O enfrentamento do coronavírus na Venezuela
Em comparação com outros países da região, chama atenção a grande diferença tanto no número de casos confirmados como de falecimentos
A pandemia do novo coronavírus teve seu início entre novembro e dezembro de 2019, sendo identificada pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan. A alta transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 provocou uma rápida propagação do quadro a nível mundial desde então.[1] Na Venezuela, os primeiros casos reportados foram registrados no dia 13 de março e diziam respeito a duas pessoas residentes no estado de Miranda que regressaram de viagem da União Europeia e dos EUA ao longo dos dias 5 e 8 de março. Vale notar que na América Latina as primeiras confirmações de contágio da doença ocorreram entre a última semana de fevereiro e as duas primeiras de março de 2020.
Entre as medidas iniciais tomadas pelo governo federal venezuelano para conter o avanço da pandemia estavam a suspensão de aulas presenciais e o isolamento social de pessoas idosas, também sendo recomendado o uso de máscara em locais públicos. O confinamento nacional (lockdown) foi decretado pela primeira vez no dia 17 de março e prorrogado por mais trinta dias em 13 de maio. No início de junho, diante do aparente controle da pandemia no território nacional, alguma flexibilização foi permitida aos cidadãos. Porém, ainda no final de maio a curva de contágio voltou a crescer, o que levou o governo federal a anunciar em 22 de junho uma nova rodada de isolamento social estrito, fechando os sistemas metroviários de transportes nas cidade de Caracas e Los Teques.
Apesar do novo fechamento, nessa data os números oficiais na Venezuela davam conta de apenas 3.918 casos confirmados e 33 mortes. Embora exista a possibilidade de subnotificação, suspeita que vem sendo levantada na maioria dos países, chama atenção a grande diferença tanto no número de casos confirmados como de falecimentos se comparados com outros países da região. A título de exemplo, ainda na mesma data, a vizinha Colômbia registrava 71.183 contaminações e 2.310 mortes. Outro vizinho memorável é o Brasil, em que mais de 1 milhão de pessoas haviam sido oficialmente infectadas em 22 de junho e o número de óbitos já era de 51.271.
A gama de conhecimento científico sobre a nova enfermidade e como combatê-la ainda é bastante limitada. Sabe-se que a transmissão ocorre principalmente pessoa a pessoa, que os sintomas podem aparecer até doze dias após o contágio e envolvem febre, cansaço, tosse seca, dificuldade de respirar e pneumonia, a depender da gravidade. Ainda não há vacina ou forma de tratamento que vá além do combate aos sintomas.[2] Algumas possibilidades começam a surgir no debate acadêmico, como é o caso do corticoide dexametasona, da hidroxicloroquina e de retrovirais. Contudo, estudos recentes não evidenciam melhora significativa do quadro clínico de pacientes sintomáticos que receberam a hidroxicloroquina[3] como parte do tratamento. Assim, a estratégia adotada internacionalmente tem sido a de prevenir a transmissão comunitária.
Diante desse quadro, o presente texto se propõe a promover uma análise concreta da situação venezuelana no enfrentamento do novo coronavírus entre os meses de março e junho de 2020. O intuito é subsidiar reflexões cientificamente fundamentadas que ajudem compreender os diferentes modos nacionais de enfrentamento da atual pandemia e em que medida as opções realizadas explicam os resultados observados em termos do número de casos confirmados e mortes decorrentes de complicações da Covid-19.
Foram reunidas informações qualificadas acerca do quadro venezuelano, estabelecendo comparações com outros países mediante a disponibilidade de dados. A grave crise humanitária e social da Venezuela impõe uma condição sanitária e hospitalar desfavorável ao enfrentamento da crise. Diante de um cenário potencialmente trágico, o governo venezuelano tem agido de forma rápida e atenta às recomendações dos especialistas internacionais – apesar de todas as limitações –, conforme demonstrado na sequência deste texto.
