O escritor que nos levou da cidade para o Brasil profundo
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Itamar reflete sobre sua origem, a influência dos estudos na moldura de seu caráter, o papel da literatura, além de revelar as expectativas de ter Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do país pela terceira vez
“Tudo que eu não gosto é falar de mim mesmo. Eu posso falar sobre o país, sobre política, sobre literatura”. Itamar Vieira Junior (Salvador, 1979), responsável por um dos maiores fenômenos da literatura brasileira neste século, prepara o lançamento de seu segundo romance, dando seguimento ao que poderia ser chamado de “trilogia do Brasil profundo”. Salvar o Fogo chega às livrarias em abril de 2023 e põe em marcha uma nova etapa de seu projeto literário, que se iniciou em 2018, com Torto Arado, atualmente traduzido em 23 idiomas, com milhares de exemplares vendidos no Brasil, transformado em música, série de televisão, peça de teatro.
Graduado em geografia, mestre e doutor pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o escritor se deixou influenciar pelo Brasil rural, sobretudo no Maranhão e no interior baiano, por onde viajou durante mais de 15 anos a serviço do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), lidando com camponeses, indígenas e quilombolas, para encontrar sua voz literária. “Minha formação é tudo o que eu sou, a maneira como eu penso não só literatura, mas também a vida política”, declara.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Itamar reflete sobre sua origem, a influência dos estudos na moldura de seu caráter, o papel da literatura, além de revelar as expectativas de ter Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do país pela terceira vez. Crítico da maneira alienada como muitas pessoas vivem nas grandes cidades, defende a educação como instrumento de libertação dos povos oprimidos.

Dentro de seu ambiente familiar, o que te levou para a literatura?
Desde que aprendi a ler, tenho um livro comigo e isso é uma coisa muito misteriosa porque eu não vivi numa casa de leitores, era uma casa que quase não tinha livros. Para não dizer que não tinha nada, nós tínhamos uma Enciclopédia do Estudante, da Editora Abril, que era muito mais fininha do que a Barsa, que era um luxo. Meu avô materno, que ainda é vivo, trazia revistas em quadrinhos pra mim quando eu tinha aprendido a ler e tudo isso me incentivou a ser um leitor. Ao mesmo tempo, já nesse momento, comecei a escrever histórias curtas, coisas que eu nem sabia o que era. Hoje, quando lembro, penso que era uma espécie de peça teatral que eu representava na escola com os colegas, mas desde sempre eu escrevo.
E quando você se enxerga como escritor?
Eu tinha muito pudor, primeiro porque, princípio, não é uma atividade para pessoas da minha classe social. A gente tem essa visão bem determinista. Não tinham escritores na minha classe, parecia mais uma fantasia, mas esse ímpeto de escrever sempre me acompanhou e sempre escrevi. Agora, se você me perguntar quando eu disse para mim mesmo que sou escritor, foi quando publiquei meu primeiro livro e li uma matéria no jornal dizia: “O escritor Itamar…”. Aí eu disse, “ah, se eles estão dizendo que eu sou, então eu sou”.
Na graduação você estudou geografia. O que pesquisou na formação de pós-graduação?
No mestrado eu escrevi uma dissertação sobre produção do espaço urbano e valorização imobiliária. Terminei em 2007, já como funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e trabalhando no Maranhão. Voltei para a Bahia em 2009, mas estava muito inquieto. Entre o mestrado e o doutorado foram seis anos trabalhando muito no Instituto, uma baita escola, nós aprendíamos “na marra”, no campo, com as pessoas, vivendo os conflitos, tudo aquilo me deu um arcabouço de experiência que eu não teria em outro lugar – onde trabalhei com educação no campo, assistência técnica para trabalhador rural e regularização quilombola, que eu achava fascinante.
Com três anos de trabalho nas comunidades quilombolas voltei para a universidade e fiz algumas disciplinas como aluno especial. Prestei a seleção, fui aprovado e escrevi minha tese sobre regularização de território quilombola de uma comunidade na Chapada da Diamantina. E essa experiência foi fundamental para que Torto Arado, uma história que já estava comigo há muito tempo, ganhasse densidade e profundidade. O que eu vivi nessa comunidade e na Chapada da Diamantina fez com que eu deslocasse essa narrativa para lá. Foi assim que retomei os escritos desse romance cuja semente foi plantada há mais de 25 anos. Eu escrevi as primeiras páginas desse livro quando eu tinha 16 anos. Então, a experiência acadêmica foi fundamental. Minha formação é tudo o que eu sou, a maneira como penso não só literatura, mas também a vida política.
