O eterno retorno da crise financeira
Desde que a liberalização financeira passou a imperar, tem sido difícil passar mais de três anos sem um grave incidente. A atual crise dos mercados de crédito permite entrever, uma vez mais, os ingredientes do desastre
Hegel, há dois séculos, deplorava a incapacidade crônica dos Estados de aprender com as experiências da história. Os governos não são os únicos poderes incapazes de aprender. O capital – notadamente o financeiro – também parece condenado à perseverança no erro, à aberração recorrente e ao eterno retorno da crise financeira. Apesar de relativa a novos “objetos”, a atual crise dos mercados de crédito permite entrever, uma vez mais, os ingredientes quimicamente puros do desastre, oferecendo a quem quiser ver uma ocasião a mais para meditar sobre as “benesses” da liberalização dos mercados de capitais.
É que a crença financeira não se dissipa com facilidade e, logo ela, que se vangloria de ser a encarnação do princípio de realidade, que submete as empresas tão-somente à “validação dos fatos”, segundo os critérios do “reporting” (prestação de contas trimestral) e do “track record” (“histórico” de desempenho), continua asininamente ignorante disso que a história recente – sua própria história – lhe entrega de bandeja, embora de modo acachapante. É que, na verdade, o “track record” da liberalização financeira não goza de boa reputação… Não podemos nos esquecer de que, desde que ela passou a imperar, tem sido difícil passar mais de três anos seguidos sem um incidente de envergadura – quase todos poderiam figurar nos livros de história econômica: 1987, quebra memorável dos mercados de ações; 1990, quebra dos “junk bonds” (“títulos podres”) e crise das “savings and loans” (financeiras de poupança e empréstimos) americanas; 1994, quebra dos titulares de debêntures americanos; 1997, primeira fase da crise financeira internacional (Tailândia, Coréia, Hong Kong); 1998, segunda fase (Rússia, Brasil); 2001-2003, estouro da bolha da Internet.
E aqui estamos nós, em 2007. Leitura dos devotos: “A globalização é auspiciosa, mas dolorosa”1… No Le Monde, Pierre-Antoine Delhommais deleita-se com a resistência da besta diante de tantos choques de vulto, que nos fizeram questionar, em cada episódio, se não acabariam por matá-la – que, a cada vez, não só se reergue, como também volta a andar com ânimo renovado. O fato é que não devemos nos surpreender com ele. Tirando o fato de que o jornalista esquece o quanto custou aos assalariados, em cada uma daquelas ocasiões, pagar a conta da embriaguez financeira. Pois, invariavelmente, a degringolada dos mercados atinge os bancos, portanto o crédito, em seguida os investimentos, o crescimento… e o emprego.
Seria necessário quem sabe a aquisição de seu jornal por um fundo de investimentos um pouco impiedoso para que, ao viver a experiência concreta do “downsizing” (“enxugamento”), Delhommais se visse mais impelido a calcular o acúmulo de pontos de crescimento perdidos e de empregos destruídos em função das práticas do mundo financeiro e (mais ainda) de suas crises – e que as “dores” da globalização lhe fossem pessoalmente penosas para que ele deixasse de considerá-la “auspiciosa”.
A crise dos mercados de crédito que castiga a economia americana oferece, porém, um panorama quase ideal dos encadeamentos fatais da especulação desenfreada. Como em uma parada, desfilam novamente as toxinas gerais do mundo financeiro, sempre as mesmas e numa ordem absolutamente idêntica: 1) as tendências “Ponzi” da especulação; 2) o laxismo da avaliação de riscos na fase de alta do ciclo financeiro; 3) a vulnerabilidade estrutural a uma pequena mudança de ambiente e o efeito catalítico de um enfraquecimento local, que precipita a reviravolta; 4) a revisão imediata das estimativas; 5) o contágio lateral das dúvidas a outros setores do mercado; 6) o choque dos bancos excessivamente expostos; 7) a ameaça de um acidente sistêmico, ou seja, de um colapso global, seguido de uma recessão generalizada por estrangulamento do crédito… e um pedido de socorro aos bancos centrais feito por todos os fanáticos da livre iniciativa privada…
As tendências “Ponzi” dos mercados
Provavelmente, ninguém mais do que Hyman Minsky evidenciou esse encadeamento da economia de mercado, resumido por ele na eloqüente denominação de “cegueira ao desastre”2. Ora, Minsky dedica uma particular atenção aos dissabores provocados por Charles Ponzi, especulador dos anos 20, que havia se aproveitado da poupança dos crédulos seduzidos por promessas de rendimentos extraordinários. Na falta de qualquer ativo real capaz de cobrir os desempenhos anunciados, Ponzi servia seus primeiros clientes não com dividendos inexistentes… mas com o capital aportado pelos que vinham depois – a sustentabilidade do conjunto supunha, portanto, a imperiosa manutenção de um fluxo de novos clientes!