Evolução da pandemia
No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 em função de sua rápida disseminação geográfica. Como dito anteriormente, na Venezuela os primeiros registros de contágio em pacientes sintomáticos se deram no dia 13 de março, mas há indícios de que os primeiros casos suspeitos possam ter ocorrido já na primeira semana de março ou na última de fevereiro.
Até o final de junho, os estados venezuelanos com mais de cem casos confirmados correspondiam a Apure (1.190 casos), Zulia (1.033), Táchira (705), Bolívar (675), Miranda (528), Distrito Capital/Caracas (401), Aragua (233), Nueva Esparta (174), Lara (142), La Guaira (125), Barinas (110) e Sucre (109). As faixas etárias mais afetadas estão situadas entre os 20 e 40 anos. Além disso, entre os dias 15 e 16 de maio ocorre mudança na inclinação da curva de casos positivos registrados no país. Em 15 de maio, havia 459 casos confirmados de contágio, número que subiu para 504 no dia seguinte e seguiu crescendo até chegar em 5.832 no dia 30 de junho. O pico anterior ocorreu entre 17 e 20 de março, com mais de vinte novos casos diários confirmados.
Observando em termos de novos casos registrados essa percepção parece fazer sentido pois, a partir do dia 16 de maio até o último registro de junho, o único dia em que se registraram menos de trinta novos casos foi 14 de junho. Esse perfil de evolução do quadro epidemiológico em relação à Covid-19 no país sugere que as medidas de flexibilização colocadas em prática em 13 de maio podem ter tido impacto no aumento de novos contágios se comparada com a situação imediatamente anterior. Outra causa para essa mudança pode ter sido oriunda de pacientes contaminados assintomáticos que retornaram ao país recentemente através do Plan de Vuelta a la Patria.
Apesar da preocupação decorrente dos números mais recentes, a situação venezuelana ainda contrasta com a de boa parte dos países vizinhos e sugere que as medidas tomadas ao longo desse período pelo governo federal no enfrentamento da pandemia contribuíram para minimizar a proliferação do vírus, o que se nota pela evolução gradual dos casos nos primeiros meses do gráfico acima. Ao final de junho, apenas 51 pessoas haviam falecido na Venezuela em decorrência da Covid-19, ao passo que, na Colômbia já eram mais de 3.400 mortes, e no Brasil mais de 60 mil. No entanto, o momento é de alerta, dado que parece voltar a crescer o número de novos casos.
Sobre o sistema de saúde na Venezuela
As dificuldades experimentadas por diversas nações no enfrentamento à pandemia do Covid-19 têm levantado discussões quanto à importância de investimentos públicos na área de saúde. Na vigente Constituição bolivariana, o Estado venezuelano assume a responsabilidade de prover um sistema universal e integrado de saúde pública. Para cumprir com o objetivo, foi fundamental o estabelecimento de relações bilaterais com Cuba no início dos anos 2000. Em troca de petróleo venezuelano, a ilha caribenha forneceu ao país medicamentos e quase 30 mil profissionais de saúde. Isso permitiu que o Estado pudesse levar assistência médica às regiões mais pobres e remotas do país, através do programa de Misiones Sociales.
Em março, o total de leitos hospitalares em funcionamento era de 23.762, sendo 1.213 específicos para tratamento intensivo. Vale notar que a rede privada corresponde a não mais do que 20% dos leitos ativos no país. Dos leitos para tratamento intensivo, cerca de metade se encontram em unidades médicas da Misión Barrio Adentro, programa social realizado em parceria com o governo cubano desde 2003. Esse quadro sugere que a capacidade de rápida ação por parte do governo venezuelano em coordenar o enfrentamento à pandemia pode ser maior que a de outros por ter o controle direto de leitos alocados estrategicamente nas cidades.
Um dos problemas elencados diz respeito à baixa disponibilidade tanto de leitos equipados com respiradores como de leitos por habitante no país. O Banco Mundial registra na Venezuela cerca de 0,8 leitos a cada 1.000 habitantes, número baixo se comparado com países tais como Peru (1,6 a cada 1.000 habitantes) e Canadá (2,7). As informações veiculadas pelas mídias sugerem que até o final de abril havia no país 384 respiradores artificiais, sendo a maioria sob propriedade privada. No dia 1º de julho o Ministério da Saúde divulgou um evento que, segundo reportagem, permitiria ampliar a produção nacional de respiradores a partir de novos protótipos sendo discutidos.
