O discurso da privatização
As tragédias de Mariana e da Ponte Morandi, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo
A discussão sobre a privatização das empresas estatais brasileiras, de forma geral, tem sido realizada de forma maniqueísta: um lado argumenta que o setor público é eficiente, e o outro, que é ineficiente; uma parte afirma que as empresas dão lucro, a outra, que causam prejuízo ao Estado; uma parcela diz que a venda de ativos públicos resolve o problema de déficit nas contas públicas, enquanto a outra proclama o contrário.
O discurso da superioridade do desempenho do setor privado em relação ao público e dos prejuízos causados pelas estatais tem carga ideológica pesada e desconsidera o que essas empresas representam para o país. As estatais desempenham papel fundamental no desenvolvimento da sociedade e são, ao mesmo tempo, mecanismo de política econômica e externa, já que podem desenvolver funções importantes na geopolítica internacional. E isso porque são essas empresas que viabilizam grandes investimentos de longo prazo; oferecem serviços essenciais à vida; asseguram um nível de concorrência adequado (oferta e preço) em mercados concentrados; investem em ciência, tecnologia e inovação; atuam como instrumento de políticas anticíclicas; asseguram o controle de bens escassos que são elementos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva; atuam em nome do interesse e da soberania nacionais; e tomam decisões empresariais orientadas pelo interesse coletivo, e não só pelo lucro.
Muitos setores de atividade econômica, em função de características intrínsecas, precisam de altos investimentos com longo prazo de maturação, como ocorre com a construção de estradas e ferrovias. Em muitas situações, o investimento não interessa à iniciativa privada, mas é fundamental para o desenvolvimento econômico e social de uma região e, por isso, a sociedade decide arcar com os custos.
Existem ainda serviços essenciais à vida – como captação, tratamento e distribuição da água e geração, transmissão e distribuição de energia elétrica – que, sob pena de colocarem em risco a economia do país e a sobrevivência da população, não podem ser tratados como uma mercadoria qualquer.
A Constituição brasileira define o fornecimento de uma série de bens e serviços como propriedade/competência do Estado – União, estados e municípios. Entre eles, estão as jazidas e demais recursos minerais; potenciais de energia elétrica; tratamento e distribuição de água e coleta de esgoto; gestão dos recursos hídricos; infraestrutura aeroportuária; serviços e instalações nucleares; serviços de transporte; e serviços postais.
Para assegurar a oferta e preços adequados, é preciso considerar que alguns setores têm estrutura de mercado muito concentrada: quando não são monopólios naturais, são segmentos em que há poucos participantes com expressivo poder de mercado (oligopólios), principalmente em função de barreiras à entrada de novos atores. Essa é uma razão adicional para que o Estado tenha participação nesses mercados.
Empresas e centros de pesquisa estatais são fundamentais para economias modernas, pois realizam investimentos em projetos de ciência, tecnologia e inovação, pouco atrativos à iniciativa privada, uma vez que requerem longos períodos para pesquisa e desenvolvimento e se caracterizam por elevada incerteza. Assim, os recursos destinados por empresas estatais são decisivos em qualquer projeto de desenvolvimento que almeje a redução da dependência tecnológica de outros países.
A atuação e os investimentos estatais também podem ser fatores de estabilização econômica, do nível de emprego e da renda, à medida que, por não obedecerem apenas à lógica de mercado e lucro, asseguram um mínimo de expansão da demanda agregada, atuando como instrumento de políticas anticíclicas.
Além disso, bens escassos e que são insumos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva, em especial petróleo, gás e derivados, são estratégicos para o desenvolvimento econômico e social. Os poucos países que detêm grandes reservas e competência para explorá-las procuram protegê-las e utilizá-las da melhor maneira possível.
Importante lembrar que as estatais diferem das empresas privadas na medida em que, pela própria natureza, devem tomar decisões orientadas pelo interesse coletivo, e não apenas por critérios econômico-financeiros. No debate sobre privatização, a questão do lucro diante do interesse coletivo merece muita atenção. As tragédias de Mariana, com o rompimento da Barragem de Fundão, erguida pela Samarco, subsidiária da Vale (Vale do Rio Doce, enquanto era estatal), empresa privatizada nos anos 1990, e da Ponte Morandi, também sob controle privado, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo.
Não à toa, hoje duas tendências são observadas no mundo: 1) em nome do interesse e da soberania nacionais, vários países têm adotado medidas de restrição ao investimento estrangeiro em setores estratégicos. A China é um exemplo. Por meio das grandes empresas estatais, o país tem aplicado uma política de investimento em nível mundial; 2) é enorme o número de casos de reestatização dos serviços públicos (835 casos) para resolver os problemas de ineficiência da gestão privada no fornecimento dos serviços à população.1
A análise de experiências em países desenvolvidos mostra a viabilidade de diferentes tipos de gestão no setor público, com controle social, que reduziram acentuadamente problemas relacionados à corrupção e à apropriação indevida por interesses privados. É possível gerir empresas estatais de forma eficiente, sob a perspectiva do interesse público.
Por fim, dado o caráter público, as empresas estatais estão sujeitas à influência dos grupos políticos que ocupam diferentes esferas de poder, o que torna imprescindível o desenvolvimento de mecanismos que aprimorem gestão, controle e participação social, e, consequentemente, garantam maior engajamento da sociedade civil organizada.
*Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, Fernando Amorim Teixeira, Gustavo Teixeira, Iderley Colombini Neto e Paulo Jäger são técnicos do Dieese e componentes do grupo de estudos da entidade que analisa a questão das estatais. Texto produzido com base na Nota Técnica 189 do Dieese, “Empresas estatais e desenvolvimento: considerações sobre a atual política de desestatização”