O ecocídio como forma de governar
A gestão Paes vem sistematicamente ignorando os limites que o próprio ambiente apresenta. Ao longo dos anos, as propostas urbanísticas do poder executivo vêm se contrapondo de forma violenta às dinâmicas sociais, ambientais e de produção de alimento agroecológico consistente na região das Vargens.
A lógica de passar a boiada ignorando o colapso ambiental não é prerrogativa do governo federal. Na cidade do Rio de Janeiro, o poder público segue atuando a partir dessa mesma lógica. A reestruturação urbana que Eduardo Paes (PSD) vem tentando promover na região das Vargens desde 2009 é sinônimo da construção de mais uma área de sacrifício na nossa cidade e novos espaços de exclusão. Diversos estudos sobre essa região demonstram que a condição ambiental desta área não permite o adensamento e muito menos a especulação imobiliária.
A região das Vargens faz parte da Área de Planejamento 4 (AP4), composta pelos bairros Barra da Tijuca, Jacarepaguá, Anil, Gardênia Azul, Curicica, entre outros. A AP4 abrange cerca 24% do território da cidade e está profundamente conectada com o Maciço da Pedra Branca, importante área de proteção ambiental, reconhecida desde a década de 1970. Nessa região, as demandas recorrentes entre a sociedade civil organizada e os movimentos sociais são a preservação de áreas ambientais e a contenção de construções irregulares que seguem se alastrando por todo o território, justamente nas áreas de maior fragilidade ambiental. A palavra ecocídio ecoa da boca das lutadoras que constroem há anos uma perspectiva política agroecológica a partir do movimento SOS Vargens, da Associação de Moradores Amigos de Vargem Grande (Amavag), da Associação de Moradores de Santa Luzia e do Fórum das Vargens.
A gestão Paes vem sistematicamente ignorando os limites que o próprio ambiente apresenta. Ao longo dos anos, as propostas urbanísticas do poder executivo vêm se contrapondo de forma violenta às dinâmicas sociais, ambientais e de produção de alimento agroecológico consistente na região das Vargens. E agora vemos isso se repetir em um momento de pandemia, no qual a fome e as iniquidades se agigantam sobre nosso povo já pauperizado e vulnerabilizado pela omissão do Estado.
O adensamento populacional nessa região e a legitimação da venda desse espaço para o capital imobiliário e especulativo vão provocar novas tragédias ambientais, cuja responsabilidade, como de costume, será ou da população empobrecida residente nesses locais ou das chuvas.
A partir da legitimação do risco e da criação de espaços de exclusão, a holding AlphaVille, em parceria com a empresa Granjas Calábria, criaram empreendimento misto que segundo noticiado será executado na região conhecida como Campos Alagados, região das Vargens – área rios, lagunar e trechos alagáveis.
O empreendimento ocupará área de 4 milhões de m2 e prevê mais 2.700 lotes e área para incorporação vertical, comércio e serviços. A marca Alphaville é associada a empreendimentos de luxo, dentro de condomínios fechados e cercados de seguranças. A lógica da privatização da vida e a especulação imobiliária vão legitimando espaços onde as pessoas têm noções frágeis sobre o que é o interesse público, responsabilidade pública e cidadania.

Para além da legitimação dos espaços de exclusão, a especulação da terra produz o ecocídio como forma de governar e se estrutura a partir de ilegalidades. Ainda no primeiro mês da gestão Paes, o prefeito publicou um decreto (48.481/21) que transferiu as atividades relativas ao licenciamento ambiental à subsecretaria vinculada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação. Ou seja, todo o licenciamento ambiental da cidade está agora sob o crivo de uma secretaria cujo caráter neoliberal e especulativo está expresso no próprio nome, deslocando as prerrogativas da Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Cidade (SMAC).
A lei Orgânica do Município e o Plano Diretor Municipal (LC 111/2011), assim como a Lei 2.138/1994 que criou a secretaria, determinam que compete à SMAC o planejamento e gestão ambiental e o processo de licenciamento e avaliação de impacto ambiental. Assim, ignorando as leis vigentes, a prefeitura transfere o licenciamento de empreendimentos impactantes para uma secretaria que divulga como metas a “melhora do ambiente de negócios” e “a atração de novos negócios e investimentos para a cidade”. E assim, através de um decreto, que está hierarquicamente abaixo de todas as leis já citadas, sendo ilegal e inconstitucional para a transferência de competência, o prefeito está negociando o patrimônio ambiental da cidade.
