O futuro da economia argentina
A discussão que se instaurou na sociedade argentina sobre a situação econômica do país deixa de lado o essencial: uma definição das mudanças estruturais necessárias por trás dos problemas. O ano eleitoral que se inicia é propício para um debate sobre os rumos da dívida pública e a inflaçãoJulio C. Gambina
Para a Argentina, 2011 será marcado por eleições gerais em plena crise econômica mundial. Isso significa que será preciso discutir a política de recursos e preços, sublinhada pelo cenário preocupante da inflação, com impacto forte sobre os produtos alimentícios.
As projeções do governo para o ano que vem sugerem um aumento de preços de 8,9%1, mas segundo especialistas da Universidade de Buenos Aires (UBA), registrou-se efetivamente um crescimento de 18,8% entre janeiro e setembro de 2010, e de 23,8% no conjunto do período anual2. Isso supõe um movimento de alta e uma projeção preocupantes para 2011 – com a possibilidade de conflitos sociais em ano eleitoral –, que o governo tenta moderar, incentivando um pacto social entre empregadores e sindicatos, no qual “os executivos cedam no que concerne a salários e os sindicalistas, no que diz respeito a preços”3.
Mas indo mais além dos elementos conjunturais, o problema da inflação deve-se a um dado da estrutura econômica argentina: a desigualdade na apropriação da renda e da riqueza da população. “Em 1974 o coeficiente de Gini4, calculado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), foi de 0,345. Em 1981 ele aumentou para 0,389, em 1990 para 0,457, em 1999 chegava a 0,495 e com a crise de 2001-2002, no terceiro trimestre de 2003, ele era de 0,534. A partir de então ele começou a cair, mas em meados da década tendeu à estagnação, sem ultrapassar os níveis médios dos anos 1990.” No segundo trimestre de 2009 chegou a 0,465, ou seja, aproximou-se dos níveis do pior momento da crise.
Trata-se, portanto, de um problema que supõe a discussão de políticas públicas relativas a receitas e despesas, que na conjuntura atual passa pela definição dos gastos orçamentários, bem como pelas fontes e montante de recursos. Estruturalmente, implica promover um debate que até agora não ocorreu na sociedade – e não só no Legislativo –, sobre quem deve financiar os gastos públicos e sobre qual deve ser sua orientação. Ou seja, a discussão passa pela política fiscal e alocação de recursos.
Para 2011 o projeto orçamentário fixa receitas correntes de 372 bilhões de pesos e 235 bilhões de impostos. Destes últimos, os impostos indiretos – aqueles pagos pelo conjunto da população – somam 185 bilhões de pesos, contra 50 bilhões de impostos diretos, incluindo o imposto sobre a renda. O que confirma o caráter regressivo da estrutura de arrecadação tributária argentina: a população de menor renda paga mais. A conjuntura é atravessada pela inflação e pela disputa por recursos públicos, sendo a política econômica (de câmbio, monetária, fiscal, de receita) integral que está em jogo, incluindo naturalmente o adiamento da “autonomia” do Banco Central.
O modelo produtivo atual define uma clara equação de beneficiados e de prejudicados na estrutura econômica e social do país. Trata-se de discutir o que, como, quem e com qual finalidade se produz, e de analisar criticamente o que está sendo feito para reorientar o padrão produtivo e sua correspondência em matéria de consumo.
“De acordo com o Indec, em 2000 havia 182 empresas nacionais e 318 estrangeiras entre as 500 maiores do país. Em 2008 (últimos dados disponíveis), os números foram 162 e 338, respectivamente. Nesse período estavam em mãos estrangeiras 91% da produção de cimento, 80% do mercado de cerveja, 13% das vendas de combustíveis e 20% do abate e processamento de carne bovina. Empresas brasileiras, como Camargo Correa, Petrobras, JBS, e a belgo-brasileira Inbev fazem parte do avanço que na década anterior tinha como atores de maior destaque as europeias Telefónica, France Telecom, Suez, Iberia, Repsol e BG (British Gas). (…) Dos grandes grupos argentinos que dominaram os anos 1980 e 1990, só a Arcor e a Techint emergem como líderes que não apenas conseguiram manter sua estrutura, como cresceram e se expandiram6.”
