O enigma Marta e o Brasil no espelho
A Copa do Mundo feminina coloca o país diante de suas mais dramáticas ambiguidades
Quando o primeiro toque na bola da seleção feminina na Copa do Mundo de 2023 for dado, no jogo contra a equipe panamenha, os holofotes não estarão voltados para Marta. Muito provavelmente a melhor jogadora de futebol de todos os tempos estará no banco de reservas, depois de um ciclo errático desde o Mundial de 2019. A expectativa maior é sobre o que ainda pode realizar uma atleta de tamanha envergadura nessas circunstâncias, diante de reações igualmente instáveis do seu país. E é bom não duvidar do seu talento.
A estreia pelo grupo F da competição, disputada na Nova Zelândia e na Austrália, é no dia 24 de julho. Na mesma chave, estão os times que representam França e Jamaica. Considerar a seleção nacional a favorita é ou devaneio ufanista ou desconhecimento a respeito das mais recentes temporadas: os torneios no Brasil alcançaram repercussão inédita, a despeito do abismo de investimentos na comparação com as competições masculinas – se o fosso continua monumental no planeta, no país é quase deboche.
A edição da Copa do Mundo é um sucesso comercial. Os recursos explodiram em sintonia com campanhas, manifestações e denúncias na última década para a valorização da mulher. Foi criado um ambiente mais propício para o florescimento da modalidade, o que ajuda a explicar o recorde de mais de 1 milhão de ingressos vendidos para o Mundial. O marketing bem-sucedido não deve levar a conclusões precipitadas acerca do fim do preconceito ou de uma eventual redução drástica.
Apesar de se distanciar do favoritismo, o futebol brasileiro tem nós a desatar no torneio. Eleita em seis diferentes anos a melhor jogadora do mundo, Marta perdeu jogos da preparação por conta de lesões. A convocação foi colocada em dúvida até o anúncio oficial. Parceira da atleta em inúmeras ocasiões, a atacante Cristiane foi preterida. Antes do anúncio da treinadora Pia Sundhage, os questionamentos se concentravam em suas idades: centroavante tem 38 anos e é um ano mais velha do que a meia.
Esse último ato na seleção vai se desenrolar até o dia 20 de agosto, data em que as duas finalistas definirão quem fica com o troféu em partida em Sidney – somente, é claro, caso o time brasileiro tenha um desempenho fantástico e avance até a decisão. A memória sobre Marta será afetada pelo que acontecer nos gramados, mas nada vai rasurar seus feitos. A relação com a maior atleta da modalidade continua ambivalente e, novamente, a presença em campanhas publicitárias pode enganar.

A garota-propaganda tem sido acionada com mais frequência nos últimos anos. Entretanto, o reconhecimento contrasta com reações ainda mornas diante de uma alagoana que nasceu no município de Dois Riachos e fez o planeta se curvar ao seu rendimento. Esse sucesso esportivo se reflete em números – trata-se da maior artilheira da história do torneio. Em 2023, Marta iguala a marca da também brasileira Formiga e participa pela sexta vez da Copa do Mundo. Ambas são recordistas.
A justificativa automática para a postura impassível é o antagonismo com o glamour do futebol masculino. Os cinco títulos mundiais conquistados se somam às duas medalhas de ouro consecutivas em 2016 e 2021 entre os homens. Na comparação, a ausência de vitórias de maior porte facilita a visão depreciativa. Ignora, por exemplo, que os primeiros Jogos Olímpicos disputados pela seleção feminina foram os de Atlanta em 1996. É mais fácil esclarecer o impasse a partir da política – dos últimos anos e de remotas décadas.
Em momentos decisivos, o futebol feminino colocou o país perante suas próprias ambiguidades. As mulheres brasileiras passaram a poder votar em 1932. Foi durante o longo e tumultuado intervalo até que o Getúlio Vargas deixasse o Palácio do Catete. Em 1940, o mesmo presidente proibiu a prática do futebol feminino devido aos riscos à maternidade. As decisões foram tornadas públicas por meio de decretos presidenciais. Aparentemente paradoxais, as medidas demonstram os vaivéns dos direitos no Brasil.
Os femininos, inclusive. É iniciada, então, a luta para a legalização e o incentivo à modalidade. Com a virada para o século XXI, o futebol feminino ascendia comercialmente e alcançava maior interesse do público: era o governo Bolsonaro e o então presidente resolveu menosprezar a luta pela igualdade nos salários ao eleger Marta como o alvo preferencial das críticas. A jogadora respondeu e foi obrigada a lidar com um ofensivo enxame de postagens, orgânicas ou de robôs – com o ódio.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).