O número de respiradores já produzidos até então é incerto. Por esse motivo, torna-se ainda mais importante para a população que o contágio seja contido, uma vez que o país não está preparado para lidar com muitos casos de uma só vez. Nesse aspecto o governo venezuelano foi bem sucedido, mantendo o contágio controlado e permitindo que todos os infectados possam ser tratados. Esse sucesso se reflete na baixa taxa de mortalidade apresentada pelos dados oficiais.
Os dados oficiais fornecidos têm sido contestados por parte da imprensa internacional, que fundamenta suas críticas no recente relatório divulgado pela organização Human Rights Watch (HRW), que acusa o governo Maduro de falsificar informações sobre o sistema de saúde nacional, bem como dados de mortos e contaminados pela Covid-19. Segundo o relatório, os números divulgados seriam incompatíveis com um país em grave crise humanitária e social como a Venezuela. Os argumentos centrais se resumem a dois: 1) a falta de água que ocorre de forma recorrente em diversos estados, em que até mesmo hospitais ficariam sem o abastecimento por vários dias, impossibilita a tomada de medidas de higienização tais como lavar as mãos, levando a uma maior transmissão do vírus; e 2) os exames empregados seriam em sua maioria testes rápidos, que possuem uma alta taxa de falsos negativos. O relatório não faz qualquer menção à rápida reação do governo à pandemia, ao lockdown decretado pela primeira vez já em 17 de março ou às medidas de isolamento de contaminados, as quais indicam relativo sucesso no enfrentamento da atual pandemia diante das condições objetivas disponíveis no país.
Em 5 de julho, o número de testes oficialmente aplicados na Venezuela era de mais de 1,4 milhão, número impressionante considerando-se o tamanho da população e o baixo número de positivos. A HRW alega que mais de 90% desses exames seriam os testes rápidos. Os resultados positivos seriam então levados ao Instituto Nacional de Higiene, único no país autorizado a realizar os testes PCR para a confirmação da infecção. Segundo a HRW, apenas os resultados positivos no PCR estariam sendo contabilizados, e como esses exames são muito mais demorados, o Instituto só poderia processar cerca de cem deles por dia. Se esse discurso era plausível até o final de maio, em que raramente o número de novos casos ultrapassava cem por dia, agora não possui tanta sustentação, uma vez que vêm sendo reportados cada vez mais casos, atingindo o pico de 351 em 28 de junho, como demonstrado no gráfico acima. Diante isso, um acordo com o governo chinês trouxe ao final de março uma missão médica chinesa ao país com 500 mil testes rápidos, ventiladores, tomógrafos, desfibriladores e máscaras, num total de 22 toneladas de insumos médico-hospitalares.
O papel das Comunas no enfrentamento da pandemia
Surgidas a partir da Revolução Bolivariana, as Comunas Socialistas na Venezuela são a base do modelo socialista do país, tendo papel importante na construção do Poder Popular. A organização das Comunas é uma experiência popular que tem como objeto central o bem de toda comunidade e da soberania do povo venezuelano, buscando também uma nova forma de estabelecer relações e fazer economia. As Comunas são autogestionadas pelos trabalhadores participantes em um sistema de democracia direta e participativa. Possuem um mecanismo institucional próprio, bem como empresas mantidas por esses trabalhadores, e seus lucros excedentes são revertidos em prol da comunidade. São 3.230 Comunas espalhadas por todo território venezuelano que, com o contexto da pandemia do coronavírus, passaram a se organizar para combater não só o vírus, mas também o impacto econômico e social decorrente da quarentena.