Próximo à fraude, é num mecanismo bastante semelhante que se baseiam todas as bolhas, que requerem um afluxo constante de liquidez investida para manter o mercado em alta e a ilusão de que assim todo mundo ganha. O alistamento especulativo, esse é o segredo da bolha e, evidentemente, uma vez passada a convocação dos primeiros recrutas, serão soldados cada vez mais comuns, portanto cada vez menos esclarecidos – mas cada vez mais numerosos –, os convidados a engrossar suas fileiras.
Para que o crescimento do mercado imobiliário americano se prolongasse, se possível ad aeternam, era portanto necessário que grupos cada vez mais significativos de casais fossem levados a procurar o mercado de empréstimo hipotecário. Não foi nada difícil convencê-los, no início – com o auxílio do sonho americano de ser proprietário –, até porque, escaldados pela queda das ações causada pela bolha da Internet, eles estavam à procura de outras formas de investimento. Mas o contingente de tomadores de empréstimo “saudáveis” esgotou-se rapidamente e como o mercado precisava imperativamente ser sustentado, os corretores de empréstimos imobiliários foram cada vez mais longe à procura de novos contingentes… Pé chato? Asma? Falta de cálcio? Problemas psicológicos? Sem problema: aptos para o serviço! E por que a guerra não poderia ser assim, divertida e alegre? Os compradores entram aos pelotões no mercado e os preços explodem.
Mesmo que não seja possível recuperar o dinheiro, casais e corretores pensam simploriamente que a casa poderá ser vendida, com valorização para uns e comissão para outros. E já que, com base na crença no crescimento indeterminado do mercado, todo mundo acaba sendo declarado apto, as torneiras do crédito são abertas por completo, e a alta especulativa desse modo alimentada parece dar razão a todos. E assim emerge a categoria, convocada a passar para a posteridade, dos “subprime mortgages” – esses empréstimos imobiliários cujos beneficiários, desconhecidos dos estabelecimentos de crédito, são de uma solvência mais que duvidosa. E como a euforia está no auge, todos os limites podem ser ultrapassados: nesse âmbito, dificilmente se conseguirá fazer melhor do que os chamados empréstimos “Ninja”: “No Income, No Job or Asset”, ou seja, “sem renda, sem emprego ou sem ativo (a ser dado como garantia)”, e o champanhe de brinde, talvez.
O laxismo na avaliação de riscos
Mas o mercado financeiro tem recursos – aliás, ele não costuma se dizer especialista em controle de riscos? Em todo caso, o fato é que ele não peca por falta de criatividade. O grande golpe? Os “produtos derivados”. O problema de um crédito, ainda mais quando ele é de risco, é que ele continua nos livros de quem o concedeu até sua conclusão – seja ela boa ou ruim. O grande achado, que remonta ao início anos 90, consiste em “fundir” um certo número de créditos para com eles fazer uma linha de títulos obrigatórios negociáveis. A grande vantagem dessa operação, adequadamente chamada de “securitização”, diz respeito ao fato de que os títulos assim “fabricados” podem ser vendidos nos mercados em pequenos lotes a diversos investidores (institucionais), que os comprarão de bom grado. E eis aí então os créditos duvidosos que saem do balanço do banco – compreendemos agora que ele os conceda com tanta facilidade: por saber que pode se livrar deles assim que forem securitizados!
