O futuro da BBC
Permanecer no ar por mais de 80 anos recusando-se a ter anunciantes não é fácil. Principalmente em uma época em que as emissoras privadas chegam, de forma gratuita, até a maioria dos domicílios. Em meio a corte de gastos com a programação e folha de funcionários, a rede britânica busca saídas para sua crise
A BBC (British Broadcasting Corporation) nasceu em 1927 com uma tripla missão: informar, educar e divertir. Referência mundial para os sistemas audiovisuais públicos, ela tornou-se, ao longo de décadas, um sinônimo de qualidade.
Quatrocentas horas anuais de ficção são uma das garantias de seu sucesso. O programa Eastenders é uma prova disso: com quatro episódios semanais, esta crônica do cotidiano de um bairro popular londrino registra índices médios de audiência de 41% (dez milhões de espectadores) e está no ar há mais de uma década. O mesmo padrão, aliás, é mantido na adaptação de grandes obras literárias, como Bleak House, baseada no romance de Charles Dickens. Transmitida num domingo à noite, a produção atraiu mais de oito milhões de telespectadores em 2005.
Por imposição de sua Royal Charter – carta oficial da monarquia britânica que legitima e estabelece parâmetros para o funcionamento da instituição –, a BBC precisa, por um lado, agradar todos os tipos de público reforçando o “divertimento” e, por outro, sustentar um esforço de qualidade, de estímulo intelectual e de inovação.
Talvez por isso, ao contrário de suas concorrentes privadas, a BBC manteve-se por muito tempo longe dos reality shows. O gênero, porém, foi recentemente incorporado com programa semanal importado dos Estados Unidos: The Apprentice [O Aprendiz, cuja versão brasileira é exibida pela Rede Record]. O último episódio, exibido em 7 de junho, registrou um índice de audiência excepcional para a emissora.
Se este programa reflete um novo tempo social, marcado pela concorrência exacerbada entre postulantes prontos a qualquer coisa para obter um emprego, a série de documentários White Season, exibida desde 7 de março, traça evoluções sociais mais subterrâneas, embora cruciais. Os episódios põem em cena a crescente frustração da classe operária inglesa, confrontada com uma sociedade multicultural que consideram hostil. Na tela, operários expressam seu ressentimento diante da rejeição que sofrem.
Para se manter no ar, a BBC depende do financiamento público, conseguido via imposto domiciliar sobre a televisão (ver box ao lado), e da Royal Charter, renovada a cada dez anos. Firme em outros tempos, este modelo anda bastante incerto. Contestada pelo poder e submetida a planos de contenção econômica, a corporação não tem mais seu futuro garantido.
Com isso em vista, a nova Royal Charter, firmada em dezembro de 2006, designou à BBC algumas missões. Incumbiu-lhe de promover a cidadania e a coesão social, reforçar o caráter educativo de seus programas e de levar em conta, com mais rigor, as múltiplas identidades do país – isto é, as comunidades, as regiões e as nações (Inglaterra, Escócia, País de Gales e, em menor medida, a Irlanda do Norte). Além disso, a BBC foi instada a incorporar em sua programação mais programas estrangeiros e a aumentar a difusão de seus próprios programas pelo mundo. Por fim, a carta responsabilizava a operadora pública por sua passagem para a tecnologia digital, cuja conclusão está prevista para 2012.
A aprovação desses novos propósitos ocorreu em um contexto turbulento, com a instituição passando por uma reorganização estrutural de sua administração. O problema que culminou nessa mudança teve origem três anos antes, quando a ministra encarregada dos meios de comunicação, Tessa Jowell, convidou não apenas os profissionais da TV, mas também os usuários, a se pronunciarem a respeito da organização, do financiamento e do modelo de controle e gestão dos canais de rádio e televisão, bem como a opinarem quanto à qualidade de suas transmissões1. O episódio gerou um trauma na corporação, que vivia um momento de tensão com o governo. A BBC acusava o então primeiro-ministro, Tony Blair, de ter propositadamente exagerado a ameaça iraquiana para entrar em guerra ao lado dos Estados Unidos. Por sua vez, um relatório de pesquisa encomendado por Blair punha em dúvida a integridade profissional da rede pública. O escândalo foi imenso.
Passada a tempestade, o governo evitou tomar qualquer iniciativa que pudesse ser interpretada como um desejo de controlar a emissora. O procedimento para designar o novo presidente do conselho diretor foi conduzido por uma inédita preocupação com a transparência. Garantida a publicidade das candidaturas, com chamadas difundidas pela imprensa, a escolha de Michael Grade, antigo diretor-executivo do Channel 4 [Canal 4], foi unanimemente saudada pelos profissionais da rede em março de 2004. Três meses mais tarde foi a vez da nomeação de Mark Thompson para o posto de diretor executivo, também oriundo do Channel 4. Em três anos, ele redinamizara a emissora concorrente com uma redução de 20% de seus efetivos. Sem dúvida, sua aptidão de administrador desprovido de sentimentalismos jogou em seu favor. Aliás, Thompson não levou muito tempo para “enxugar” a BBC: a partir de outubro de 2004, suprimiu, paulatinamente, seis mil dos 26 mil empregos existentes, essencialmente nos setores de apoio – marketing, comunicação, financeiro e recursos humanos. Com 350 cargos na linha de tiro, ou seja, 15% do efetivo, o serviço informativo e das revistas de atualidade também não foi poupado.
Para se contrapor à acusação de que a BBC estava excessivamente enclausurada em sua sede londrina, Thompson decidiu deslocar uma parte dos serviços para a cidade de Manchester. Desde a lei sobre o audiovisual de 1990, os produtores independentes deveriam ser beneficiados com 25% das encomendas de programas da BBC, mas o novo diretor se comprometeu a abrir outros 25% do orçamento de produção à concorrência externa. Em 2007, 40% dos programas da BBC, excetuando noticiários, vieram de produtoras privadas, que receberam € 566 milhões.
O projeto de reforma proposto pela direção previa, enfim, uma redução de 15% no orçamento dos diferentes setores e divisões da empresa e a venda de dois deles. Desnecessário dizer que a reestruturação provocou fortes resistências, especialmente entre os setores mais afetados – as unidades de programas infantis, de documentários e de notícias.
Ao mesmo tempo, o gerenciamento da BBC passou para um conselho independente (o BBC Trust), substituindo assim seu quadro de dirigente. À primeira vista, a diferença estabelecida pela nova Royal Charter não parecia muito grande. Mas a carga simbólica que carrega é forte, principalmente porque a antiga instância de regulação sofria, com freqüência, suspeitas de complacência.
Para marcar esta ruptura, o BBC Trust não funciona na sede da companhia. Fiador do bom uso dos fundos públicos, o conselho vela para que a estratégia da empresa mantenha-se alinhada aos objetivos da Royal Charter. É ele, por exemplo, quem autoriza a criação de novos serviços, depois de verificar sua compatibilidade com os critérios da companhia.
Acusado de negociar mal as renovações da Royal Charter e da taxa do imposto domiciliar, Thompson multiplicou ações de sensibilização para convencer os assalariados de que seu projeto era bem fundamentado: transformar o órgão audiovisual público em um criador de conteúdos acessíveis a partir de qualquer suporte digital (televisão, computador, celulares).
Logo em seguida, porém, duas grandes crises abalaram sua gestão e a reputação da empresa. A primeira veio à tona em julho de 2007, depois da revelação de práticas fraudulentas pela equipe de produção do programa Blue Peter, que “soprou” a resposta correta de um jogo para uma das concorrentes. O órgão regulador do audiovisual na Grã-Bretanha, o Office of Communications, infringiu à BBC uma multa de € 67 mil. Para evitar qualquer reincidência, a direção organizou uma série de atividades de formação intituladas “Safeguarding Trust” (Salvaguardar a confiança) para lembrar aos 16.500 empregados envolvidos na realização dos programas a importância do rigor editorial e do respeito ao público.
Algumas semanas depois, um novo escândalo custou o cargo do diretor da BBC 1. Na origem do problema estava o anúncio de um programa intitulado A Year with the Queen (Um ano com a rainha), produzido pela sociedade privada RDF. Sugeria-se, pelas imagens, que a soberana interrompera subitamente uma sessão de fotos, irritada com as exigências de certa fotógrafa renomada. Tratava-se, porém, de um erro de montagem: as imagens da saída precipitada da rainha estavam invertidas e correspondiam, na verdade, à sua entrada na sala. O assunto provocou grande alarde, a ponto de ser qualificado como o Crowngate, uma referência ao Watergate, ponto de comparação obrigatório para todo escândalo público de alguma proporção.
Em abril do mesmo ano, o BBC Trust recebeu o relatório de uma comissão independente encarregada de apreciar a confiabilidade e a imparcialidade das notícias sobre o mundo dos negócios. Líderes empresariais acusavam a BBC de sistematicamente favorecer os consumidores e os empregados demitidos, negligenciando a realidade das empresas. No fim das contas, o relatório rejeitou as alegações de distorção, mas a comissão, presidida por Sir Alan Budd, economista de renome e conselheiro do banco de investimento Crédit Suisse, não perdeu a oportunidade de alfinetar o parco conhecimento que os jornalistas têm da área econômica. Recomendava, ademais, que os programas sublinhassem com mais ênfase a importância dos lucros como fonte de enriquecimento do conjunto da sociedade2.
Apesar da reforma administrativa e da reestruturação, o modelo de financiamento da instituição pública permaneceu sujeito a controvérsias. Desde 1925, toda comissão oficial encarregada de examiná-lo ressalta a hipótese de se recorrer à publicidade como meio de angariar os recursos, sempre insuficientes. Em 1986, uma comissão instalada pelo governo para propor uma alternativa ao imposto sobre a televisão, presidida pelo economista liberal Alan Peacock, julgou o mercado publicitário incapaz de alimentar um novo operador da envergadura da BBC3.
A questão retorna agora em outros termos: como justificar a cobrança das taxas quando mais de 80% dos domicílios recebem, gratuitamente, quase 40 canais pela televisão digital terrestre (TNT) e sabendo que as duas cadeias gerais da BBC mal alcançam 30% dos índices de audiência?
Depois de amplas consultas, o governo britânico resolveu manter o imposto domiciliar sobre a televisão, propondo, porém, uma reflexão com o objetivo de substituí-lo após a instalação completa da rede digital, em 2012. Até lá, seu montante crescerá, em média, 2,4% ao ano, o que equivale para a BBC a uma perda de € 2,6 bilhões, levando-se em conta a atual e previsível taxa de inflação. Uma verdadeira humilhação para a instituição.
Por conta disso, Mark Thompson anunciou uma redução imediata de 10% nos orçamentos dos programas, o aumento das reprises e um plano de demissões de 1.800 pessoas. Os sindicatos sinalizaram imediatamente com uma greve, arma à qual os trabalhadores da BBC só recorrem em casos excepcionais, mas renunciaram ao movimento diante das garantias obtidas quanto às condições de demissão.
O futuro da BBC é incerto. Levando em conta o sucesso de audiência das novas redes privadas digitais, logo sua viabilidade estará comprometida. Por isso, surgiu a idéia de destinar uma parte do imposto domiciliar ao financiamento de programas de serviço público, que poderiam ser atribuídos a qualquer produtora. Sustentado pelo partido conservador, esse projeto reduziria as ambições da BBC, considerada por seus membros um refúgio de progressistas pró-europeus.
É preciso perceber que a atual encruzilhada da BBC diz respeito à evolução geral do conceito de serviço audiovisual público, que progressivamente está cedendo espaço para uma concepção que prevê a dissociação dos programas públicos de um local de veiculação também público. Atenta à situação, Polly Toynbee, respeitada articulista do jornal The Guardian, lançou um alerta para o primeiro-ministro Gordon Brown: “seu governo pretende mesmo ser responsável pela destruição da marca britânica mais conhecida no mundo?4
*Jean-Claude Sergeant é professor na Universidade Paris III e autor de Les Médias britannique, Paris/Gap, Ophrys/Ploton, 2004.