Em março, logo que o governo decretou a quarentena, os comuneiros começaram a confeccionar máscaras de proteção e distribuir para a população, em especial para as pessoas do grupo de risco, como idosos e pessoas com problemas respiratórios. Através dessa iniciativa, o Ministerio del Poder Popular para las Comunas forneceu matéria-prima e distribuiu mais de 2 milhões de máscaras. Um exemplo é a Comuna Socialista Panal 2021, que produziu 20 mil máscaras em abril. Além da confecção de máscaras, a Panal 2021 possui diversas atividades comunitárias que estão se ampliando agora na pandemia, como a distribuição e intercâmbio de alimentos entre as famílias. Por conta do embargo econômico promovido pelos Estados Unidos, as famílias sofreriam com a escassez de insumos sem o trabalho da Panal 2021. Os alimentos distribuídos vêm da articulação com outras comunas da zona rural da Venezuela, mediada pelo projeto “Pueblo a Pueblo”.
Esse projeto existe desde 2014 e tem como objetivo fazer a mediação entre as comunas rurais e as urbanas, buscando escoar a produção agrícola e abastecer a população mais vulnerável, tendo como horizonte a soberania alimentar do povo. Os membros conhecem todas as etapas, da produção até a distribuição, o que permite uma maior transparência. Parte do que é arrecadado com a venda dos insumos custeia a produção agrícola e outra parte vai para um fundo comum, que é usado pelas próprias comunas. Os vários centros de armazenamentos de alimentos realizam a distribuição, que com a pandemia passou também a ser de casa em casa. Só na região metropolitana de Caracas são distribuídas 20 toneladas de alimentos semanalmente para as comunas.
Além da distribuição de alimentos, a comuna Panal 2021 conta com uma rede de professores, responsáveis pela continuidade do ensino na pandemia. Os professores elaboram atividades escolares que são levadas para as casas das famílias. A ministra das Comunas e dos Movimentos Sociais da Venezuela, Blanca Eekhout, ressalta que “se a Venezuela não tivesse esse nível de organização, a realidade seria realmente catastrófica”, salientando o importante papel das comunas no combate ao coronavírus.
As ações governamentais
Após a declaração da OMS de que o coronavírus havia se tornado uma pandemia, decretou-se a suspensão de atividades escolares em todos os níveis de formação, a obrigatoriedade no uso de máscaras por parte de passageiros e trabalhadores do transporte público e o isolamento preventivo dos casos suspeitos. Quando o número de casos alcançou a marca de dezessete pessoas, em 13 de março, foi decretado um modelo de isolamento social designado como “quarentena social coletiva” em sete estados do país. Na sequência, verificando-se elevação para 33 contágios confirmados em 16 de março, o modelo de isolamento foi ampliado para os demais estados.
A partir de então, a circulação de pessoas ficou restringida aos profissionais dos meios de comunicação e trabalhadores de atividades consideradas essenciais, isto é, da área da saúde, transporte, alimentação e serviços públicos. O cerceamento da mobilidade de pessoas foi intensificado ainda mais em Caracas e nos estados de Miranda e La Guaira após o surgimento de novos casos nesses espaços. Essa intensificação das restrições não foi acompanhada nos estados de Aragua e Barinas, que também tiveram novos casos registrados no dia 23 de março. Vale notar que a Venezuela foi o primeiro país da América Latina a receber uma missão de especialistas chineses para tratar pacientes em situação mais grave.
Graças à aparente contenção de novos casos no país entre março e abril, que ficou entre dez e quatro novos casos diários, em 27 de abril o governo venezuelano deu início à algumas medidas de flexibilização, possibilitando que idosos pudessem sair de casa durante 4 horas por dia para se exercitar. Essa medida foi excluída do estado de Nueva Esparta, que se apresentava como foco da pandemia no período. Logo após, Maduro estendeu as medidas de flexibilização para crianças nos sábados e domingos.
Outra iniciativa do governo venezuelano logo no início de maio foi a organização do chamado Plan de Vuelta a la Patria, com o objetivo de repatriar cidadãos venezuelanos em situações de vulnerabilidade nos países vizinhos da América Latina. O vice-presidente setorial de Comunicação, Cultura e Turismo, Jorge Rodríguez, especificou que um total de 23.822 venezuelanos já haviam entrado no território fugindo da Covid-19.
O relaxamento da até então bem sucedida quarentena social e total no país pode ter sido um dos motivos para o crescimento de casos a partir de 13 de maio, como mencionado. Porém, o aumento do retorno de venezuelanos ao país explica a alta de 84% dos casos importados de Covid-19, chegando a 2.164 casos vindos do estrangeiro em 14 de junho. Dessa forma, a transmissão comunitária de coronavírus na Venezuela era vista como controlada pelo governo, de forma que o presidente Maduro colocou em prática em 30 de maio uma nova etapa do modelo de flexibilização econômica controlada.
O modelo de flexibilização inicialmente proposto pelo governo era o 5+10, com início em 1º de junho. Ele consistia em 5 dias de flexibilidade disciplinada e 10 dias de quarentena. Durante a flexibilização de 5 dias estabelecimentos como bancos, clínicas, construções, cabeleireiros, indústria têxtil, de calçados e química, e lojas de ferragens passaram a funcionar com jornada reduzida e sob protocolo de medidas sanitárias recomendadas pela OMS.
Cinco dias depois do início do modelo de flexibilização 5+10, a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodriguez, anunciou um ajuste no sistema, chamado agora de 7+7: 7 dias de flexibilização disciplinada e 7 dias de quarentena severa. Neste segundo momento, também foi ampliado o número de setores da economia que passaram a operar durante o período de flexibilização com horários reduzidos, entre eles estão óticas, sorveterias e cafés, lavanderias, eventos esportivos sem público, clínicas veterinárias e centros comerciais. Essas medidas de flexibilização não se aplicam aos estados que apresentam aumento no número de casos, incluindo a capital Caracas.
A partir de então, o governo vem restabelecendo e modificando medidas de acordo com a evolução da pandemia no país e de acordo com as recomendações do Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas (IVIC) e da Comissão de Saúde do governo. No dia 20 de junho, foram anunciadas medidas especiais para os estados mais atingidos – Distrito Capital, Bolívar, Apure, Táchira, Zulia, La Guaira, Aragua, Miranda, Lara e Trujillo. Dentre as principais medidas, está o fechamento do metrô de Caracas e das ferrovias do Valle del Tuy, substituídos por um sistema de transporte de superfície. Além disso, as polícias e da Guardia Nacional Bolivariana (GNB) ficaram responsáveis pela supervisão de todas as paradas de transporte público e barreiras de contenção entre municípios e estados.
O governo bolivariano também decretou ações para as relações de trabalho, garantindo o pagamento dos salários de trabalhadores de médias e pequenas empresas e o pagamento do bônus Lealtad e Disciplina y Solidariedad em março por meio da Plataforma Patria. Em junho foram anunciados outros bônus especiais – #QuédateEnCasa e Victoria de Carabobo 2020 –, que representaram continuação no auxílio financeiro para vários segmentos da classe trabalhadora, incluindo autônomos. Outra ação de grande impacto foi o impedimento de demissões até o final de dezembro de 2020 e a suspensão do pagamento de aluguéis até setembro deste ano. A Plataforma Patria conta com informações sociais centralizadas através do documento de identificação Carnet de la Patria. Criado ao final de 2016, o documento permite conhecer o alcance dos programas de Misiones e é interligado com os Comités Locales de Abastecimiento y Producción (CLAP) para distribuição de mercadorias. Com todas essas informações, a Plataforma Pátria permitiu a ação coordenada e de rápida efetividade por parte do governo.
Quadro comparativo com outros países
Mesmo com todas as dificuldades impostas pelo embargo econômico promovido pelos Estados Unidos, a Venezuela tem se mostrado eficiente no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. A organização e a adesão da população à quarentena são alguns dos fatores que resultaram no baixo índice de contaminação. O governo brasileiro, diferentemente do venezuelano, não instituiu o isolamento social em todo território nacional e coube a cada governador e prefeito decidir seu método de quarentena. Ao final de junho, os brasileiros completaram dois meses sem ministro da Saúde com mais de 1,5 milhão de infectados e 60 mil mortes.
Na última semana de junho, o Chile contabilizou 271.420 contaminações e mais de 6 mil mortes, com o primeiro caso confirmado em 3 de março. Do final de 2019 até o começo de 2020, houve uma onda de protestos populares contra o atual modelo econômico e o aumento da desigualdade no país. Essa desigualdade foi escancarada pela pandemia, onde há o dobro de mortes nos hospitais públicos do que nas clínicas particulares. Também o contágio se verifica mais intenso na população mais pobre e periférica. Já a Venezuela tem buscado atender toda sua população no sistema público de saúde, assim como garantir testes gratuitos para a detecção do vírus.
O Paraguai, assim como a Venezuela, vem conseguindo conter a disseminação do vírus. O governo de Abdo também decretou quarentena total em todo país em março, quando apenas dois casos haviam sido confirmados, além de ter fechado suas fronteiras terrestres. O Paraguai possuía 2.349 casos e apenas dezenove mortes no começo de julho.
Como a Venezuela, outros países do Sul global adotaram quarentena rigorosa logo no início da pandemia. A Índia, com uma população de 1,3 bilhão de pessoas, decretou confinamento em massa e fechamento do comércio em nível nacional em 24 de março, quando até haviam sido registrados quinhentos casos de coronavírus. Apesar da rapidez em tomar as medidas, o número de casos ultrapassou os 500 mil e mais 15 mil pessoas haviam sido vítimas da Covid-19 até 28 de junho. Embora haja alerta de subnotificação de dados, os indícios iniciais sugerem que o isolamento social tem se mostrado eficaz na diminuição da propagação do vírus, embora tais informações ainda sejam preliminares e demandem maiores investigações.[4]
O México, sob a presidência de Andrés Manuel López Obrador, adotou uma estratégia contraditória perante o coronavírus no final de março, quando o país registrou seis mortes entre 475 contaminados. Com uma postura de negação da pandemia que se confirmava, o presidente mexicano lançou uma estratégia batizada de Jornada Nacional de Distância Saudável, que apenas sugeria a suspensão temporária de serviços não essenciais. Em maio, apesar do consistente aumento no número de casos, o governo iniciou o relaxamento da quarentena. Contabilizando 30.366 mortes até 5 de julho e atingindo a marca do quinto país com maior número de mortos, no México também é possível que as subnotificações nos casos de Covid-19 sejam relevantes.
Conclusões
A situação venezuelana diante do novo coronavírus observada entre março e junho de 2020 revela balanço geral relativamente bem sucedido. Em que pese as restrições econômicas existentes e o movimento desestabilizador por parte do deputado Juan Guaidó e seus parceiros, que lograram impedir o acesso do governo bolivariano a depósitos de ouro na Inglaterra, o enfrentamento da pandemia pelo governo Maduro tem sido capaz de lidar com as adversidades e promover certa coesão nacional. Isso se verifica na adesão popular às medidas colocadas em prática desde os primeiros casos registrados.
O esforço analítico levado à frente neste artigo procurou analisar a situação concreta de uma realidade concreta a partir das informações disponíveis. Nesse sentido, um primeiro passo foi tentar organizar os dados objetivos existentes. A despeito das críticas, parece que há algo a ser aprendido com a experiência bolivariana de enfrentamento da pandemia. Contudo, evidentemente, ainda se está longe de solucionar o problema, seja na Venezuela ou em qualquer parte do mundo.
Considerando as informações coletadas e o breve quadro comparativo com outros países, o êxito venezuelano até o momento pode ser compreendido em grande medida graças à rapidez de adoção de medidas de isolamento social e pela capacidade de coordenar ações por parte do governo federal. Também contribuíram os instrumentos de centralização de informações interligado entre Comunas, CLAP e governo federal, cujas expressões concretas podem ser observadas na Plataforma Patria e no Carnet de la Patria.