Tão grave quanto a ilegalidade do licenciamento ambiental vigente, e sintomático de uma cidade cuja estrutura fundiária é baseada na grilagem e no desrespeito às leis de proteção ambiental, é a não regulamentação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) no Rio de Janeiro, uma exceção entre as grandes cidades brasileiras. O instrumento visa a abordagem e o conhecimento dos impactos ao meio ambiente promovidos pela atividade que o empreendimento deseja desenvolver, além de prever a adequação aos parâmetros urbanísticos definidos pelo Plano Diretor. Por pressão dos proprietários de terra e grandes especuladores, esse instrumento nunca foi regulamentado no Rio de Janeiro.
A partir de um licenciamento de legalidade questionável e a ausência violenta de um estudo de impacto, a implantação de Alphaville segue a narrativa falaciosa que há muito tempo defende que há demanda de moradia de alto luxo na região de expansão urbana da cidade. Essa narrativa, contudo, é facilmente desmentida pelo fracasso constrangedor do Ilha Pura, construído no contexto das Olimpíadas e destinado à população de alta renda. O empreendimento foi implantado em terreno de Carlos Carvalho, um dos grandes proprietários de terras da região, ao custo de 2.9 bilhões de reais financiados pela Caixa Econômica Federal. Hoje não se fala mais disso, mas essa cidade fantasma, com nome nitidamente segregador, segue praticamente desocupada após seis anos.
O planejamento urbano que privilegia o lucro em detrimento da vida, apresenta incoerências escandalosas. O terreno no qual se pretende implantar o empreendimento faz parte da Área de Proteção Ambiental (APA) do Sertão Carioca, ampliada esse ano por meio de decreto (50.411/2022). A APA é definida como uma área natural destinada à proteção e conservação dos atributos bióticos, estéticos ou culturais ali existentes, importantes para a qualidade de vida da população local e para a proteção dos ecossistemas regionais.
Mas a própria constituição da APA é objeto de controvérsia e gestão antidemocrática. A extensão da APA, assim como do Refúgio de Vida Silvestre (Revis) dos Campos de Sernambetiba, sofreu grave redução em diversos trechos, contrastando com o que foi pactuado democraticamente na consulta pública realizada pela SMAC em 2021.
Os agentes imobiliários pressionaram por mudanças. O Revis é uma área de proteção integral com caráter mais restritivo e objetiva controlar a expansão urbana para garantir as condições de existência e reprodução de espécies ou comunidades da flora e da fauna e está profundamente relacionada ao sistema lagunar, de rios e áreas alagáveis, regulando a condição hidrológica e ajudando no escoamento do excedente de água na região.
A implantação de uma cidade de luxo em um terreno de proteção ambiental é boa para poucos poderosos que vão lucrar sobre a tragédia socioambiental iminente, mas para o povo significa mais impermeabilização do solo, mais trânsito na região e a produção de um ecocídio que impactará profundamente a vida de toda a população carioca. Os últimos temporais que ocorreram no estado indicam o que acontecerá caso não haja controle do processo de ocupação na região.
Na baixada de Jacarepaguá e na região das Vargens, diversas localidades e assentamentos populares já se encontram em situação de calamidade e sofrem as consequências do assoreamento de rios e lagoas, impermeabilização do solo e a expulsão de comunidades que vivem e subsistem desse território para a construção de condomínios. As comunidades da região gritam por justiça ambiental e relatam que a cada chuva o volume de água aumenta e o solo tem cada vez menos capacidade de absorção. Alagamentos, deslizamentos e a perda de vidas são o resultado dessas escolhas políticas.
A tragédia de Petrópolis, demonstrou a vulnerabilidade das mulheres periféricas frente aos desastres ambientais, quando constatamos que a maioria das vítimas foram mulheres. A reconhecida feminização da pobreza em um momento de crise e insegurança alimentar reforça a tendência da periferização das famílias chefiadas por mulheres, posicionando-as novamente como as mais impactadas pelo projeto de cidade que privilegia o lucro e produz o ecocídio como cotidiano. É preciso entender que uma cidade com justiça ambiental e gestão democrática do planejamento é uma cidade segura para todas as mulheres. Mas o trator segue passando e quando as tragédias anunciadas acontecerem já saberemos quem são os homens responsáveis.
Monica Benicio é arquiteta urbanista, cria da Maré, militante de direitos humanos, ativista LGBTI+, Feminista lésbica e vereadora do Rio de Janeiro, pelo PSOL.