Os principais ramos da atividade local que contribuem para a expansão da produção estão associados à demanda mundial – esse é o caso da soja, da carne bovina e de outros produtos primários –, bem como dos bens comuns (recursos naturais), ou da indústria automobilística, já que 70% da produção local são vendidos no mercado mundial. A expansão da indústria automobilística “continua a ser impulsionada principalmente pelo desempenho das exportações”7.
Consumo e investimento
Após a prolongada recessão (1998-2002), sobreveio um período de reestruturação produtiva e investimento8, realizado com a intervenção estatal e de obras públicas. Uma questão de curto prazo refere-se ao volume e destino do investimento produtivo, que é justamente o elemento central do debate, à medida que afeta o futuro econômico: por exemplo, apostar no investimento em veículos automotores, estradas e em toda a infraestrutura necessária para o transporte particular, ou na priorização do transporte público de passageiros, incluindo o caso do transporte ferroviário, é o mais óbvio. Mas também é preciso discutir o tipo de consumo que está sendo incentivado: aquele ligado aos setores de alta renda, ou aqueles associados a uma perspectiva alternativa, associada ao mercado interno e aos setores de baixa renda.
São preocupações relativas ao que se consome e a quem produz o que está sendo consumido; ao setor no qual se investe e em quem se materializa o investimento; se o destino principal da atividade econômica é o mercado doméstico ou o externo, e até mesmo, nesse sentido, quais são e como são segmentados os fluxos de comércio e/ou financeiros, relativos à região e ao mundo.
Exemplo disso é o caso da soja e da mineração argentinas, atualmente associadas a alterações legais feitas nos anos 1990. Ambos os casos expressam realidades determinadas pela política dos últimos 15 anos e que têm grande impacto na estrutura social do país, incluindo os fenômenos culturais que alteram a vida cotidiana e as formas de produção social, sustentadas pela entrada de recursos como forma de vida e da devastação da terra e da natureza, em função das demandas do capital transnacional mais concentrado.
Estamos falando de mudanças estruturais que modificam substancialmente o modo de vida da população ligada a essa estrutura de produção. A “sojização” transformou em investidores do mercado financeiro muitos produtores e acelerou a concentração da propriedade fundiária. A Argentina, que nunca foi um país de mineração, passou a ser considerada atraente por investidores internacionais, dada a alta dos preços dos minerais e matérias-primas. No caso argentino, incentivados por benefícios fiscais e pela flexibilidade em matéria ambiental e de controle completamente escandalosos. Isso, enquanto os preços internacionais das matérias-primas cresceram rapidamente entre 2007 e 2008 (a soja e o ouro são dois exemplos), com uma breve queda em 2009 e uma recuperação significativa no primeiro semestre deste ano.9
Assim, depois de meio século de industrialização relativamente importante (1930-1980), a Argentina volta a uma situação de especialização da produção de corte primário, com um setor secundário sem maior dinamismo na inovação tecnológica.10O moderno e o atrasado no capitalismo local tornam funcional a lógica do lucro e da acumulação baseada em salários baixos e no aumento nos preços das commodities de exportação. A “institucionalização neoliberal” gestada a partir da última ditadura (1976-1983) e especialmente nos anos 1990, durante o governo peronista de Carlos Menem, redefiniu estruturalmente a sociedade na Argentina – chegando inclusive a promover o que se poderia chamar de retrocesso.
A dívida pública
Um instrumento privilegiado dessa reestruturação é a dívida pública. A novidade no caso de renegociação da dívida é a abertura de conversar com o Clube de Paris11, para acabar com a cessação de pagamentos declarados pelo Legislativo argentino na última semana de 2001. O Clube de Paris não teria aceitado que o Fundo Monetário Internacional (FMI) fizesse o monitoramento das contas argentinas, para tornar operacional o acordo de pagamento da dívida. Efetivamente, o G20 é que será responsável por essa tarefa. Assim, os principais acionistas do FMI assumem a função fiscalizadora negada ao próprio FMI. Enquanto se negocia e se paga, perde-se a oportunidade de investigar a origem e a evolução dessa dívida, bem como a possibilidade de declarar a “dívida odiosa” parcial ou totalmente, em um contexto internacional de crise que tornaria ainda mais factível esse posicionamento adequado.