Mas por que os investidores querem comprar aquilo de que o banco quer se livrar? Para começar, porque eles os adquirem em pequenas quantidades e, sobretudo, porque esses títulos são negociáveis, ou seja, passíveis de serem novamente cedidos. E depois, porque a linha de títulos derivada do grupo inicial de créditos é na verdade recortada em diferentes fatias de riscos homogêneas. Conforme o seu próprio perfil e a sua aversão ao risco, cada investidor institucional garimpará na fatia que lhe convém, sabendo que sempre encontrará algo – especialmente os “Hedge Funds” [NT: fundo que investe no comércio a prazo de mercadorias, visando diminuir os riscos e reduzir os prejuízos; fundo de investimentos aplicados em diversos mercados ao mesmo tempo] –, por querer a fatia de maior risco… já que ela também é a mais lucrativa… enquanto tudo vai bem.
Evidentemente, todos os direitos (fluxos financeiros) e riscos (de inadimplência) ligados aos créditos iniciais são transferidos aos portadores desses títulos, chamados de RMBS (“Residential Mortgage Backed Securities”, ou seja, títulos amparados em créditos imobiliários), mas esses portadores são tantos – e mudam tanto – que daí decorre uma extraordinária dispersão do risco global. Lá, onde o banco gerador do crédito enfrentava sozinho a inadimplência relativa a um de seus empréstimos, agora não somente ele está totalmente desembaraçado, como também as conseqüências dela estão fragmentadas entre uma miríade de investidores, que assumem, cada um, uma parte mínima, diluída no conjunto de sua própria carteira.
Riscos diluídos… ou superestimados?
Mas então, poderíamos perguntar, por que o alarme se, com a panacéia da securitização, o mercado financeiro resolveu a quadratura do círculo? E tanto mais porque a operação de securitização será reiterada a partir dos RMBS, dos quais as piores fatias exigem um tratamento especial, para serem mais facilmente escoadas. A partir de seus RMBS, alguns investidores também emitirão um novo tipo de títulos negociáveis, os CDO (Collateralised Debt Obligations). Títulos derivados de títulos, a emissão de CDO rearranja a respectiva fração da carteira de RMBS em diferentes fatias. A fatia superior, chamada de “investment grade”, libera seus portadores dos primeiros 20% ou 30% de inadimplência sobre os créditos imobiliários iniciais. Segue-se uma fatia intermediária, chamada de “mezanino”, e finalmente uma fatia mais baixa, que sofrerá o choque das primeiras insolvências.
Dá-se o nome pudico de “equity” a essa fatia, mas a linguagem dos mercados diz as coisas mais na lata: “toxic waste”, ou seja, “resíduos tóxicos” – eis o nome reservado a esses produtos que de certa forma elevam o risco ao quadrado, pois representam a fatia de maior risco (os CDO), derivada da fatia mais arriscada (os RMBS) retirada da carteira inicial de créditos. Mas enquanto o mercado imobiliário continuar subindo e os casais continuarem fazendo o reembolso, sempre haverá tomadores, já que – como a toxicidade ainda não está materializada – só restam as remunerações espetaculares.
Os “Hedge Funds”, que podem levantar fundos a taxas mais baixas, investem em títulos de alto risco – que se acredita poder revender ad libitum enquanto o mercado tiver, supostamente, liquidez – e que remuneram proporcionalmente – ou seja, muito. As margens são enormes, tomam-se os “resíduos tóxicos” por ouro, e os golden boys fazem a festa. Os lucros faraônicos mascaram os riscos objetivos, que ninguém quer enxergar para que a galinha dos ovos de ouro continue viva o maior tempo possível e, enquanto isso, os corretores imobiliários seguem com o recrutamento em massa.
Vulnerabilidade estrutural e insolvência
A dispersão dos riscos pelas operações de securitização acumuladas acabou levando a crer que eles não mais existiam. É uma ilusão. Tanto mais pelo fato de que essa doce embriaguez logicamente induziu, em sua base, a comportamentos cada vez mais aventureiros. Já que estou me desfazendo dos meus créditos, mesmo dos piores, diz a si mesmo o financiador imobiliário, então o negócio é ir fundo; e já que o mercado está com liquidez, diz a si mesmo na outra ponta o “Hedge Fund”, por que não pegar os CDO mais podres, tendo em vista que são os mais polpudos? Os riscos certamente foram diluídos, mas a própria diluição engendrou um crescimento totalmente descontrolado de seu volume global, e a situação caminha suavemente para as zonas críticas.