Conte-me mais sobre a origem de Torto Arado.
Eu estava morando em Pernambuco, cheguei a escrever 80 páginas numa máquina de datilografar. O mote principal da história é o mesmo: ela se passava numa propriedade rural, protagonizada por duas irmãs, e falava muito da relação delas com o pai. E só. Eu não lembro dos nomes das personagens, não eram os mesmos, não lembro de muita coisa. Anos depois, com toda essa experiência de campo no Maranhão e na Bahia, a história ganhou densidade e profundidade, porque eu nunca desisti de contá-la.

Como o Maranhão influenciou sua escrita?
Eu não diria que o Maranhão influenciou a minha escrita, ele influenciou quem eu sou, minha percepção de mundo, de vida, me marcou profundamente. E era uma coisa que eu precisava falar, precisava encontrar uma maneira de contar. Essa é a graça da literatura, nada do que a gente conta é absolutamente novo. O que destaca um livro do outro é a forma como se conta essa história. E, pensando nesse sentido, eu posso dizer que a minha convivência com os camponeses me ensinou a ter um olhar muito apurado, acurado para aquilo que é contado.
Foi no Maranhão que você teve contato com pessoas vivendo em situação de servidão pela primeira vez?
Foi. Só que, hoje, pensando bem, na cidade eu já encontrava pessoas vivendo assim, porém não tinha a leitura crítica para dizer “essas pessoas vivem numa forma de servidão”. E, infelizmente, é muito comum. A gente passa por inúmeros lugares e encontra isso. Mas, de maneira mais direta e que me fez uma fazer associação com o nosso passado, foi no Maranhão.
Muitas pessoas sequer imaginam que exista essa situação de servidão no Brasil. No senso comum, o “modelo de pobreza” é mais associado às favelas do núcleos urbanos. Quão distante da realidade estão as pessoas que vivem nos grandes centros e como isso poderia mudar? A literatura pode ser um dos caminhos?
Eu acredito que na cidade nós vivemos um pouco alienados de tudo. As cidades são construídas de uma maneira muito segregacionista. No Brasil há verdadeiros espaços de apartheid se nós formos pensar as grandes cidades. Bairros como o Jardins, em São Paulo, ou como o Horto Florestal, em Salvador, são espaços exclusivos onde pessoas podem viver de uma maneira artificial, achando que esse país é um lugar maravilhoso, que elas estão a salvo de tudo. A alienação que se vive na cidade pode ser brutal. Primeiro, porque a gente não precisa ir até a terra para colher nosso alimento, a gente pode ir no restaurante, supermercado, comprar feijão, arroz, tomate, e nem vamos nos perguntar de onde veio aquilo. Quem plantou? De que país veio? É do nosso? É da Bahia? A gente não sabe. Se quisermos comida, a gente compra, vamos lá e estabelecemos uma relação comercial com a alimentação, ninguém se pergunta sobre nada, não importa o que está acontecendo com aquelas pessoas que produzem alimento. E pra mudar isso só com educação, que é a base de tudo.
Agora, sobre a literatura: eu acho que ela não tem uma função social definida. Ela pode ser pura diversão, entretenimento, e eu acho bom que seja assim. Mas ela também pode ser uma fonte de informação, uma fonte de experiência muito poderosa.

Você busca algum tipo de transformação pessoal ou social quando escreve, ou escreve por puro entretenimento?
