O fogo e o Brasil. Há um futuro nisso?
O agronegócio monocultor de exportação condena o presente e o futuro com fogo, fumaça, seca, calor e agrotóxicos
No auge da maior seca em 75 anos, o Brasil se tornou o maior emissor mundial de gases do efeito estufa. A Amazônia, o Cerrado e o Pantanal, com sua riqueza de comunidades indígenas e ribeirinhas, se contrapõem às distâncias áridas onde países inteiros cabem, vazias, cobertas de fogo, fumaça e pó, das entressafras de exportação. Dois mundos opostos em um mesmo país, um a ser destruído pelo outro.
Darcy Ribeiro em O povo brasileiro, foi cirúrgico: “Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros”. Essa última linha é a mensagem destes que estão queimando o Brasil: não estão queimando apenas pastos e florestas. Estão queimando o projeto de uma civilização diversa e plural que desprezam.
Como às vezes o óbvio precisa ser dito, nos lembrou recentemente a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva: o Brasil é uma potência agrícola por ser uma potência hídrica, e é uma potência hídrica por ser uma potência florestal. Esse óbvio, que deveria saltar aos olhos, é o nosso futuro sendo queimado na frente de todos nós. Contudo, essa tragédia não é um enredo ao qual é impossível escapar de um final profetizado, como na tragédia grega. A atual tragédia é seguir escolhas irracionais há décadas. Pelo menos desde quando sabemos que as mudanças climáticas seriam, e hoje já são, uma realidade, manter o mesmo modelo de desmatamento, fogo e monocultura não é uma escolha racional. Não existem fatalidades aqui, mas sim escolhas individuais alimentadas por outras, coletivas, que as legitimam.
Quando se fala em escolhas, o corolário do conceito é que jamais pode haver apenas uma, senão elas seriam impossíveis. Sem existir alternativas não há uma escolha a ser feita, e isso seria uma fatalidade. Não é o nosso caso. Então, hoje, o que essa corrida ao precipício implica? Uma de duas coisas: ou somos preguiçosos e não estamos nos esforçando para pensar alternativas, ou somos covardes demais como povo para assumi-las e fazermos a necessária transição para algum futuro possível, inverso a esse presente que incinera a si mesmo.
Ailton Krenak, o mais novo membro da Academia de Letras, escreveu que o futuro é ancestral, não como figura retórica, mas como provocação a ouvirmos outras formas de pensar e viver que floresceram por séculos, e ainda resistem. Essas alternativas são a escolha diametralmente oposta àquela da destruição da vida pelo fogo. Como dito pelo autor, a vida e o mundo são maiores que apenas um almoxarifado de onde se podem retirar bens conforme o interesse. A vida é, e isso basta como direito a existir.
Muitas formas de viver existiram na nossa história. Por exemplo, as terras pretas de índio são os solos mais ricos do mundo. Legados a nós séculos depois, foram construídos por populações indígenas pré-colombianas, séculos atrás. Essa tecnologia ancestral, conhecida, disponível e ainda praticada em alguns lugares, produziu alimentos para uma população do tamanho da que hoje vive novamente na Amazônia. Hoje, em escala maior, um modo de produção como esse, diverso e que trabalhe com a natureza, não contra ela, nos permitiria produzir mais alimentos e também sequestrar quantidades imensas de carbono, talvez até reverter o aquecimento global, em alguns séculos. Esse é um futuro ancestral, mas, antes disso, é um futuro. O modelo de desmatamento, fogo e seca do agronegócio, não permite um.
Pensar qualquer coisa para além de décadas parece muito distante, mas nós demoramos séculos destruindo o mundo, então talvez valha a pena demorar séculos também para consertá-lo. Para isso, primeiro é preciso reconhecer a realidade e chamar as coisas pelo nome: o agronegócio monocultor de exportação condena o presente e o futuro com fogo, fumaça, seca, calor e agrotóxicos. É irracional, pois destrói suas próprias condições de vida e reprodução, mas não apenas de si – destrói todos os biomas do Brasil, e a vida que deles depende. Essa escolha é sua? Não é minha.
O Brasil está rumando a um suicídio coletivo inconfesso, se continuarmos nesse caminho. A terra “limpa” é sinônimo de ar irrespirável, seca de rios e água suja. Somos como um cachorro que corre atrás do rabo. Destruímos a Mata Atlântica, o Pampa e o Cerrado, e agora destruímos a Amazônia, a Caatinga e o Pantanal, mordendo nosso rabo e devorando a nós mesmos, como quem quer vingar-se de si próprio.
Qual a alternativa? Bom, todos precisam comer, e o carbono precisa sair da atmosfera aquecida e fertilizar os solos para isso acontecer. Mais uma vez, o óbvio precisa ser dito, se quisermos sair dessa tragédia de escolhas que não foram feitas por nós. Jared Diamond, em seu emblemático livro Colapso, elenca diversas civilizações com alto grau de sofisticação que se extinguiram por não respeitarem as condicionantes ambientais de sua existência. É exatamente o ponto em que nos encontramos, hoje, no Brasil, sem atenuantes.