É preciso destacar que essa capacidade de coordenação das ações para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus não tem repercutido na imprensa internacional, onde se encontram análises somente especulativas sobre a presente conjuntura venezuelana. O país é frequentemente explorado midiaticamente de forma sensacionalista, com forte conotação política antibolivariana, algo que implica grave prejuízo para a apuração dos fatos e fenômenos em questão. O exercício proposto na investigação procurou, portanto, organizar as informações disponíveis sem apregoar implicitamente qualquer juízo de valor a respeito do sistema político vigente no país.
Por fim, cabe ressaltar que o impacto do retorno de venezuelanos ao país no número total de contagiados ainda precisa ser avaliado com mais profundidade. Da mesma forma, o modelo de isolamento social 7+7 ainda precisa ser estudado com mais minúcia para que sua efetividade seja ou não comprovada. Os números, no entanto, ainda não sugerem descontrole epidemiológico em relação à nova enfermidade e suas consequências. Em todo caso, a investigação aqui realizada propõe atenção aos desdobramentos vindouros da atual pandemia, que pode ter efeitos violentos sobre um país já fragilizado por uma grave crise econômica prolongada, embargos externos nocivos à população e um conflito político em que não se vislumbra trégua.
Bruna Teixeira da Silva é economista, mestranda no PPGE/UFRGS e pesquisadora do NEPPAS/UFRGS. E-mail: [email protected].
Leonardo Segura Moraes é economista, professor no IERI/UFU e pesquisador do NEPPAS/UFRGS. E-mail: [email protected].
Leonel Toshio Clemente é economista e professor na FCE/UFRGS. E-mail: [email protected].
Manoela do Amaral Ferronato é graduanda em Ciências Econômicas na FCE/UFRGS e pesquisadora do NEPPAS/UFRGS. E-mail: [email protected].
Mariana Caldeira Valle é graduanda em Ciências Econômicas na FCE/UFRGS e pesquisadora do NEPPAS/UFRGS. Email: [email protected].
Pedro Henrique F. D. Sampaio é economista, mestrando no PPGE/UFRGS e pesquisador do NEPPAS/UFRGS. Email: [email protected].
[1] Ver por exemplo Frei Diaz-Quijano; Alfonso Javier Rodriguez-Morales; Eliseu Alves Waldman. ‘Translating transmissibility measures into recommendations for coronavirus prevention’, Revista de Saúde Pública, vol. 54, São Paulo, abr-2020; Lea Hamner; Polly Dubbel; Ian Capron; Andy Ross; Amber Jordan; Jaxon Lee; Joanne Lynn; Amelia Ball; Simranjit Narwal; Sam Russell; Dale Patrick; Howard Leibrand. ‘High SARS-CoV-2 Attack Rate Following Exposure at a Choir Practice — Skagit County, Washington, March 2020’, Morbidity and Mortality Weekly Report, vol. 69, n. 19, US Department of Health and Human Services/Centers for Disease Control and Prevention, 2020.
[2] Para maiores informações e atualizações sobre a Venezuela, consultar a folha informativa – COVID-19, disponibilizada pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
[3] Ver Joshua Geleris; Yifei Sun; Jonathan Platt; Jason Zucker; Matthew Baldwin; George Hripcsak; Angelena Labella; Daniel K. Manson; Christine Kubin; R. Graham Barr; Magdalena Sobieszczyk; and Neil W. Schluger. ‘Observational Study of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19’, The New England Journal of Medicine, 382:2411-2418, June 18, 2020.
[4] Ver, por exemplo, para o caso indiano analisado em Deepankar Basu; Maxwell Salvatore; Debashree Ray; Michael Kleinsasser; Soumik Purkayastha; Rupam Bhattacharyya; Bhramar Mukherjee. ‘A comprehensive public health evaluation of lockdown as a non-pharmaceutical intervention on COVID-19 spread in India: national trends masking State level variations’. Preprint paper in collection COVID-19 SARS-CoV-2 preprints from medRxiv and bioRxiv, June 14, 2020. Disponível em: http://connect.medrxiv.org/relate/content/181.