A fragilidade estrutural do edifício agora é tal que ele se torna vulnerável a modificações do ambiente a priori insignificantes. A elevação de 0,25% na taxa de juros pela Federal Reserve aparentemente não é nada. Exceto pelo fato de que, na outra ponta da curva de riscos, o crédito imobiliário de Mrs. Brimmage passou dos 6,3% de 2005 para 11,25%, e suas parcelas mensais subiram de 414 para 691 dólares3. Razão mais que suficiente para ela deixar de pagar. Como ela, 14% dos tomadores de empréstimo “subprime” entraram em inadimplência no primeiro trimestre de 2007.
Falando em termos modestos, as altas da taxa de juros do Banco Central têm um duplo efeito de corte. De um lado, há menos gente entrando no mercado imobiliário e os preços começam a baixar; de outro, aqueles que estão nele vêem suas parcelas se tornarem insuportáveis e a “saída” ficar comprometida. De fato, a realização de seu ativo não somente se faz por uma desvalorização para eles mesmos, mas também acentua a pressão de baixa generalizada.
Como sempre ocorre nas crises financeiras, um organismo especializado tem uma grande perda e é o seu colapso que, ao impressionar as pessoas, dá o sinal da grande virada. Nesse caso, duas falências – nas duas pontas da corrente – vieram colocar um ponto final na embriaguez dos mercados. De início, foi o banco de investimentos Bear Stearns, que teve de fechar dois de seus fundos “dinâmicos”, sem dúvida um pouco demais, e de fato estimulados pelos CDO. Mas é também o American Home Mortgage, agente imobiliário que deve colocar-se claramente sob a proteção do capítulo 11 da lei de falências4. Essa desventura é mais inquietante do que a anterior. Porque o AHM não está especialmente engajado no compartimento dos “subprime”: aliás, como deve ser isso para os outros grupos…
Revisão das avaliações de riscos
Desta vez, houve uma leve brisa de pânico. Os “toxic wastes” já cheiram bem mal e as pessoas começam a dizer que os AAA ou AA5 das fatias de “investment grade” de CDO talvez estejam bastante adulterados. Mas como se pôde chegar a erros de avaliação tão monumentais? Com certeza, a complexidade objetiva da avaliação dos produtos derivados não tem nada a ver com isso. Com certeza, as agências de rating avaliam essas fatias de CDO e RMBS às centenas. Entretanto, elas não passam de boas trabalhadoras que se curvam diante da amplitude da tarefa. Seu próprio faturamento provém das instituições financeiras, que emitiram loucamente esses títulos a serem avaliados – 40% do rendimento de 2006 da Moody’s foi conseguido com avaliações de produtos estruturados. Ora, para que haja novos produtos para analisar, sem dúvida é preferível que os antigos sejam declarados saudáveis.
A isso se acrescente uma demonstração adicional de que as agências de rating realmente nunca souberam ser independentes dos entusiasmos do mercado que deveriam moderar, e que na verdade, na maior parte do tempo, servilmente lhe serviram de coro. É que é difícil, quando se está próximo ao meio financeiro e quando, além disso, se vive às suas expensas, se mostrar ousado num momento em que todo mundo está enchendo os bolsos. Catastroficamente pró-cíclicas quando deveriam ser contracíclicas, as agências se mantêm alheias durante a alta, e se põem apavoradas a fazer a revisão quando a reviravolta acontece, contribuindo dessa forma para transformá-la em colapso.
E a crise provavelmente está apenas no começo. É que as falências imobiliárias domésticas que estão por vir se acumulam silenciosamente na antecâmara das “teasing rates”, essas taxas muito atraentes com a ajuda das quais os corretores seduzem os clientes, segundo a chamada regra dos “2 + 28” – os dois primeiros anos na taxa simpática, os 28 seguintes na taxa plena, o que causa problemas. Portanto, ainda não vimos irromper a promoção 2006, e quase nada da de 2005, as mais fortes da bolha imobiliária, que sem dúvida serão notáveis. Exatamente como os admiráveis “Hedge Funds” empanturrados de seus produtos derivados.
E como a globalização das finanças, e com ela a estupidez financeira, nada disso se limita às fronteiras norte-americanas. É verdade que é lá que o mercado hipotecário delira, mas a securitização daí derivada se oferece de forma magnífica a todos os fundos especulativos do planeta! Os alemães, durante muito tempo considerados mornos e tediosos, agarrados a seus melancólicos bancos de varejo, na virada do século decidiram se tornar “modernos” e se voltar mais decididamente para as atividades de mercado. Resultado: depois do grande susto de 1998 (risco russo) e das surras da Internet (2001), eis que um banco, o IKB, se encontra à beira da falência por causa da superexposição aos “subprime”…
O contágio da suspeita
Agora, tudo se encadeia de um canto a outro do globo e dos mercados. O frágil equilíbrio dos produtos derivados resistia enquanto ninguém o provocava, quer dizer, enquanto todos fingiam acreditar que o mercado onde faziam suas trocas tinha liquidez. Mas assim que um dos atores sofre exageradamente e começa a querer sair fora vendendo seus CDO, o medo latente se cristaliza e todos os compradores desaparecem. Com a liquidez evaporada, os ativos, formalmente negociáveis, praticamente deixam de sê-lo, e se tornam até impossíveis de ser avaliados, já que seu preço pode virtualmente cair a zero.
Engraçado – até a hora em que se começa a chorar –, o comunicado do BNP-Paribas, que em 9 de agosto fechou três de seus fundos – também eles “dinâmicos”: “O desaparecimento em certos segmentos do mercado da securitização nos Estados Unidos conduz a uma ausência de preço de referência e a uma falta de liquidez quase total dos ativos [dos fundos], não importa qual seja a sua qualidade ou sua classificação”6. Tudo isso não tinha impedido nem por um instante que Baudoin Prot, dono do banco, afirmasse categoricamente, uma semana antes, que a liquidez dos três fundos estava assegurada. Isso quer dizer, sobretudo, que a inquietação ultrapassa amplamente o perímetro dos produtos de maior risco e contamina as fatias consideradas mais seguras.
Ora, nessa seara tão fértil o contágio não vai parar. Não somente ele atinge todas as classes de risco dos RMBS e derivados, como também se estende a outras partes do mercado que nada têm a ver com ele. A não ser que eles também tenham caído na orgia dos créditos indiscriminados. É exatamente o caso do setor da “Private Equity”, esses fundos de investimento, vedetes das finanças nos últimos anos, que recompram integralmente empresas tidas como promissoras, fazem-nas sair da bolsa, reestruturam-nas no tranco para revendê-las, dois a quatro anos mais tarde, com forte valorização.
Ora, esses fundos comprometem muito pouco dos seus capitais próprios e queimam maciçamente na dívida – da qual, aliás, pagam o serviço com a empresa recomprada! A rentabilidade que daí resulta é simplesmente excepcional. Esta atingiu tais níveis que os bancos literalmente se precipitaram para financiar essas operações. Num estado de quase mistificação e persuadidos de que se ganha de todos os lados, eles concederam a esses fundos condições de empréstimo caracteristicamente surpreendentes. É o caso dos chamados empréstimos “covenant-lite”, ou seja, dispensados de todas as cláusulas relativas a coeficientes financeiros elementares a que são normalmente submetidos os tomadores de empréstimo – “aconteça o que acontecer, nós estamos do seu lado”…
Melhor ainda são os chamados empréstimos PIK (Payment In Kind – pagamento em espécie) ou ainda IOU (I Owe You), cujos juros e o principal são reembolsados não em dinheiro, mas em adicional de dívida acrescentado à dívida inicial! Os encargos de crédito orientados para os fundos de “private equity” [NT: investidores que atuam na participação de aquisições em empresas existentes, de maior porte, e que não requeiram a participação direta do investidor na gestão do negócio; forma de financiamento alternativa utilizada por empresas de médio e grande porte, para garantir o desenvolvimento e a expansão de suas atividades] atingiram com isso volumes astronômicos. Ora, as operações desse tipo são particularmente vulneráveis no momento de desatá-las, já que se trata de revender ativos notoriamente sem liquidez: não blocos de ações, mas empresas inteiras! Ao primeiro acidente que ocorra em meio a essa operação – revenda impossível, adiada ou com desvalorização – será a vez de todo o setor da “private equity” conhecer seu momento de estupefação.
