Lula livre, o discurso do resgate de um Brasil feliz
Com este texto inauguramos uma série com análises de discursos das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos produzidas pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). A primeira análise é sobre o que diz o ex-presidente e candidato pelo PT, Luis Inácio Lula da Silva:
O estilo Lula não é tecnocrático, nem acadêmico. Ele articula constantemente experiência pessoal e emoção com questões econômicas, políticas e sociais numa linguagem clara e direta, de esclarecimento, que se dirige ao racional, e de mobilização, que se dirige à emoção. Em situações como a das caravanas, destacávamos que tem se construído uma narrativa quase bíblica e dramática, de devoção e simbiose entre Lula e o povo.
Luís Inácio Lula da Silva, homem, branco, 72 anos, nascido em Caetés, Pernambuco, retirante nordestino, torneiro mecânico sem curso superior, sindicalista desde os 24 anos, fundador da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores, ex-deputado federal constituinte, disputou por três vezes a presidência da República antes de vencer as eleições e ocupar o cargo por dois mandatos (entre 01/01/2003 e 01/01/2011). Deixou seu último governo com o índice recorde de 87% de aprovação popular[1], emplacando por duas vezes seguidas sua sucessora, Dilma Rousseff. Enfrentando as “forças do atraso” nas sequelas do golpe legislativo, jurídico e midiático de 2016, foi escolhido como candidato a disputar as eleições de 2018 pela coalizão do PT com o PCdoB e PROS, tendo como vice o ex-Ministro da Educação e ex-Prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do seu partido.
Procuraremos neste artigo analisar o discurso político de Lula candidato em 2018 – entendendo discurso como um conjunto que envolve texto e contexto, fala e performance – a partir, principalmente, de um corpo formado por três práticas discursivas recentes: primeiro a Caravana Lula pelo Brasil realizada entre setembro de 2017 e fevereiro de 2018 como uma prática única e complexa; depois uma entrevista dada a Folha de S. Paulo algumas semanas antes da sua prisão; e por fim, a fala e a performance do dia 7 de abril de 2018 proferida em frente ao sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, pouco antes de aceitar a ordem de prisão.
Em nossa análise utilizaremos as categorias propostas por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2007, 2014, 2015) de “significantes vazios”, “cadeias de equivalência” e “fronteiras políticas” que demarcam a luta antagônica pela hegemonia que se expressa na disputa entre discursos políticos. Nesta concepção “toda identidade se constitui pela diferença… é relacional … demarca uma exclusão…e demanda um outro como seu “exterior constitutivo” (Mouffe, 2014). Nesse sentido, o que confere identidade a um discurso político é a estruturação de um “outro” em oposição ao qual se afirma. O que para Mouffe implica em identificar “como articular as diferenças com o fim de criar uma cadeia de equivalência entre diferentes lutas?” (Ibid). Uma cadeia de equivalências que se constitui pela aglutinação de diferentes demandas em torno de uma delas, com potencial para funcionar como um significante vazio, na medida em que perde sua singularidade originária para significar todo o conjunto de demandas, muitas delas, quando analisadas isoladamente, irreconciliáveis e contraditórias. Por isso, “cadeia de equivalências” e “significante vazio” são categorias relacionadas ao conflito político antagônico, que se aglutinam nesse conflito e só tem existência dentro do conflito. Nesse sentido, a lógica de construção de um sujeito político se dá sempre pela articulação de cadeias de equivalências entre diferentes demandas coletivas, dentro da luta pela hegemonia.
Para Laclau e Mouffe, é através da oposição, da negação e do conflito (que sempre envolve a emoção) que se estruturam um “Nós” e um “Eles”, e que uma “cadeia de equivalência” entre diferentes demandas se torna possível. E não por um “acordo de vontades”, ou algo como um “mínimo denominador comum”, ou qualquer consenso entre sujeitos iguais e esclarecidos que argumentam segundo a razão.
Dessa forma, seguindo a abordagem proposta por Laclau e Mouffe, é a partir desse “corpo” formado pela Caravana Lula pelo Brasil[2], pela entrevista à Folha de S. Paulo[3] e pela fala e performance do ato no Sindicato dos Metalúrgicos[4], que construímos uma síntese interpretativa do discurso lulista nas eleições de 2018. Esta reconstrução procura entender: o diagnóstico que esse discurso faz do momento político atual, o prognóstico para superá-lo, a fronteira com a qual delimita o “eles” – aqueles que têm produzido os problemas que assolam o país – da construção do “nós” – isto é, a construção da identidade dos seus esperados apoiadores, assim como as estratégias de motivação e mobilização desse “nós” que o seu discurso político aciona.
A Caravana Lula Pelo Brasil: em busca da unidade perdida
A Caravana Lula Pelo Brasil foi realizada entre setembro de 2017 e março de 2018. Nas caravanas, Lula visitou suas bases eleitorais, produziu conteúdos para convocar essas bases, denunciar os fundamentos políticos das ações judiciais contra ele, denunciar o golpe e o desmonte promovido pelo governo Temer. E foi através da atualização da memória recente sobre o legado de seus mandatos presidenciais (incluindo o período Dilma nessa temporalidade), que articulou todos esses conteúdos com o projeto de retorno a presidência em 2018.
Nesse sentido, na caravana, Lula fala com suas bases (é nítida a sobreposição do percurso das caravanas com a concentração dos votos obtidos pelo PT nas últimas eleições) e com a sociedade brasileira beneficiada pelas políticas do lulismo (talvez já produzindo conteúdos para veiculação, se preso e impedido de fazer campanha), mas também fala a sociedade geral que acompanha os processos contra si.
Mapas das caravanas e dos resultados das eleições nacionais de 2014




Um discurso de esclarecimento, que se dirige ao racional, e de mobilização, que se dirige à emoção através de imagens que criam uma atmosfera de devoção e simbiose entre Lula e Povo.
Numa perspectiva performática, na caravana prevalece a dinâmica de um projeto de resgate onde a consigna Lula Pelo Brasil ganha um significado de resgate da memória do passado recente, para superar os problemas atuais e caminhar para um futuro melhor junto com Lula que anda pelo Brasil, com Lula que luta pelo Brasil. Essa “memória recente” é alçada como o principal ativo do lulismo, e ideia força para o próprio campo progressista onde Lula e o lulismo buscam recuperar o centro na luta pela hegemonia do campo político.
No campo imagético, primorosamente construído por Ricardo Stucker[5], a força expressiva de mãos espalmadas e braços estendidos atuam como elementos de redundância, que unem corpos e reforçam a identidade entre Lula e Povo (lentes e contraste de cores também reforçam as fusões). Essa dimensão vai se articulando em enunciados como: “não sou mais uma pessoa, sou uma ideia, …. andarei pelos pés de vocês, pensarei pelas cabeças de vocês…. não sabem que já tem milhões de mulheres e homens que pensam como Lula… Nós somos uma ideia, e eles não conseguirão prender as ideias e sonhos”.
As imagens e os sentidos envolvidos no formato da caravana produzem em torno de Lula uma narrativa dramática (reforçada também por imagens veiculadas em branco e preto), que reúnem elementos da nossa cultura e religiosidade popular, imagens de romaria, das jornadas pelos “sertões”, envolvem provação e redenção, migrações e voltas as origens, e a busca pela terra prometida, lugar de abundância, justiça e paz. A integração narrativa situa a perseguição jurídica e a prisão como um caminho de provação onde Lula, e o PT, podem sair purificados. É através dessa integração imaginária que pautas, programas e projetos de governo são articulados a significações simbólicas, como o resgate de um Brasil feliz.
A atualização do legado é operada na estrutura discursiva e performática: primeiro envolve a fala de Lula (sempre mais estratégica e voltada para o simbólico) “Uma universidade num estado gera milhares de empregos…, inclusão bancária de 70 milhões de pessoas…. O Nordeste passou a ter desenvolvimento tipo China…. O povo passou a respirar esperança…. As cisternas mudaram a convivência com a seca”. Suas falas são seguidas de figuras representativas de seus mandatos que citam seus feitos de forma mais descritiva e racional. E por fim, um grande espaço para depoimentos de pessoas do povo sobre histórias de superação relacionadas a essas políticas. O núcleo discursivo será sempre o legado, que também será visitado: institutos federais de educação, universidades federais, unidades de atendimento do Mais Médicos, assentamentos e cooperativas de agricultores familiares, etc.
É na última etapa da caravana, na região Sul e após a sentença do TRF4, que Lula fará um discurso mais polarizado, em que o processo judicial ganha espaço e passam a ser explicitamente nomeados os adversários que lhe movem uma perseguição política: a Rede Globo, o juiz Sergio Moro, o judiciário, a Polícia Federal e o Ministério Público da Lava Jato: “A imprensa foi conivente com isso o tempo inteiro. Vocês sabem, o culpado desse ódio no Brasil, o estimulador desse ódio no Brasil chama-se Rede Globo de Televisão….Não tenho nada contra a Lava Jato. Tenho contra a mentira. Digo todo dia: estou sendo vítima de uma mentira do jornal O Globo, da Polícia Federal e de um inquérito mentiroso, do Ministério Público da Lava Jato que fez uma acusação mentirosa, e do Moro, que aceitou uma peça mentirosa e fez uma sentença mentirosa me condenando.”
A Caravana Lula pelo Brasil repetiu uma abordagem inaugurada na Caravana pela Cidadania (1993-1996): uma caminhada itinerante pelo interior do país chegando onde os outros não vão e dando voz ao povo (lideranças, pessoas anônimas do povo que ganham uma identidade, mulheres e crianças que falam sobre transformações e histórias de superação e conquista vividas durante os governos Lula e Dilma). E assim promoveu uma discursividade produzida na e pela relação entre Lula e Povo: “…Luiz Inácio Lula da Silva é o entrevistador. Perguntou ao atual presidente, José Maria Ferreira de Souza, e ao ex-presidente da Aspropen, João Simael, o que diriam aos trabalhadores ali, caso estivessem disputando uma eleição à Presidência da República…”. “Dona Otacília recebeu Lula literalmente na porta de casa, onde ela estava sentada desde as 10 horas da manhã aguardando pela chegada do ex-presidente: ‘Eu fazia campanha para comprar bandeiras para ele no primeiro ano de campanha, Agora os poderosos querem derrubá-lo. Faz três dias que eu não me levantava e hoje eu me levantei, de muletas, para ver Lula’, emocionada ao escutar a voz do petista.”
A entrevista à Folha de São Paulo: conversando com o inimigo
Na entrevista para a Folha de São Paulo que aconteceu logo após a condenação de Lula no TRF4, ele afirma-se como candidato perante a elite, e exclui alternativas de apoio a outros candidatos; faz a defesa do seu legado; denuncia o caráter político das acusações contra si; identifica alguns dos seus inimigos que associa ao golpe; antecipa sua decisão de não romper com a institucionalidade jurídica; e se apresenta como candidato capaz de resgatar a normalidade democrática e retomar o crescimento econômico.
A estrutura da entrevista não segue um plano único – como no caso das caravanas – mas é a resultante de duas intencionalidades opostas no diálogo (que mascara um conflito) de Lula com um dos protagonistas por ele denunciado como golpista, um jornal cuja linha editorial historicamente o demoniza e o campo político ao qual ele pertence, e que se dirige a um leitor se não francamente hostil, pelo menos pouco receptivo ao projeto político popular que Lula representa. Isso torna singular a construção das cadeias de equivalência e da fronteira entre o “Nós” e o “Eles” antagônicos que demarcam a luta pela hegemonia. Estas cadeias e fronteiras entre o “Nós” e o “Eles” acompanham os dois eixos de redundância impostos pela entrevistadora: o primeiro de “naturalizar” a exclusão de Lula das eleições de 2018, e antecipar quem seria o Plano B; e o segundo de nomear quem faz parte do “Eles” que Lula evoca em seus discursos de campanha. Lula faz uma fala de esclarecimento – dirigida a razão – coerente com o fato de que os receptores serão também segmentos das elites desiludidos e/ou prejudicados pelo golpe, ou com perfil progressista e legalista, e outros extratos de classe média intelectualizada.
Como prática discursiva que se organiza dentro de um conflito ideológico entre entrevistadora e entrevistado, Lula se manifestará sempre em oposição às intenções da entrevistadora: afirmando-se como candidato e ator central das eleições de 2018; situando o golpe em segmentos específicos (Globo, judiciário da Lava Jato e interesses do capital americano no Pré-Sal), e apresentando uma definição dos seus adversários (do “Eles” sempre presente em suas falas), antagônica mas contingente, que mantém sempre abertos seus canais de diálogo com o opositor: empresários, patrões, elites, classes médias, adversários políticos, mercado, etc.
A entrevista se estrutura em eixos não lineares que se intercalam, em parte determinados pelo plano da entrevistadora, mas não acatados pelo entrevistado que vai impondo outras direções. Essa dinâmica marcada pela oposição estrutural entre a entrevistadora e o entrevistado muitas vezes assume características de debate entre acusador e acusado. O primeiro eixo (eixo de redundância) que faz parte do script a ser cumprido pela entrevistadora envolve naturalizar a condenação e especular sobre qual seria o Plano B (quem Lula vai apoiar?); o segundo eixo da entrevista trata do comprometimento das organizações Globo com o golpe de 2016; um terceiro eixo também redundante, e bem explorado pela entrevistadora, pede de Lula uma definição de quem seria o “Eles” dos seus discursos; segue nessa linha o quarto eixo que trata da ruptura com as elites, que seria resultante de um fracasso dos governos Lula e Dilma; no quinto eixo e também vinculado à definição do “Eles”, Lula levanta a hipótese de uma conspiração envolvendo interesses internacionais (forças externas) e os principais atores do golpe (Globo e judiciário da Lava jato); o sexto eixo trata da Lava Jato e das condenações, e mais uma vez retoma o tema Quem será o Plano B; o sétimo e último eixo trata da crise política, das eleições, retoma mais uma vez o tema do Quem será o Plano B mas, por fim, abre espaço para que Lula se posicione como candidato.
Algumas das passagens a seguir evidenciam a oposição entre exclusão ou inclusão na disputa presidencial (principal eixo de redundância): Lula: “…se eu não acreditasse na possibilidade de que a justiça pode rever o crime cometido contra mim pelo Moro e pelo TRF4,..eu não precisaria fazer política….Ou quem sabe eu virasse um moleque de 16 anos e fosse dizer que só tem solução na luta armada….eu acredito na democracia, eu acredito na justiça…eu espero que o Supremo Tribunal Federal cumprindo aquilo que é o seu papel constitucional analise os autos do processo, veja os depoimentos, veja as provas e tome uma decisão. Por isso eu tenho a crença de que eu vou ser candidato a presidente da República …na minha avaliação de conjuntura, qual é o imaginário deles….se ele não for candidato, aumenta a chance de todo mundo….veja, eles têm o poder de me fazer não ser candidato…”. Jornalista: “O senhor não abre nenhuma brecha para discussão…Antes disso o senhor não abre nenhuma brecha?”. Lula: “Não abro, não abro. Se eu fizer, minha filha, eu tô dando como fato consumado e eu não vou dar fato consumado. Eu vou brigar até ganhar…”
Em relação a definição do “Eles” a entrevistadora tenta alargar esse campo para incluir todo o mercado, classes médias e outros atores que em algum momento também sustentaram os governos Lula e Dilma. Porém, Lula resiste e desloca o diálogo para o campo do interesse nacional e da legitimidade da disputa democrática: “…não sei, são eles…..Eles são eles, eu não vou ficar nominando…e de repente eu vejo o tal do mercado assustado com o Lula…e eu fico pensando, quem é esse mercado…não pode ser o dono do Itaú, não pode ser os donos do Bradesco, não pode ser os donos do Santander…. outra coisa é você falar num bando do “iupi” que são responsáveis pela quebra do Leman Brothers, que depois desapareceram… que vivem ganhando dinheiro….pra vender papel, sem vender um produto, ou seja….eles sabem que se eu voltar a ser presidente da República, o FMI não dará palpite na nossa economia, não dará palpite.. Ah mas, o Bolsonaro é isso ou aquilo…. O Bolsonaro tem tanto direito de ser candidato como qualquer outro…. Quando eu falo “eles” e falo “nós”, ou seja, é porque você tem lado na política …”
São Bernardo, 7 de abril de 2018, Sindicato dos Metalurgicos: Lula encara as “forças ocultas” de “cabeça erguida” e “peito estufado”
O ato e a fala do 7 de abril em São Bernardo fazem parte de uma prática discursiva carregada de significados na qual tendo como marco contextual o golpe, a arbitrariedade da Lava Jato, a perseguição da mídia, uma sentença contestada juridicamente, a expedição do mandado de prisão em condições seletivas e a mobilização para a resistência. Lula vai para São Bernardo, sede do sindicato dos metalúrgicos do ABC, sua origem política e um dos marcos históricos reconhecidos do processo de redemocratização do país, encontrando-se com um público mobilizado para resistir. É um momento simbólico onde Lula apresenta sua defesa perante aquele tribunal que reconhece como legítimo: a sociedade comprometida com a democracia.