Não busquei, é uma questão minha. Não é por entretenimento também, é uma questão vital, porque, pra mim, escrever é estar vivo. Mas, sem grandes pretensões, e eu digo isso com profunda honestidade. Eu não escrevia para mim, claro. Escrevia imaginando as pessoas que estavam a minha volta, as mais imediatas, que são os leitores mais próximos, pessoas que eu conheço, que escrevem e que gostam de literatura, mas nunca extrapolando essa esfera para encontrar tantos leitores. Nós somos seres essencialmente políticos. Então, se eu digo “minha literatura é política”, é um eufemismo. Toda literatura e toda a escrita é política, mesmo aqueles que se dizem neutros. A neutralidade é uma face da política. A política é um dos pilares da condição humana. Então, eu não penso se é uma arte política, engajada, porque tudo é político.
Então o que leva um autor famoso como você a mergulhar de cabeça na campanha eleitoral de 2022?
Sem querer eu alcancei esse lugar – que é muito incipiente ainda, se for pensar no universo das redes sociais, por exemplo, onde artistas que possuem engajamento imenso como figura pública. Nós temos um compromisso com a sociedade, com o nosso tempo, com as coisas que acontecem em nosso país. No caso dos ianomâmis, por exemplo, muito se creditou aquilo que tem ocorrido nesse território ao descaso do último governo. Eu concordo com isso, mas acho que nós também somos responsáveis, porque permitimos que chegasse àquele estado, que aquele governo continuasse, fosse até o fim e levasse aquele projeto de morte e destruição até as últimas consequências. Ou seja, me pensando como agente ativo da sociedade, é claro que eu não poderia me esquivar de me engajar num momento tão importante e delicado da nossa vida social.
Houve algum medo de perseguição?
Medo sempre há! Mas, ao mesmo tempo, é como aquela frase do Guimarães Rosa: “A vida… o que ela quer da gente é a coragem”. Eu preciso enfrentar esse medo. Nesse momento de me posicionar em relação à situação do país, o medo existia, mas eu precisava seguir em frente. Eu não posso me omitir. Eu acharia muito vergonhoso se eu precisasse me esconder num momento tão crucial.
Com a eleição do presidente Lula, você já percebe algo diferente no país?
As mudanças estão em curso, mas, muitas vezes elas são mais lentas do que desejamos. Nós somos ansiosos, queremos resolver tudo imediatamente, mas administrar um país é uma coisa muito complexa, temos que ter isso em mente. Eu acho que as pessoas que estão chegando ao governo, se colocando, sendo convidadas a trabalhar, são sensíveis à causa. Então minhas expectativas são muito boas, positivas. Claro, não será fácil, nunca foi. Mas eu vejo boas intenções e é bem provável que haja uma diferença do último governo, que foi tão desastroso.
Depois de publicar um livro de imenso sucesso por que não parar de escrever, como fez Raduan Nassar, por exemplo?
[Risos] Eu penso nisso todos os dias: quando é que vou me aposentar? Eu precisava ter a coragem do Raduan. Ainda não me resolvi com a literatura, e talvez por isso eu precise escrever. Minha meta é chegar até lá e dizer ‘já fiz a minha parte, agora vou me recolher’.
Sobre o Raduan, eu acho que ele carrega uma coisa que é uma convicção que eu tenho: o trabalho literário fala por si só. É claro que nós, como seres humanos, somos movidos pela curiosidade, a gente quer saber quem escreveu, o que o autor faz da vida. Eu, como leitor, também tenho essa curiosidade sobre outros autores. Mas o Raduan, assim como o Dalton Trevisan, conseguiu estabelecer um limite: ‘o que importa é aquilo que eu escrevo, não quem eu sou’. Eu acho isso muito corajoso, quem sabe um dia eu chego lá.
Como você classifica sua literatura, camponesa, rural?
Apenas como literatura. Neste momento minha zona de interesse está no campo. Meu próximo livro, Salvar o fogo, se desenrola em grande medida nesse ambiente. Isso não quer dizer que não possa mudar daqui a dois ou três anos, que eu não queira olhar para outros lugares, compreender outras perspectivas de vida.

Torto Arado é o início de uma trilogia da relação do homem com a terra. Salvar o Fogo é a segunda parte. Como anda esse projeto?