As recentes operações de levantamento de fundos acontecem de forma bastante trabalhosa se comparadas com a facilidade triunfante dos meses precedentes. É que os bancos, cúmplices laxistas, tornam-se subitamente reticentes. Porque, por um efeito de amálgama típico das crises financeiras, a súbita revelação dos riscos em um setor suscita questionamentos paralelos em outros, onde a euforia quase produziu o mesmo estrago. Assim como os insucessos do México em 1994 induziram a dúvida em relação à Tailândia – e aí não se tratava da casa do vizinho! – por um puro efeito de amálgama com base na categoria “mercados emergentes”, da mesma forma, no presente caso, o mercado imobiliário produz efeitos sobre a “private equity”, que nada têm a ver com ele, a menos que aí se tenham cometido excessos quase tão condenáveis quanto.
Choque nos bancos
Ainda que tenham conseguido se desfazer de suas carteiras de créditos imobiliários pelo jogo da securitização, os bancos suportam de todo modo o giro da manivela, e por múltiplas vias. De início, eles deixaram seus fundos de gestão se encarregar dos produtos derivados e o risco hipotecário expulso pela porta voltou pela janela. Mas é também o contágio lateral que os ameaça, marcadamente por meio da “private equity”, onde eles estão diretamente expostos.
Ora, a regulação prudente do setor bancário não brinca: os bancos são instados a manter cuidadosamente coeficientes de solvência entre seus capitais próprios e seus compromissos. Se desvalorizações, ainda que latentes, se manifestarem – e eis que elas se anunciam com muito mais força, levando as agências de rating a despertar e rever todas as avaliações para baixo –, os bancos devem contabilizar as provisões correspondentes e, para manter seus coeficientes, terão de reduzir o denominador (os créditos concedidos) proporcionalmente à contração do numerador (os capitais próprios onerados pelas provisões).
No total, e como sempre, serão os agentes da economia real, empresas e assalariados, distantes de todas as torpezas da especulação, que se verão diante das torneiras de crédito fechadas sem nem mesmo compreender o que fizeram para merecer isso. Porque, para recompor os balanços dos bancos, a contração do crédito será geral, e todos os tomadores de empréstimos ficarão confusos.
O pedido de socorro aos bancos centrais
Bela figura fazem agora os heróis do mundo das finanças. Modernos e arrogantes quando os mercados estavam em alta, ei-los, como o juiz de Brassens diante do gorila, “gritando mamãe, chorando um bocado” e se jogando no colo da “mama estatal” que tanto abominam quando a fortuna os faz proferir todos os impropérios da regurgitação ideológica. Certamente o Banco Central, chamado a livrá-los da ruína cortando as taxas de juros para restaurar a liquidez geral, não é o próprio Estado, mas pólo público, o fora-do-mercado, detestado quando os lucros correm soltos, requisitado quando fecha o tempo.
Jim Cramer, que tem um programa de aconselhamento financeiro na rede de negócios CNBC, aos berros e vestindo camisa de mangas curtas, com um fundo musical de hard rock saturado, tem um ataque de nervos7 e insulta Ben Bernanke, presidente da Federal Reserve, aos gritos de “cut! cut!”8. E como Bernanke parece dispor de tempo, Cramer o premia com o insulto supremo: ele não entende nada, não passa de um “intelectual” (acadêmico)9.
Mais bem vestidos e não tão vulgares, os outros gestores de fundos consultados no mesmo canal estão cem por cento de acordo. Ah, que saudade de Alan Greenspan, que “cortava” as taxas de juros sem reclamar. Um verdadeiro clínico, não se deixava atrapalhar por estudos inúteis, e bastava-lhe simplesmente tatear o lombo da besta para saber que era preciso afrouxar o nó.
Os menos idiotas começam porém a se dizer que essa longa tolerância monetária aos excessos das finanças não foi completamente estranha à formação e ao acúmulo dos riscos que irromperam agora. Quanto a Bernanke, ele tendeu, de início, a deixar os operadores mais imprudentes suportarem as conseqüências de sua inconseqüência. Mas não devemos nos enganar. Essa posição do banqueiro central só pode ser mantida se os problemas continuarem localizados. Quando eles se concentram e precipitam um “risco sistêmico” – ou seja, por efeito dominó, uma quebra generalizada –, não há outra escolha a não ser intervir, e maciçamente.
Aliás, é bem esse o aspecto mais insuportável dos danos causados pelo mundo das finanças, sempre encorajado a ir longe demais, o que equivale a dizer muito além do limiar a partir do qual as autoridades não podem mais se desinteressar de seus infortúnios e são obrigadas a entrar de cabeça para lhes salvar o pescoço – a perfeita tomada de reféns.
*Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.