Isso é estrategicamente crucial, já que a dívida é um condicionante estrutural desde meados dos anos 1970. O problema da dívida determinou o rumo da economia, e se em cada negociação foi defendida a eliminação do problema, a reincidência foi a constante. O endividamento compromete a situação fiscal e atrasa as atribuições orçamentárias que atenderiam às demandas sociais não satisfeitas.12
Integração e desenvolvimento autônomo
Alterações do perfil produtivo e o tipo de desenvolvimento econômico e social são as principais questões em aberto na Argentina. Um elemento central, a integração internacional do país, mostra dois aspectos: por um lado, uma vasta gama de relações internacionais, diversificada pelo comércio e pela procura de investimentos privados; por outro, uma tendência à integração regional, que atualmente se expressa, sobretudo, na esfera política. Não se trata eliminar um desses aspectos, mas sim definir qual deles será o eixo estratégico.
A esse respeito, o problema central é a integração econômica, que atualmente oscila entre participar da ordem hegemônica (do G20 e de outras áreas de discussão sobre a liberalização da economia mundial), e uma integração regional alternativa que contemple a soberania alimentar, energética, financeira etc.13
A integração regional precisa ir além da fase de declarações políticas, e passar a concretizar iniciativas, como o tardio Banco do Sul, e orientar o excedente econômico, acumulado em reservas internacionais pelos países da América Latina na direção de um desenvolvimento autônomo.
Definir a orientação econômica
O problema da economia, conjuntural ou estrutural, passa por discutir qual o ator social e político que constrói essa perspectiva. Não é possível pensar de forma prospectiva, se não houver coletivo imaginário social do que se pretende construir. Pode-se discutir e discordar do rumo definido naquele país pela chamada “geração dos anos 80” no século XIX, mas o projeto de exportação e de dominação oligárquica foi a expressão de um bloco histórico, econômico, social e político. O surgimento gradual de um novo grupo hegemônico deu lugar ao processo de industrialização em substituição às importações, a partir dos anos 1930, no século XX, até o advento da ordem neoliberal, demolida pela crise de 2001, mas que, no entanto, uma década depois ainda exige a destruição de suas bases para superá-la.
Não é uma questão de mercado, mas sim de vontade política organizada; e de superar os problemas estruturais que a sociedade argentina arrasta há décadas. Não é uma questão de crescimento econômico em si, mas sim de sua composição estrutural e orientação. A discussão em aberto diz respeito ao que se deve produzir e para quem; a como se realiza o processo de produção e como se distribuem as riquezas socialmente geradas. Em outras palavras, trata-se de discutir a distribuição de recursos, já que além das declarações de boas intenções do atual governo, o modelo de produção e desenvolvimento insiste na manutenção das chaves econômicas tradicionais, que favorecem uma cúpula cada vez mais concentrada e estrangeirizada, aprofundando os níveis de desigualdade – reforçados pela crise global.
Para alterar efetivamente essa estrutura econômica e social não bastam críticas de teor ético, que apelem para a generosidade dos poderosos no sentido de obter uma distribuição paliativa de recursos. Assim como não são suficientes políticas compensatórias favorecidas pelo superávit fiscal primário. É necessário formar grupos organizados que sirvam de base para um modelo de produção diferente, para um modelo econômico diferente, para um país diferente, com uma equação de distribuição de renda que atenda à maior parte das necessidades sociais não satisfeitas.
Julio C. Gambina é professor de Economia Política da faculdade de Direito da Universidade Nacional de Rosário. Presidente da Fundação de Pesquisas Sociais e Políticas, FISYP. Membro do Comitê diretivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso).