (empréstimos-padrão) e os subprime, os créditos Alt-A simulam o pedido de algumas informações sobre a situação dos que emprestam, mas toleram uma resposta incompleta ou com alguns “erros”. Segundo um estudo do Mortgage Asset Research Institute, a quase totalidade das carteiras de Alt-A (estabelecidas pelos corretores para os bancos) exageram as rendas dos que tomam empréstimos em pelo menos 5% … e mais da metade os sobrevaloriza em mais de 50%!
Na categoria Alt-A, destacam-se os créditos ditos Option-ARM (Option Adjustable Rate Mortgages – algo como Hipotecas com Opção de Índice Ajustável) que têm a característica de oferecer ao credor várias possibilidades em matéria de formas de pagamento. Uma delas, particularmente tentadora, propõe para os primeiros anos não somente a dispensa do início do reembolso do principal, mas ainda não pagar nem a totalidade dos juros – pode-se começar com taxas provisórias de 1%, às quais é muito difícil resistir.
Divida empurrada com a barriga
Evidentemente, todas essas facilidades dão lugar a um adiamento da dívida para os próximos futuros, e o reset (reajuste da taxa) é extremamente doloroso. O tomador de empréstimo médio na Option-ARM vê seus pagamentos aumentarem de um momento a outro em 63%. A agência financeira Bloomberg avalia em 16% os atrasos de pagamento de mais de dois meses para os Alt-A emitidos desde janeiro de 2006. Essa inadimplência deve acelerar no próximo ano e durar até 2011, levando em conta a duração do reset, que é de três a cinco anos. Ainda um pequeno detalhe: havia US$ 855 bilhões de subprime, ao passo que já há US$ 1 trilhão de Alt-A…
“Fannie” possui ou garante, dentre esses empréstimos, US$ 340 bilhões. Wachovia opera US$ 122 bilhões em Option-ARM. Countrywide, instituição financeira que escapou da falência pelas mãos do Bank of America (o salvador do Merril Lynch), US$ 27 bilhões. WaMu (Washington Mutual), US$ 53 bilhões, dos quais 13% vão a reset ano que vem; e, repare, WaMu teve sua nota Standard&Poor’s rebaixada ao nível junk bond – o mais baixo.
Não é por acaso que essa lista, de qualquer modo incompleta, encerra com a WaMu, pois ela é uma caixa de poupança – poupança do público, que já começa a sentir a virada da maré: os money market funds, até ontem considerados tão líquidos e seguros quanto o crédito à vista, enfrentam agora uma avalanche de pedidos de retirada desde que os clientes viram seus haveres derreterem devido à total desvalorização dos títulos do Lehman, em que esses papéis tinham sido astuciosamente investidos. A multidão de poupadores em pânico: eis o que tornaria o quadro de fato completo…
Sem prosseguir com esse roteiro-catástrofe, é importante considerar que as necessidades de recapitalização bancária são tão importantes, tão generalizadas, que o Estado, não somente como provedor de empréstimos, mas como acionista e recapitalizador de última instância, está diante de uma tarefa financeira cada vez menos exeqüível pelos meios-padrão. Mesmo que a União se torne, como é bem provável daqui a algum tempo, a dona da AIG, após gastar US$ 200 bilhões em uma operação similar na Fannie-Freddie, ela não poderá renovar com muita freqüência suas liberalidades, pois seus meios são limitados.
A Standard&Poor’s calcula o que poderá ser o custo total em 10% do Produto Interno Bruto! Seja sob forma de recapitalizações de todos os tipos, ou através de uma estrutura de abrigo gigante em que o setor financeiro privado trataria de consertar os seus ativos avariados, o problema é igual. Será que esses 10% do PIB serão arrancados do bolso dos contribuintes americanos, torpedeando o que resta de crescimento econômico? Ou, ao contrário, se permitirá que o déficit e a dívida públicos continuem a inchar indefinidamente, com o risco de tornar os títulos do Tesouro e o dólar, daqui a pouco, infreqüentáveis, o que transformaria a crise das finanças privadas em uma crise das finanças públicas, adicionada de crise monetária?
Só existem soluções ruins, ao menos de acordo com o que dizem os cânones usuais da ortodoxia econômica. Por isso, os nossos amigos de boina irão até onde for preciso para fazer o que deve ser feito. É por isso, também, que os dogmas que tantos convertidos adoraram estupidamente serão logo jogados no lixo. Recapitalizações por meio de emissões monetárias, encampações puras e simples, controle de câmbio – se as coisas derem errado, talvez a gente ainda não tenha visto nada. A história progride por vias bizarras. Devemos manter os olhos bem abertos, pois estamos entrando em território desconhecido.
*Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.