Futuros se constroem sempre a partir de um presente plenamente possível de mudanças, e mudanças, claro, não escapam da política. Em nosso país cindido, isso não é trivial. Entender isso não se relaciona com ser de direita ou de esquerda, mas de ter honestidade intelectual. Ser de direita ou de esquerda não é atestado de vício ou virtude, ambas são formas legítimas de ver o mundo, diria o jurista e cientista político italiano Norberto Bobbio. Desonestidade intelectual é outra coisa, e o maior indicador dela é a negação da realidade. Além da fumaça que intoxica as cidades, o debate de ideias hoje está igualmente intoxicado, e, sem esse espaço, será difícil sairmos de onde estamos.
Destruir as condições de pensar e criar alternativas para outras escolhas é a maior vitória daqueles que têm raiva da diversidade da vida, por uma simples razão: eles podem negar que fazem isso, mudar de assunto, ofender e mobilizar a opinião pública para o próximo escândalo. É a sociedade do espetáculo de Guy Debord, no seu melhor exemplo, que se volta contra si mesma e nem sequer sabe o que é direita ou esquerda.
O Brasil não pode continuar aprofundando esse modelo que está nos levando a um suicídio coletivo inconfesso, isso é claro. As secas agravadas pelas queimadas e o aquecimento global quebram safras, e isso parece não ser entendido até hoje pelo agronegócio, que segue escolhendo representantes que defendem criminosos ambientais, grileiros de terras e invasores de terras públicas nos mesmos palanques em que dizem que o agro é tecnológico e sustentável. Isso não é ser de direita, isso é ser desonesto.
Aquilo que o agro parece não entender é surpreendentemente também incompreendido pela indústria nacional. O Brasil é o país que mais se desindustrializou no mundo inteiro em trinta anos, e isso é um fato oriundo de escolhas políticas. Hoje, em vez de uma política industrial sólida, temos o maior plano safra do mundo, que impele nossas exportações para cadeias industriais de outros países. Essa é a realidade, goste ou não quem lê.
O fato é que, como os biomas são interconectados, a economia também é. A seca causada pelo desmatamento e as queimadas diminuiu drasticamente o volume dos rios em todo o Brasil, e isso tem um efeito imediato também na capacidade de geração de energia elétrica do país. Nos orgulhamos de termos nossa matriz limpa de energia, nos esquecendo do quão vulnerável ela é às mudanças climáticas, à seca, ao desmatamento e ao aquecimento global.
Com níveis de reservatórios baixos, são ligadas as termelétricas e aumentamos a importação de energia, encarecendo o custo de produção industrial e a conta de luz doméstica e de serviços. O resultado? Pressão inflacionária por toda a economia, que por sua vez resulta na manutenção da maior taxa de juros do mundo, que junto com a energia cara, termina por inviabilizar o pouco que resta da indústria nacional – uma fração do que foi no passado. Quem nega isso nega a realidade, novamente. Ninguém precisa ser de direita ou de esquerda para entender isso, precisamos apenas ser honestos.
O Brasil vai votar nas próximas eleições municipais em outubro, e, para além da gestão urbana e possíveis políticas de adaptação climática locais, vai determinar também a próxima eleição federal, de 2026. Municípios elegem deputados, que elegem prefeitos. É como funciona nosso sistema. E esses deputados são aqueles que irão continuar a sequestrar o país com o pacote da destruição ambiental no Congresso e a anistia a criminosos, ou que vão propor leis que enfrentem a realidade que nós já vivemos. A política, como os biomas e a economia, também é interconectada para muito além do que se costuma imaginar. Todas as escolhas importam.
Em outras palavras, em pouco mais de duas semanas, vamos eleger as prefeituras e com elas a governabilidade do próximo mandato presidencial, seja de quem for, a partir de 2027. Toda presidência depende de uma base parlamentar, e, se o próximo governo terá a capacidade política de resistir a um Congresso ruralista apoiado por uma bancada industrial suicida, se será capaz de promover as escolhas que se impõem entre a vida e a incineração do futuro, isso será definido a partir de outubro.
Vamos incinerar nosso presente e futuro, ou vamos desenvolver alternativas em sinergia com a natureza, e não contra ela? Para além do Brasil, essa pergunta definirá se, como humanidade, vamos merecer os dois sapiens que se seguem ao prefixo homo. Talvez devamos substituir o primeiro deles pelo termo proto. Homo proto sapiens, o homem quase sapiens. Olhando séculos à frente, essa escolha será lembrada.
O Brasil e o mundo definirão, ano que vem, na COP 30 em Belém, as novas metas climáticas mundiais. Vamos continuar a ser um país e uma humanidade embrutecida, que até imagina, mas verdadeiramente não sabe, que nega a realidade? Se for essa nossa escolha, será por pouco tempo. As leis de Darwin vão seguir seu curso independente. A alternativa é sermos uma humanidade que se adapta, evolui, e reconhece a realidade. As escolhas feitas nessa geração nos marcarão como homo proto sapiens, aquele que quase pensa e que destruiu suas condições de vida, ou como homo sapiens sapiens, que evoluiu, entendeu sua ancestralidade e seu papel no planeta. Todas as escolhas importam.
Marcos Woortmann, cientista político e mestre em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília, é diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade.