Em 19 de julho passado, o Presidente da República editou, com força de lei, a Medida Provisória (MP) nº 495. Na exposição de motivos, o governo federal se dispõe a utilizar seu poder de compra para induzir processos de inovação, desenvolvimento científico, produção e aperfeiçoamento de produtos e serviços. Esse objetivo seria alcançado pelo estabelecimento de condições jurídico-institucionais que, ao atribuir margem de preferência de até 25% em todas as aquisições do governo a produtos e serviços portadores de tecnologias desenvolvidas no Brasil, incentivem a inovação e o desenvolvimento tecnológico no país.
A MP promove alterações na Lei nº 8.666/93 (Lei das Licitações Públicas) e na Lei nº 10.973/04 (Lei de Inovação), possibilitando o uso do poder de compra do governo federal – que somente em 2009 empenhou mais de 57 bilhões de reais em empenhhos – para induzir a aquisição de produtos nacionais competitivos, na perspectiva de estimular um processo sinérgico entre indústria, centros tecnológicos, instituições de pesquisa aplicada e universidades.
A MP introduz na Lei nº 8.666/93 o conceito de desenvolvimento nacional como um dos objetivos da licitação, ao lado da busca da proposta mais vantajosa e da igualdade de oportunidade para todos os fornecedores interessados.
Como destacou em editorial o jornal Folha de São Paulo, “a política de compras governamentais é utilizada por muitos países como instrumento de desenvolvimento econômico e incorporação de tecnologia. Como as compras públicas tendem a ter um peso grande na economia, seu direcionamento local pode contribuir para viabilizar cadeias industriais que necessitam de escala, o que é frequente em setores de tecnologia mais avançada.”
A nossa capacidade de produção de conhecimento é estimulada a partir do momento em que o marco regulatório nacional facilita o relacionamento do Estado com as entidades de ciência e tecnologia e empresas, e estimula convênios com agências de financiamento e fomento.
Aperfeiçoamento do marco legal
Entre o segundo semestre de 2009 e o início deste ano, um grupo de trabalho do nosso escritório formulou um diagnóstico jurídico sobre ciência, tecnologia e inovação para a Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência e para a Associação Brasileira de Ciência. O estudo aponta a necessidade de se flexibilizar os processos de compra do poder público, além de se estabelecerem contratos com prazos de duração e condições condizentes com a atividade de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias, atividades sabidamente de médio e longo prazo, e sujeitas a alto grau de risco.
A urgência e relevância da MP nº 495 são evidentes. A introdução do inciso XXXI ao art. 24 da Lei nº 8.666/93 dispensa licitação para ações de estímulo e apoio à construção de ambientes especializados e cooperativos de inovação, constituição de alianças estratégicas e o desenvolvimento de projetos de cooperação envolvendo empresas nacionais, instituições científicas e tecnológicas, e organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para as atividades de pesquisa e desenvolvimento.
A MP prevê ainda o compartilhamento e utilização de laboratórios por meio de convênios ou contratos, a possibilidade de a União participar minoritariamente em sociedades de propósito específico que tenham como objeto o desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos para obtenção de produtos ou processos inovadores, assim como a sua contratação por órgãos públicos para realização de pesquisa que, inclusive, envolva riscos tecnológicos.
Acolhe, assim, urgente reivindicação da área de Ciência e Tecnologia: a possibilidade de contratações que prestigiem o processo de inovação e seus resultados
A adequação da medida provisória
Apesar da importância e da relevância da matéria, do ponto de vista político e jurídico, coloca-se a questão da utilização de medida provisória em detrimento do processo legislativo próprio do Congresso Nacional.
A partir de meados do século XVIII, um dos princípios paradigmáticos do Estado moderno passou a ser o da separação dos poderes. A formulação teórica de Montesquieu foi extremamente importante para limitar com precisão os poderes, as funções e competências do Executivo, Legislativo e Judiciário.
Em um primeiro momento, marcado pelo liberalismo econômico, o que se almejou foi a liberdade do cidadão frente ao Estado, buscando-se, também, uma racionalidade no exercício de poderes pelo Estado do Direito.
A partir da segunda metade do século XX, entretanto, a crescente constitucionalização de direitos sociais e coletivos impôs ao Estado a necessidade de forte intervenção estatal na economia e na realização de direitos.
Nesse contexto, Karl Lowenstein identifica a “imperativa necessidade” de os poderes atuarem em recíproca colaboração, tendo em vista que o fim do Estado deve ser o de promover as decisões políticas fundamentais expressas pela soberania popular. Para ele, a ideia de poderes igualmente equiparáveis e equipotentes deve ser superada pela identificação de “funções especializadas”. A especialização que a divisão funcional sugere é essencialmente relativa e deve variar de ordenamento para ordenamento. Lowenstein propõe uma nova tripartição funcional entre as instâncias da determinação, da execução e do controle das políticas públicas (policy determination, policy execution, policy control).
A questão que se coloca, portanto, é a de saber até que ponto a expansão da competência normativa do Poder Executivo encontra, no caso brasileiro, legitimação e respaldo jurídico e político.
A função legislativa do Poder Executivo
Em primeiro lugar, cumpre constatar que essa não é uma tendência verificável apenas no Estado brasileiro. Inúmeros ordenamentos jurídicos constitucionais buscam dotar o Poder Executivo de instrumentos jurídicos suficientes para lhe assegurar a possibilidade de editar normas norteadas por expectativas sociais prementes, cuja tramitação no Poder Legislativo, segundo os ritos e prazos próprios do sistema de produção de leis, implicaria demora excessiva.
A constituição italiana, no seu artigo 77, foi a primeira a prever medidas provisórias de edição do Poder Executivo. A constituição alemã, a partir do art. 76, assegura que assuntos qualificados como urgentes sejam objeto de edições normativas remetidas ao Conselho Federal, que deverá se pronunciar no prazo mínimo de seis e máximo de nove semanas. Da mesma forma, a constituição da Espanha prevê, no art. 86, que, em caso de extraordinária urgência e necessidade, o governo poderá editar disposições legislativas provisórias que tomarão a forma de decreto-lei. Os exemplos poderiam se multiplicar, remetendo-nos à constituição argentina (art. 99), chilena (arts. 32 e 62) e peruana (art. 118), entre tantos outros.
Os poderes no divã
Historicamente, no Brasil, a única Constituição em que não houve a previsão de função normativa por parte do Poder Executivo foi a de 1946, curiosamente tida por vários doutrinadores como a mais democrática e municipalista que já tivemos.
Na Carta de 1988, a sistemática de edição de medida provisória, presente no art. 62, previa a possibilidade de que, na ausência de apreciação da MP pelo Congresso Nacional e sua conversão em lei ou rejeição, o presidente da República pode reeditá-la, por decurso de prazo sem qualquer manifestação congressual.
Esse estado de coisas consolidou uma prática perversa de reedição ilimitada de medidas provisórias, oportunidade em que o governo inseria novas matérias e assuntos, disciplinas e instrumentos, tornando esse expediente um instrumento de subordinação e interferência no Legislativo pelo Executivo.
Como resultado, o Congresso aprovou emenda à Constituição (EC nº 32), colocando limites na capacidade legislativa do Executivo.
Mesmo assim, continuamos com a edição excessiva de medidas provisórias, como demonstra o quadro.
A Emenda Constitucional nº 32/01 apenas aparentemente refreou a atividade legislativa e normativa do Executivo, pois, como se percebe, o governo Lula editou atos iniciais em quantidade superior à de seus predecessores, mas não reeditou nenhuma.
Inovações da Emenda Constitucional nº 32
O processo de edição e tramitação da Medida Provisória foi efetivamente refinado: se antes, após o período de 30 dias, ela podia ser reeditada; agora, se o Congresso Nacional sobre ela não se pronunciar até 45 dias de sua entrada em vigor, a pauta do Parlamento fica paralisada, privilegiando, em regime de urgência, a apreciação ou rejeição de texto de medida provisória.
Contudo, existe a necessidade dos poderes constituídos funcionarem exatamente no limite de suas atribuições constitucionais. O art. 2º da Constituição Federal assevera constituírem-se em poderes harmônicos e independentes entre si o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, destinatários, em termos obrigacionais, de todos os deveres previstos no texto constitucional. Isso equivale a afirmar que nossa Constituição deixou claro que as funções indicadas a cada poder são preponderantes, portanto não exclusivas, não afastando a necessidade de um controle recíproco entre suas respectivas atuações.