Quando eu terminei de escrever Torto Arado vi que ali não tinha se esgotado tudo que eu queria falar sobre essa relação de homens e mulheres com a terra. Eu me lembro que o livro saiu em Portugal primeiro, e quando nós estávamos em busca de uma editora no Brasil, no começo de 2019, eu escrevi um longo e-mail para o Leandro Sarmatz, que é editor da Todavia, anexando algumas publicações da imprensa portuguesa, e disse para ele que aquele romance era a primeira parte de um projeto maior. Agora, Salvar o fogo dá essa continuidade a essa trilogia que eu tinha pensado.
Faz parte do seu processo criativo selecionar uma biografia enquanto escreve. Quais livros você separou para escrever Salvar o fogo?
Eu preciso estar imerso na linguagem, uma coisa não se desassocia da outra. Escrever é ler e ler é escrever. Então, separei alguns livros de ficção e não ficção que eu já tinha lido, mas que revisitei no processo de escrita. Entre eles: As Lanças do Crepúsculo, do Philippe Descola; A Queda do Céu, do Bruce Albert e do Davi Kopenawa; e A inconstância da alma selvagem, do Eduardo Viveiros de Castro. Acho que esses três foram os que eu mais persegui com afinco. Outro livro que eu sempre volto é Grande Sertão: Veredas. Ah, e também tem uma autora americana pouco conhecida no Brasil, que me interessa muito esse olhar que ela tem pelos menos favorecidos. Ela tem uma tetralogia sobre uma comunidade nos Estados Unidos chamada Gilead, eu reli muito esses livros da Marilynne Robinson, eles são fundamentais. Ela escreve de uma maneira tão pungente, doce e humana ao mesmo tempo, e pra mim foi bom revisitar essas histórias, ela é uma fonte de inspiração.
E quais livros você está lendo atualmente?
Estou lendo um livro que ainda não foi publicado, Chuva e vento sobre Télumée Milagre, da Simone Schwarz-Bart, pois vou escrever o prefácio. Terminei agora de ler Padre Cícero, do Lira Neto. Não é muito recente, mas eu ainda não tinha lido. Uma biografia de um dos personagens mais fascinantes da história desse país, pelo humano que ele foi, um homem complexo, que fala desse lugar, que surge da terra, desse Brasil profundo, que carrega esse misticismo. Por lá passa a Coluna Prestes, o bando de Lampião, Vaticano, está tudo na biografia. É uma parte da história do Brasil. Uma história fascinante de um personagem fascinante.
Por fim, o que as pessoas podem esperar de Salvar o Fogo?
Eu acho que o leitor pode esperar uma história que a gente lê e conhece aquelas personagens. Talvez seja isso, que as pessoas encontrem ou reencontrem alguém que gostam muito. É uma história que fala de uma comunidade que vive às margens do Rio Paraguaçu, no recôncavo da Bahia, sob a sombra de um mosteiro católico do Século XVII. Então, a religiosidade perpassa a vida das personagens de uma maneira muito intensa e violenta. Luzia é uma mulher que lava as roupas desse mosteiro e, por conta das dificuldades, ela não tem apreço pela terra, tudo que sonha é poder migrar para a capital. Porém ela cria uma criança muito mais jovem, um irmão, e tem uma deficiência física – ela é corcunda. Lavar as roupas da igreja é uma maneira de livrá-la de algo que aconteceu há muito tempo, que é uma hostilidade que a comunidade tem contra ela. Algo aconteceu, que eu não vou contar, claro, o leitor vai descobrir à medida que ler, mas que marcou essa mulher como uma bruxa, como alguém indesejada numa comunidade cristã e católica. Existem histórias que nós lemos que é como se a gente reencontrasse personagens que fizeram parte da nossa vida, ou de histórias que a gente conhece, e é por isso que eu falei desse reencontro com elas.
Notas:
1.A HBO adquiriu os direitos de Torto Arado para produzir uma série e buscou parte do elenco na Chapada Diamantina, região da Bahia onde a história é ambientada. Inicialmente a produção será dirigida pelo cineasta Heitor Dhalia e contará com três temporadas, cada uma com seis episódios.
2.O cantor e compositor Rubel lançou no início de março a canção Torto Arado, inspirada no livro homônimo de Itamar Vieira Junior. A faixa tem participação das cantoras Luedji Luna e Liniker e faz parte do novo disco do compositor, “As Palavras Vol.1 & 2”, que já está disponível nas plataformas digitais.