O fato novo
O que está em discussão – e constitui o motivo de nossa matéria de capa – não é a sinceridade do homem, porém o fato de ele poder ser o catalisador de pensamentos e sentimentos que pareciam congelados desde 11 de setembro de 2001.
Ele é negro – como Martin Luther King e Malcolm X. Chama-se Hussein – como Saddam Hussein. Também responde pelo nome de Obama – que é quase Osama. É filho de pai queniano – daquela África que os ideólogos do neoliberalismo já declararam ser o continente perdido. Nasceu no Havaí – que só com muito favor pode ser considerado parte do território norte-americano. Fez seus primeiros estudos na Indonésia – o maior país muçulmano do mundo. Que esse homem, Barack Hussein Obama, possa vir a ser presidente dos Estados Unidos parece algo quase tão surreal quanto uma mulher virar papa. E, no entanto, até o momento, sua pré-candidatura é o maior fenômeno do processo eleitoral estadunidense, ameaçando as meticulosamente calculadas ambições de Hillary Clinton e despontando com a mais promissora alternativa democrata ao continuísmo republicano.
O segmento jovem, há décadas desinteressado pelo processo político, se sensibiliza com sua campanha. As inteligências se refrescam com sua retória cativante, charmosa como um drible de Ronaldinho. Pessoas que, desde 1989, não viam outra coisa além da alternância de dois clãs – os Bush e os Clinton – na Presidência, reconhecem nele o fato novo. Acima de tudo, Obama entra em cena como um sopro de oxigênio depois oito anos de apropriação mafiosa do poder por gente como Dick Chenney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz.
Obama pode decepcionar? É claro que sim. Sócrates afirmou que a busca desinteressada da sabedoria, na qual se empenha o filósofo, é incompatível com o jogo de interesses que caracteriza a política. Tal ensinamento, que como outros chegou até nós via Platão, contém, implícito, um voto de desconfiança nos políticos. Em todos os políticos. Mais de dois milênios de história, transcorridos desde então, oferecem numerosos exemplos de sua pertinácia. Por que o pré-candidato democrata seria exceção? Ralph Nader, o patético “defensor dos consumidores”, outra vez postulante sem chances à Presidência dos Estados Unidos, acusa Obama de autocensurar seus melhores instintos. São as regras do jogo. O que está em discussão – e constitui o motivo de nossa matéria de capa – não é a sinceridade do homem, porém o fato de ele poder ser o catalisador de pensamentos e sentimentos que pareciam congelados desde 11 de setembro de 2001.
Quem não se lembra da sessão do Congresso norte-americano, realizada pouco depois do ataque terrorista, na qual, secundado por um Tony Blair assustadiço e subserviente, Bush recebeu dos “representantes” uma espécie de mandato imperial? Transmitido em tempo real para telespectadores do mundo inteiro, foi um espetáculo quase tão assustador quanto a própria derrubada das torres gêmeas. Cada frase ensaiada do presidente era seguida de aplausos prolongados. A câmera se detinha no rosto de Hillary, que não ousava mexer um músculo. A atmosfera exibia uma toxicidade totalitária digna do pior imaginário nazista ou stalinista.
Em um de seus textos mais inteligentes, o poeta beat Gary Snider diz que, “no deserto espiritual e político da América dos anos 50, era necessário atravessar centenas de quilômetros para encontrar um amigo” 1. O 11 de Setembro pareceu devolver os Estados Unidos aos anos 50. Tudo o que havia de liberdade de pensamento, tudo o que havia de espírito contestador, tudo o que havia de rebeldia criativa foi atropelado pelo rolo compressor da “guerra contra o terrorismo”, idealizada pelos estrategistas da Casa Branca em conluio com as grandes corporações da mídia e do entretenimento. Contra as vozes isoladas de um Chomsky ou de uma Susan Sontag, instalou-se no país o silêncio dos cemitérios, que parecia destinado a durar mil anos.
Evaporou-se, porém, em menos de sete. Acossado pela crise financeira e pelo fracasso de sua política iraquiana, e sentindo nos calcanhares as pisadas apressadas dos chineses, Bush encerra o segundo mandato com índices medíocres de popularidade. Sem conseguir fazer um candidato a seu gosto, é obrigado a engolir McCain. Este, no afã de unificar a ultradireita, fala disparates como manter as tropas norte-americanas durante cem anos no Iraque. Dá para imaginar como será o ano 2108? McCain acredita que sabe.
Quem quiser ter uma boa idéia da América na qual se apóia o poder republicano deve assistir ao festejado filme There will be blood, de Paul Thomas Anderson, que estreou no Brasil com o nome de Sangue Negro. Está lá o conluio de capitalismo selvagem e fundamentalismo religioso que deu a Bush sua mais firme base de sustentação. É contra o pano de fundo dessa América suja de petróleo que repete fanaticamente os versículos da Bíblia que Obama se destaca como o fato novo.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.