É também um momento trágico e ápice dramático: “Eu talvez viva o momento de maior indignação que um ser humano vive”, com uma defesa que move o debate do campo pessoal e privado para o campo coletivo e público. A fala se dirige a militância imediatamente mobilizada para a resistência presente (e a qual terá que dizer que não haverá resistência para que haja luta), às lideranças que compõem o “Nós”, mas também ao “Eles” adversário, e a toda a sociedade que acompanha o drama encenado.
É uma prática discursiva com mais de uma intencionalidade (apresentada na primeira pessoa, como uma peça de defesa): marca a prisão como injusta e política e demarca o “Eles” e o “Nós” da disputa coletiva na qual a prisão ganha sentido. A indignação marca o tom do discurso. A sua finalidade é mover os ouvintes para um engajamento estratégico mais que tático, para um conflito de fundo do qual a situação imediata é só um reflexo. Nesse sentido, através de uma fala ao emocional e aos afetos, utilizando linguagem popular, e argumentando pelo exemplo de experiências coletivas passadas, procura organizar a luta mais que chamar para a luta. É uma prática discursiva política olhando o futuro, mais que uma peça que procure só valorar e redefinir o passado, executada num local que simboliza o movimento popular de enfrentamento à ditadura.
Esta prática discursiva se estrutura em quatro eixos que se desenvolvem ao longo da fala: o primeiro e principal eixo de redundância situa Lula como preso político, os processos judiciais como perseguição política, e articula a perseguição ao Lula como perseguição ao povo. Na dimensão emocional, expõe e ressalta o conteúdo de injustiça e a indignação de Lula. Um segundo eixo destaca a relação de Lula com o povo, que passa por sua trajetória de vida, pelo sindicato como sua escola política, pelo seu compromisso com a formação dos trabalhadores, por seus vínculos com os movimentos sociais e pela relação histórica sua e do sindicato com a conquista da democracia. O terceiro eixo envolve a demarcação do “Nós” pelas forças aglutinadas em torno de Lula naquele momento e a articulação de uma cadeia de equivalências entre lutas, atores e demandas tendo como ponto nodal Lula Livre para a construção do campo democrático e reconquista da democracia, ao mesmo tempo que estabelece a fronteira com o campo contrário do “Eles”
Por fim, unificando o discurso, Lula utiliza sua trajetória para costurar a “mensagem central” de convocatória para a luta, através de exemplos práticos que são equiparados à situação atual: como primeiro exemplo a greve dos metalúrgicos de 1978 para lembrar que na política a vitória pode ter a aparência de derrota – naquela ocasião Lula e as lideranças foram presas, a greve não teve sucesso e as reivindicações não foram alcançadas, porém se numa perspectiva imediata a luta dos metalúrgicos, o sindicato e Lula perderam no campo econômico, ganharam muito mais no campo político – ele acrescenta: “..agora nós estamos quase na mesma situação...”. A ideia força é que, assim como a prisão arbitrária fortaleceu o lugar político dos metalúrgicos e de Lula na redemocratização, a violência de Moro e da Lava Jato fortalecerão a centralidade de Lula nos processos políticos atuais.
No segundo exemplo, Lula distingue força política e mandato ou cargo público: “…em 1986, eu fui o deputado constituinte mais votado… E nós ficamos descobrindo que …havia uma desconfiança que só tinha poder no PT quem tinha mandato…Deixei de ser deputado, queria provar ao PT que eu ia continuar sendo a figura mais importante do PT sem ter mandato… se alguém quiser ganhar de mim … é trabalhar mais do que eu e gostar do povo mais do que eu”. A mensagem é que mesmo sendo impedido de concorrer, sua centralidade no campo político vai aumentar porque sua relação com o povo só vai crescer.
A partir desses exemplos e da própria realidade vivida ali, constrói a convocatória para a luta transformando a aceitação do mandado em ato de enfrentamento político e prova de inocência: “…eu acho que tanto o TRF-4 quanto o Moro, a Lava Jato e a Globo, elas têm um sonho de consumo. O sonho de consumo é que, primeiro, o golpe não terminou com a Dilma. O golpe só vai concluir quando eles conseguirem convencer que o Lula não possa ser candidato a presidente da República em 2018”. E articula seu drama pessoal como o drama coletivo “Eu talvez viva o momento de maior indignação que um ser humano vive. Não é fácil o que sofre a minha família… a antecipação da morte da Marisa foi a safadeza e a sacanagem que a imprensa e o Ministério Público fizeram contra ela… Essa gente eu acho que não tem filho… Não tem noção do que sente uma mãe e um pai quando vê um filho massacrado…. E eu então, companheiros, resolvi levantar a cabeça… eles não querem que eu participe apenas porque tem a possibilidade de cada um de nós se eleger”.
A conclusão da fala é a própria estruturação da cadeia de equivalências do seu discurso político, com o significante vazio e ponto nodal na figura de Lula Livre: “Eles não querem o Lula…que pobre na cabeça deles…. não pode andar de avião, pobre não pode fazer universidade, pobre nasceu, segundo a lógica deles, de comer e ter coisa de segunda categoria…Eu vou atender o mandado deles… eles vão descobrir pela primeira vez o que eu tenho dito todo dia, eles não sabem que o problema desse país não chama-se Lula. O problema desse país chama-se vocês, a consciência do povo, o Partido dos Trabalhadores, o PC do B, o MST, o MTST… no dia que o Lula tiver enfarte. É bobagem porque o meu coração baterá pelo coração de vocês e são milhões de corações. Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia. Uma ideia misturada com a ideia de vocês….eu vou enfrentá-los aceitando cumprir o mandado. …quanto mais dias eles me deixarem lá, mais Lula vai nascer nesse país …esse pescoço aqui não baixa, a minha mãe já fez um pescoço curto para ele não baixar e não vai baixar porque eu vou de cabeça erguida e vou sair de peito estufado de lá porque vou provar a minha inocência”.
Reconstruindo o discurso político de Lula a partir das três práticas discursivas consideradas.
A caravana materializa a definição de “discurso” de Laclau que compreende “fala” e “ação”. Dessa forma, a síntese das caravanas talvez seja melhor expressada por suas imagens, que se aglutinam em dois eixos narrativos, liderança e identidade com o povo. O eixo da liderança é reforçado nas muitas imagens posicionadas atrás de Lula, projetando um lugar reflexivo, talvez um olhar necessário principalmente para a “nova classe média” que havia saído da linha de pobreza e que agora num caminho de volta a pobreza precisa ser conectada a política para reconquistar seus direitos (uma lacuna política denunciada pelos movimentos sociais, intelectuais e pesquisas pós-golpe). E o eixo da identidade com imagens que criam verdadeira simbiose entre Lula e Povo, e se articulam com o uso do “Eles” e do “Nós” nas suas falas – “…nós aprendemos a ter direitos e não vamos aceitar perdê-los” – colocando-o, mais que junto, dentro do povo e ao mesmo tempo no centro do povo. Assim, a Caravana Lula pelo Brasil emite mensagens afetivas, trazendo a lembrança de uma época em que éramos “mais felizes… mais autoconfiantes” associando esses sentimentos à liderança de Lula, e mensagens racionais inventariando realizações dos governos Lula (incorporando neles a gestão Dilma) traduzidas como “conquistas do povo”, num tempo em que “…aprendemos que temos direitos…”.
Na entrevista à Folha de S. Paulo a principal mensagem de Lula é uma resposta ao primeiro eixo de redundância da entrevistadora e objetivo editorial: não aceito um julgamento político, não vou renunciar a candidatura nem tomar qualquer atitude que possa significar uma submissão ao jogo do adversário. Ao longo da entrevista Lula articula uma cadeia de significantes e faz uma advertência: a prisão é para me tirar da rua durante a eleição, será mais um ônus que um benefício para meus adversários. Das três peças analisadas essa é a que dá centralidade a questões econômicas e relações com o empresariado: a questão social pouco aparece. Porém, é nessa peça que Lula melhor expressa a convicção de que sua candidatura é fundamental para a politização das eleições, e a aglutinação das forças de resistência ao golpe: “quando digo que não sou o Lula, sou o crescimento da consciência política de milhões e milhões de brasileiros. Sou o resultado disso e é por isso que não posso dizer – não sou ou quero ser”.
Na prática discursiva do dia 07 de abril de 2018 no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, antes de se dirigir à Polícia Federal, a mensagem resultante é a de que “minha prisão nos tornará mais fortes na luta”. Essa mensagem pode ser compreendida em três dimensões dirigidas a diferentes receptores. Na primeira, dirigida à militância que se mobilizou para resistir e a um “Nós” abrangente, expressa: a prisão é política, aceito o mandado como ato de coragem e luta, aceito o mandado como prova da minha inocência e confiança de que a verdade e a justiça prevalecerão. A segunda, dirigida às lideranças: “minha prisão inicia a reconstrução de um novo campo democrático”; aceito o mandado porque não aceitar fortalece a posição do inimigo, aceito o mandado porque ainda que pareça que eles ganhem estarão perdendo, porque a relação do Lula com o Povo sairá fortalecida, a vitória contra o arbítrio é certa como foi a vitória da luta pela redemocratização. E a terceira, dirigida a toda a sociedade com a construção de uma nomeação e de uma cadeia de equivalência tendo como ponto nodal o Lula Livre que passa a unificar: o resgate da ordem democrática; o resgate e consolidação das políticas sociais com o “pobre podendo comer e ter coisas de primeira”; o resgate da soberania e do protagonismo internacional; educação; saúde; emprego; trabalho; renda; e agricultura familiar.
Assim, articulando a análise das três práticas discursivas consideradas (caravanas, entrevista ao jornal, e ato no Sindicato de São Bernardo), recorremos a proposta do enquadramento (Frame analysis) implementada por Errejón Galván (2012), cientista político e um dos fundadores do movimento-partido, Podemos, na Espanha, que complementa o referencial teórico proposto por Laclau e Mouffe. Os marcos a considerar são três: um marco do diagnóstico, onde se situa o problema principal que aflige ao país; um marco do prognóstico que apresenta a proposta de solução do problema, traça a fronteira que delimita os outros (o “Eles”), e articula a identidade do “Nós”, do povo (seus futuros eleitores) que serão protagonistas da mudança; e o marco de motivação, no qual através da moralização dessa fronteira, a naturalização de um passado histórico e os elementos centrais do programa político organizam a ação para superar os problemas.
A articulação de forças midiáticas, econômicas, judiciais e parlamentares visando a interdição de Lula marca o diagnóstico do seu discurso sobre o principal problema do país: o golpe contra o povo. Lula preso fora das eleições é a volta da exclusão social e econômica da maioria aumentando as desigualdades, com “o governo que só fala em corte, corte, corte, corte… e só corta dos mais pobres”.
A partir desse diagnóstico, Lula Livre passa a ser construído como o ponto nodal do seu discurso, passando a prognosticar que com Lula livre o Brasil – e o povo – voltará a ser feliz, com inclusão social, crescimento econômico, educação, saúde, justiça e democracia. Com Lula presidente Brasil voltará a ser protagonista e admirado no mundo.
No prognóstico se traça uma fronteira que delimita inicialmente “Eles”, os outros que tem causado e causam o problema do país. O “Eles” apresenta uma cadeia de equivalências que articula: as elites, a Lava Jato do mal, a Polícia Federal e o Ministério Público da Lava Jato, a Globo e a grande mídia, a covardia e bandidagem, a justiça parcial baseada em convicções; a negação da política, a radicalização, a violência, o Brasil para poucos, que anda para trás, vira lata e deprimido, o “sonho deles”: Lula fora de 2018, pobre não poder andar de avião, não poder fazer universidade, só ter coisa de segunda categoria. Isto é: Lula fora das eleições é golpe contra o povo e perda da cidadania. Porém, apesar de crítico, o discurso de Lula apresenta uma definição dos seus adversários antagônica, mas contingente, que mantém aberto seus canais de diálogo com a classe média, com o campo político e com o mercado.
A delimitação do “Eles”, enquanto par antagônico, permite no discurso político do candidato, a construção de um “Nós” na simbiose de Lula Livre com o povo, os trabalhadores, as velhas e novas lideranças populares, movimentos sociais, sindicatos, artistas, intelectuais. Neste “Nós”, se estabelece uma cadeia de equivalências que também inclui: a verdade, a inocência, a fé na justiça imparcial baseada em provas, na política, na negociação, na paz, no Brasil que avança e é feliz, no resgate da soberania e do protagonismo internacional, no sonho de Lula: pobre comer carne, ir pra universidade, ter carro, comprar casa. Sintetizando, Lula candidato é resgate da democracia e resgate da cidadania.
No que toca à motivação, visando mobilizar os futuros eleitores, por um lado se reforça a delimitação e ideologização da fronteira que separa o “Nós” e o “Eles”: o Brasil de Lula e do povo é o Brasil feliz, com inclusão, crescimento, emprego salário, direitos e democracia, que se mobiliza contra o Brasil das elites, o Brasil deprimido, do golpe, da recessão, da exclusão, sem oportunidades, desemprego e perda de direitos. Nessa motivação se promove a atualização da memória histórica recente, centrada no legado de seus mandatos presidenciais (incluindo o período Dilma). Com eles, o Brasil aprendeu a ter direitos com inclusão econômica e social, justiça e confiança. Era o Brasil com crescimento e protagonista. A memória de um passado recente pode ser mais forte do que um presente de ameaças, acusações e privação. E as práticas discursivas da campanha procuram atualizar essa memória e contrapô-la ao presente. Uma análise do perfil demográfico dos eleitores indica também dois fatores que podem confirmar essa escolha: a grande concentração de eleitores em idade produtiva (68% entre 25 e 59 anos)[6], com demandas que potencialmente priorizam renda e trabalho. Uma transformação radical do perfil do eleitorado com a soma dos eleitores com ensino médio e superior saltando de 23% e 5% em 2002 (total de 28%)[7], para 39,8% com a experiência do ensino médio, e 14% do ensino superior em 2018 (total de 54%)[8], uma mudança vinculada às políticas sociais e econômicas dos governos Lula.
E a terceira estratégia de motivação se manifesta por meio da solução que se propõe e que articula o programa político. Neste caso, no discurso político de Lula, vamos encontrar uma cadeia de equivalências que se constrói em torno da ideia de um resgate (o que pressupõe portanto um sequestro efetivado pelos golpistas contra Lula e contra o povo brasileiro): o regate de um Brasil Feliz, o resgate da democracia, da legalidade institucional, do crescimento econômico, e agora o próprio resgate de Lula preso político. Esse resgate pode operar como um significante vazio e ponto nodal de uma cadeia que articula as diferentes demandas distributivas, redistributivas e identitárias; de políticas sociais acionadas por beneficiários de políticas públicas, por setores prejudicados pelas políticas recessivas, por grupos identitários e sujeitos que tem seus direitos negados ou sequestrados. É o resgate de Lula pelo povo.
Lula fala a língua do povo. Seu estilo não é tecnocrático, nem acadêmico. Ele articula constantemente experiência pessoal e emoção com questões econômicas, políticas e sociais numa linguagem clara e direta, de esclarecimento, que se dirige ao racional, e de mobilização, que se dirige à emoção. Em situações como a das caravanas, destacávamos que tem se construído uma narrativa quase bíblica e dramática, de devoção e simbiose entre Lula e o povo. Ou no ato na frente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, rodeado de pessoas chaves no palanque – bispos e pastores, velhas e novas lideranças – e fundido com o povo na sua saída, construiu uma fala orientada ao emocional, que utilizando linguagem de conhecimento popular procurou mover os ouvintes, não para o confronto imediato, mas para um engajamento estratégico olhando para o futuro. Esta conjugação de estilos e tons no uso da língua do povo é ao mesmo tempo motivo de sucesso na sua comunicação com a grande maioria da população, mas também de críticas das elites e de setores de classe média tradicional.
Finalmente, cabe levantar que este discurso político construído em torno de Lula livre e o resgate do Brasil feliz, coloca o desafio de, caso Lula ser impedido de participar das eleições, o seu sucessor ter que falar e agir como sua extensão. O primeiro vídeo oficial da campanha aponta esse caminho ao juntar a fala de Lula a de seu vice: “eu sou Fernando Haddad, candidato a vice-presidente na chapa do Lula e te convido para essa caminhada por todo Brasil”.
ESPECIAL
Este texto faz parte da série especial “A ANÁLISE DE DISCURSO DOS CANDIDATOS”. Entre os discursos examinados estão os das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.
Confira também:
O discurso político de Bolsonaro: Cidadãos de bem, segurança e moral
*Por Paulo A. A. Balthazar, Jorge O. Romano, Alex L. B. Vargas, Annagesse de Carvalho Feitosa, Thais P. Bittencourt e Yamira R. de Souza Barbosa. Os autores – professor, doutorandos e mestrandos – conformaram no CPDA/UFRRJ um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista fundado na proposta de Laclau e Mouffe, coordenado pelo Dr. Jorge O. Romano, do qual saíram textos específicos sobre o discurso de seis candidatos à presidência que estão sendo publicados no Le Monde Diplomatique Brasil online, assim como em um artigo com a visão geral dos resultados alcançados, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil na sua edição impressa de setembro de 2018