O discurso político de Bolsonaro: Cidadãos de bem, segurança e moral
No segundo texto da série A análise dos discursos dos candidatos, produzida pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), os discursos do presidenciável Jair Bolsonaro: Os temas abordados por Bolsonaro não são incomuns nem exclusivos. O que vai diferenciá-lo é o ideário de extrema direita – também presente no seu vice, general Antônio Hamilton Martins Mourão (PRTB) — é a forma de abordar os problemas e apresentar as soluções, onde a postura emocional e odiosa prevalece
Jair Messias Bolsonaro nasceu em Campinas/SP, no dia 21 de março de 1955. Passou para a reserva do Exército no final da década de 1980 – segundo depoimentos, por questões disciplinares — e, desde então está no seu sétimo mandato parlamentar através de nove partidos. No seu site oficial o presidenciável se define por possuir “posições em defesa da família, da soberania nacional, do direito à propriedade e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Destaca-se, no referido site, sua atuação parlamentar “contra a erotização infantil nas escolas e por um maior rigor disciplinar nesses estabelecimentos, pela redução da maioridade penal, pelo armamento do cidadão de bem e direito à legítima defesa, pela segurança jurídica na atuação policial e pelos valores cristãos”.
O deputado federal mais votado no Rio de Janeiro em 2014 (464.572 votos) apresenta a diferença com que pretende ser reconhecido quando afirma que as “suas bandeiras políticas são fortemente combatidas pelos partidos de ideologia esquerdista”. Seus seguidores — que o chamam de Mito — admiram suas posições contra a homossexualidade, os direitos humanos, as mulheres bissexuais e concordam que “bandido bom é bandido morto”. Para os seus críticos, o destaque obtido por Bolsonaro é fruto do contexto onde medo, ressentimento e raiva são estimulados, e os preconceitos e as posturas antirrepublicanas emergem, fertilizando o terreno para a propagação do fascismo.
Realizaremos a análise do discurso do candidato do Partido Social Liberal (PSL), com a delimitação da identidade[1] daqueles a quem se dirige e com quem pretende obter o apoio político e social para superar o primeiro turno, vencer o segundo e governar. Como se pode perceber, nesse caso e nas preocupações dos demais candidatos, os temas abordados por Bolsonaro não são incomuns nem exclusivos. O que vai diferenciá-lo é o ideário de extrema direita – também presente no seu vice, general Antônio Hamilton Martins Mourão (PRTB) — é a forma de abordar os problemas e apresentar as soluções, onde a postura emocional e odiosa prevalece[2].
O exercício de reconstituição dos que se alinham com Bolsonaro – o “Nós”, o positivo — é inseparável da construção do outro antagônico[3] — o “Eles”, o negativo. Em ambas situações os conjuntos de elementos articulados no seu discurso constituem cadeias de equivalências[4], com o objetivo de caracterizar os aliados que reúnem as características positivas e o adversário — nesse caso, o inimigo que articula o que é considerado como negativo e /o que deve ser combatido na sociedade — a ser superado por uma nova ordem, uma nova hegemonia.[5]
Para caracterizar o discurso da candidatura foram identificadas, selecionadas e analisadas um conjunto significativo de falas, textos e/ou performances expressas em eventos públicos (comícios, entrevistas, anúncios televisivos), declarações à imprensa, mensagens e postagens nas mídias sociais, que foram feitas ou expressas desde o segundo semestre de 2017 até agosto de 2018. Também recorremos aos programas de governo, menos para resumir ou avaliar as propostas específicas, e mais para entender as sinergias, distanciamentos, ou mudanças entre estes programas e as falas dos candidatos. Portanto, chamamos a atenção do leitor para o fato de que, tanto as denominações “Nós” / Elementos positivos e “Eles” / Elementos negativos, quanto as demais definições encontradas no texto, foram realizadas desta forma.
Dois exemplos: em entrevista para a revista Playboy (junho/2011), Bolsonaro afirma que “seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. Ainda sobre esse tema, mas relacionando-o com o tema da família, outro também muito presente em suas falas, em recente programa de entrevistas na TV[6] o presidenciável aproveita e faz um apelo: “Homofobia, prezado Datena? Quem não tem amigo ou até parente gay? Tá certo. E olha só, eu sou contra é o material escolar. Eu não quero que um pai chegue em casa e pegue o filho brincando de bonecas por influência da escola”.
Foi esse método de análise, também adotado para as demais campanhas, que tornou possível visualizar a construção das identidades de “nós” e “eles” descrita pela candidatura em pauta, como se pode ver abaixo:
Nesse discurso, o que explica e caracteriza a injustiça no Brasil é a segurança, e sobretudo, a questão moral (Plano de Governo – “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira”). Assim, a partir do quadro anterior observa-se duas grandes questões. Por um lado, o “Nós”, Cidadãos de bem e o “Eles”, Esquerdistas, segundo Laclau, se convertem em significantes vazios[7], cujo sentido transborda o significado especifico da palavra. No caso do “Nós”, Cidadãos de bem, está associado intimamente à segurança e moral como opostos de violência e imoralidade[8], problemas que são transformados em questões públicas de relevância nacional, indicando para a população que as suas soluções significariam, também, a solução dos outros problemas. Portanto, os problemas não serão resolvidos se atacarmos a desigualdade, por exemplo, ou a submissão dos interesses nacionais aos internacionais[9]. É no âmbito da dimensão moral que deve-se perseguir o objetivo político de mobilizar — e armar — os Cidadãos de bem[10] e construir as soluções.
Mas, ao mesmo tempo, o discurso de Bolsonaro procura que, quando as pessoas escutem Cidadãos do bem[11], elas não só associem a segurança e moral, mas, também, pelas cadeias de equivalência, através de uma pratica articulatória[12], a outras demandas que delimitam grupos sociais específicos, e que o candidato procura atrair para fazer parte do “Nós”. Os Cidadãos de bem, atores políticos (e morais) necessários para a transformação social desejada, são os que defendem a família, os valores cristãos conservadores, a Escola sem Partido, a redução da maioridade penal, o controle da natalidade como condição de combate a violência e a pobreza. São particularmente os homens, que valorizam as armas, a policia e os militares, e que preferem as milícias frente às drogas. Também o discurso amplia o “Nós” para os que defendem a livre iniciativa e, em particular, os proprietários rurais e o agronegócio que necessitam de “segurança no campo”. Num apelo que está sendo eficaz segundo as pesquisas eleitorais, o discurso conclama os jovens que querem subir na vida, valorizando a meritocracia. Em síntese, o “Nós” está conformado pelos verdadeiros patriotas, a velha Tradição, Família e Propriedade (TFP)[13] de cara nova.
Com esse “Nós” como sua pretensa base eleitoral, o Plano de Governo destaca: “Propomos um governo decente, diferente de tudo aquilo que nos jogou em uma crise ética, moral e fiscal”. Para Bolsonaro, a violência e a imoralidade forjam o contexto de injustiça que vivemos, gerado pela incapacidade dos governos democráticos de esquerda, pós-ditadura militar (Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma), em resolver problemas (Plano de Governo – “Após 30 anos em que a esquerda corrompeu a democracia e estagnou a economia, faremos uma aliança da ordem com o progresso: um governo Liberal Democrata”). Dessa forma, ressuscita o fantasma da ditadura e de um governo militar.
Da mesma forma que na definição do “Nós”, mas com o sentido inverso, o “Eles”, Esquerdistas é também um significante vazio que está associado à bandidagem, imoralidade e corrupção. Através da cadeia de equivalências, “esquerdista” enquanto o principal inimigo, se desdobra em grupos sociais específicos: os gays e homossexuais; mulheres; ativistas de direitos humanos; defensores do desarmamento; indígenas, quilombolas, sem terra que seriam terroristas do campo; invasores da propriedade privada, movimentos sociais e comunistas; cotistas, bolsistas e refugiados; intelectuais, jornalistas, protetores de traficantes e estupradores; socialistas e social-democratas, doutrinadores de Paulo Freire e Gramsci. Em síntese, os anti-patriotas: os políticos corruptos, e sobretudo os esquerdistas do Fórum de São Paulo.
A manutenção dos principais tópicos – Violência e Segurança / Esquerda e Direita – no debate político-midiático, se revela em consonância com a opinião dos que pretendem votar nele[14]. Em pesquisa IBOPE (agosto / 2018) suas intenções de voto na região Centro-Oeste / Norte são de, aproximadamente, 29%; 20% na região Sul; 19% na Sudeste; e 9% na região Nordeste. No quesito gênero, sua pontuação, aproximada, aponta claramente a preponderância dos homens (25%) como seus potenciais eleitores em relação ás mulheres (12%). Em termos de idade, o maior apoio se dá entre os grupos de 25 a 34 anos (21%) e de 35 a 44 (20%) em relação aos mais jovens: 17% para o grupo entre 16 a 24 anos — ou os mais velhos: 17% para os eleitores entre 45 a 54 anos e 14% para os de mais de 55. Com relação à escolaridade, o candidato tem mais apoio quanto mais alto seja o nível da mesma: ensino superior, 23%; ensino médio, 22%; ensino fundamental (5ª a 8ª), 13%; e ensino fundamental (até a 4ª série) 8%. Da mesma maneira, quanto maior a renda — mais de 5 Salários Mínimos, 30%; 2 a 5 SM, 23%; entre 1 e 2 SM, 17%; e até 1 SM, 10% — maior o seu eleitorado.
Uma vez identificados os problemas principais (Marco do diagnostico) e estabelecido a fronteira entre “Nós” — os Cidadãos de bem — e “Eles”, os esquerdistas, com suas respectivas cadeias de equivalência descritas nos parágrafos anteriores, identificamos no discurso de Bolsonaro a ideologização dessa fronteira com a reconstrução mítica da história visando motivar a seus seguidores[15]. O passado idealizado que mobiliza Bolsonaro é o do golpe militar, momento de ordem e progresso. Tendo como referencia mítica esse passado, ele propõe para o futuro um governo liberal economicamente, e forte, politicamente, com autoridade e disciplinador.
A sua recepção nos aeroportos do país tem gerado uma repetição de imagens do candidato carregado nos ombros por seus seguidores, portando uma bandeira nacional, que reafirma a sua condição de Mito admirado pelo povo. Na entrada das pequenas e médias cidades do interior, mesmo antes do período eleitoral legal, proliferaram outdoors do candidato com a bandeira brasileira no fundo, destacando apelação ao patriotismo e elementos de sua agenda política, como defensor do fim do estatuto do desarmamento, da redução da maioridade penal, das mulheres (sic) e das famílias. A mensagem, para além dos conteúdos de campanha específicos, demarca o território e procura significar a adesão do Brasil interiorano à sua candidatura e propostas, surpreendendo aos visitantes que passam pelas estradas.
O tom do discurso é, principalmente, emocional e, particularmente, agressivo. Quando questionado sobre problemas específicos que implicam uma análise intelectual e mesmo técnica, ele justifica sua falta de resposta alegando não ser da área, e sim um capitão de exercito, apesar de ter várias décadas de exercício parlamentar. Com seu desprezo ao intelectual procura converter seu limite, e preconceito, em virtude. Tendo êxito, muitas vezes, nessa empreitada, junto ao seu eleitorado: ele é honesto, é sincero, reconhece que não sabe tudo…. é aquele que diz o que pensa, é espontâneo, verdadeiro e autentico
O discurso de Bolsonaro dialoga com o senso comum, porém apelando para o medo e o desamor. Aparentemente desconexo — como alguém pode achar melhor que um filho morra a ter uma opinião diferente da sua, e se dizer defensor da família? ou afirmar que mulher tem que ganhar menos pois engravida e se colocar como defensor das mulheres? — guarda por outro lado uma relação direta com os sentimentos de perda da classe média: segurança, prestigio e esperança.
Nesse sentido, é sintomática a sua fala sobre corrupção[19]: “Eu sempre tenho dito que honestidade não é virtude, é obrigação. Combater a corrupção é diminuir o tamanho do Estado. É não aceitar as indicações políticas. Que produzem as indicações políticas? Ineficiência no Estado, onde o pessoal não aprende nada nas escolas, não tem atendimento em hospital e não tem segurança. Então, leva a ineficiência e a corrupção”. Ora, se por um lado muitos não conseguem perceber a inexistência de relação entre o tamanho do Estado e a corrupção, por outro, quase todos conhecem os problemas das indicações políticas e da ineficiência de alguns serviços públicos. Dessa forma, é no terreno do senso comum que o seu discurso encontra sentido e coesão.
Ainda em relação ao apoio dos jovens, não se deve desprezar a intensa presença deles e dos movimentos de direita nas redes sociais[20]. É interessante notar que, diante de qualquer crítica feita no perfil do candidato nas mídias sociais, seus seguidores quase sempre respondem com algum tipo de ataque, seja tentando desqualificar a crítica ou questionamento respondendo em forma de onomatopeias como mimimi, ou usando a expressão “o choro é livre o lula não”, ou ainda passando ao ataque pessoal, ao taxar ao crítico como “esquerdista” ou “petralha”. Alguns seguidores respondem que “se você não é da seita apoiadora, não deveria estar ali”. Ou seja, é a defesa da unanimidade, sem que seja possível o debate, o diálogo.
A trajetória de oposicionista, construída durante os governos FHC, Lula e Dilma, contribui para a sua caracterização enquanto antissistema, alguém fora dos acordos políticos tradicionais, embora com décadas de mandatos pessoais e familiares.
Outro ponto destacado nas falas do candidato é a sua relação com as milícias. Em entrevista[21], o parlamentar apresentou opinião sobre esses grupos paramilitares onde não é possível identificar uma postura de oposição, ou mesmo de contrariedade, a essas práticas. Paralelamente, a sua pregação em prol do armamento de setores urbanos que sofrem com a violência, e setores rurais cujos interesses são questionados pelos trabalhadores do campo, quilombolas e índios, é uma constante. Isso, associado ao movimento para a direita de candidaturas que disputam o voto conservador, pode radicalizar ainda mais o período eleitoral e pós-eleitoral.
Pelo observado, a aspiração da campanha analisada é que o processo eleitoral seja dominado pelo moralismo, onde o Mito represente o sentimento da família ordeira brasileira, ancorado na tradição e na propriedade, e seja reconhecido como o combatente da imoralidade, do banditismo e do esquerdismo (Plano de Governo – “Quebrado o atual ciclo, com o Brasil livre do crime, da corrupção e de ideologias perversas, haverá estabilidade, riqueza e oportunidades para todos tentarem buscar a felicidade da forma que acharem melhor”). Para tanto, apresentará a versão de que os recentes governos democráticos esquerdistas aniquilaram a ordem, a moral e os avanços do período militar, tornando-se necessário a restrição dos direitos, com repressão dos movimentos sociais (Plano de Governo – “Tipificar como terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro”) através da construção de um governo liberal, economicamente, e forte, politicamente, com autoridade e disciplinador.
ESPECIAL
Este texto faz parte da série especial “A ANÁLISE DE DISCURSO DOS CANDIDATOS”. Entre os discursos examinados estão os das candidaturas Marina Silva, Jair Bolsonaro, Lula, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.
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*Alex L. B. Vargas, Jorge O. Romano, Annagesse de Carvalho Feitosa, Paulo A. A. Balthazar, Thais P. Bittencourt, Yamira R. de Souza Barbosa. Os autores – professor, doutorandos e mestrandos – conformaram no CPDA/UFRRJ um grupo de reflexão sobre análise de discurso populista fundado na proposta de Laclau e Mouffe, coordenado pelo Dr. Jorge O. Romano, do qual saíram textos específicos sobre o discurso de seis candidatos a presidência que estão sendo publicados no Le Monde Diplomatique Brasil online, assim como um artigo com a visão geral dos resultados alcançados, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil na sua edição de Setembro de 2018