Apesar da reforma introduzida na Constituição por meio da Emenda Constitucional nº 32, o Congresso Nacional continua refém das edições indiscriminadas do Poder Executivo. Por que isso acontece?
A edição de grande número de medidas provisórias decorre do fato de o processo de formação da vontade legislativa ser sabidamente moroso, e atende à necessidade de ações urgentes por parte do Poder Executivo, que, desse modo, não se vê refém da ação legislativa.
Além de indicar a necessidade de uma reforma política, isso ocorre porque o Poder Legislativo não elege uma pauta de prioridades, inclusive em consonância com os demais poderes, e tampouco compromete-se com o acompanhamento da execução da lei, relevando pouco ou nenhum compromisso com a qualidade, aplicação e eficácia daquilo que produz. Ou seja, o próprio Poder Legislativo não desenvolve indicadores de sua produção, o que lhe permitiria revê-la e aperfeiçoá-la constantemente.
Nesse contexto, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), no exercício de seu papel de controle qualificado normativo e político, verificar os excessos legislativos e normativos eventualmente cometidos pelo Poder Executivo.
No entanto, o que fez, também, o STF? No julgamento da ADIn 2150-8/DF, por exemplo, decidiu que: “os requisitos de relevância e urgência para edição de medida provisória são de apreciação discricionária do chefe do Poder Executivo, não cabendo, salvo os casos de excesso de poder, seu exame pelo Poder Judiciário”.
Lamentavelmente, esse posicionamento ainda não foi revisto, o que implica afirmar que o STF deixa de cumprir seu papel de contrastar, como lhe garante a Constituição, se a ação legislativa do Executivo desbordou ou não dos limites previstos.
Tudo isso aponta para um mau funcionamento das instituições republicanas e a necessidade de seu aperfeiçoamento, para além de uma necessária reforma política, trata-se de um problema de cultura das instituições.
Participação cidadã
A solução dos problemas descritos acima precisa contemplar a promoção e o fortalecimento dos mecanismos de controle social e da possibilidade de a cidadania atuar como intérprete qualificado da Constituição.
Como esclarece Peter Häberle, qualquer cidadão tem legitimidade para aferir a correção da interpretação do texto constitucional, seja funcional ou material, e reivindicar, por meios institucionais previstos no próprio texto da Constituição, que sua finalidade seja observada e concretizada. Na sua teoria, a cidadania é recolocada como aspecto central de toda a ordem jurídica e a norma constitucional passa a ser vista como algo orgânico, vivo, apreendido e exercitado pelo indivíduo e pela coletividade.
Basta verificarmos o nosso texto constitucional para identificarmos a potencialidade desta tese: os cidadãos podem participar utilizando desde o direito de petição assegurado no artigo 5º, até a possibilidade de qualquer pessoa participar dos trabalhos legislativos, tomando parte ativa nas comissões parlamentares, o que está previsto no artigo 58, §2º, incisos II, IV e V da Constituição. Outro exemplo é a possibilidade da manifestação de terceiros, na qualidade de amicus curiae, em processos de relevância, no Supremo Tribunal Federal.
Evidente que, como revela a experiência democrática contemporânea, deve sempre haver a possibilidade de o Executivo legislar em situações excepcionais. Entretanto, é necessário que ele volte a ter o poder de iniciativa legislativa e veto como seu principal instrumento na relação com o Congresso.
Na questão de fundo do presente artigo – a imperiosa e urgente necessidade de destravar o relacionamento entre o Estado e o universo da ciência e tecnologia no Brasil –, o Congresso Nacional tem excelente oportunidade de avançar e marcar seu território.
Cumpre ao Poder Legislativo discutir o texto da medida provisória já em tramitação, inclusive no âmbito de comissões parlamentares, em contato direto com a comunidade, instituições de ciência e tecnologia, agências de fomento e outras entidades envolvidas para que possa aperfeiçoar seu texto e, com isso, dar significativa contribuição ao marco jurídico legal da ciência e tecnologia no país. Atuação imprescindível para se dar cabal execução às tarefas e aos deveres impostos ao Estado nacional, previstos no art. 218 da Constituição Federal.
Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.
Guilherme Amorim Campos da Silva advogado, é mestre em Direito do Estado pela PUC/SP, sócio do Rubens Naves, Santos Jr. – Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.