O gabinete do Dr. Fantástico
Os tratados europeus compõem, de fato, um himalaia de proibições, regras e expurgos (“reformas”). Administrá-los com rigor não obriga ninguém a entender seu sentido.Serge Halimi
Logo um dominó vai cair, seguido de outro. Apenas 30 mil votos faltaram para o candidato de extrema direita se tornar presidente da Áustria. Na véspera das eleições, Jean-Claude Juncker tinha prevenido: “Com a extrema direita não há debate nem diálogo possível”.1 Mas poderíamos sonhar com um presente melhor para uma formação que se beneficiava de aparecer como “fora do sistema” do que a advertência do ex-primeiro-ministro de um paraíso fiscal (Luxemburgo), que se tornou presidente da Comissão Europeia graças a uma negociata entre a direita e os socialistas? Eles governaram juntos em Viena por 39 dos 69 últimos anos e acabam de ser varridos no primeiro turno da eleição presidencial.
Com opinião sobre tudo, Juncker também avaliou o projeto de lei de reforma trabalhista El Khomri, execrado pela maioria dos franceses: “A reforma do direito do trabalho desejada e imposta pelo governo Valls é o mínimo do que deve ser feito”. O mínimo? Sim, estima Juncker, quando comparamos com as “reformas que foram impostas aos gregos”.
Os tratados europeus compõem, de fato, um himalaia de proibições, regras e expurgos (“reformas”). Administrá-los com rigor não obriga ninguém a entender seu sentido. O presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, acabou de admitir que não entendeu direito o significado do “déficit estrutural” que nenhum Estado deve exceder. “É um indicador difícil de predizer, difícil de gerenciar e difícil de explicar. Uma das minhas frustrações é que ele sobe e desce sem que eu saiba realmente o porquê.”2
Entretanto, é por causa de estatísticas opacas desse tipo que a Grécia não para de ser punida pelas autoridades europeias. Elas “impuseram” o voto de uma lei orçamentária de 7 mil páginas, três aumentos maciços do imposto sobre valor acrescido (IVA, uma taxa sobre o consumo), a privatização dos aeroportos a preço de banana, o aumento para 67 anos da idade para aposentadoria, o aumento das cotizações de doença, o fim das proteções concedidas aos pequenos proprietários incapazes de pagar seus empréstimos… Em troca, Atenas acaba de obter um empréstimo destinado especialmente a lhe permitir reembolsar os juros de sua dívida externa. O FMI concorda que esta é “insustentável”, mas a Alemanha recusa que ela seja amputada.
Berlim e a Comissão Europeia sabem, no entanto, se mostrar mais indulgentes. E não apenas para com o Reino Unido de David Cameron (ler reportagem na pág. 16). Nenhuma sanção foi infligida à Espanha, cujo déficit orçamentário ultrapassa alegremente o limite autorizado pelos tratados. Nem Bruxelas nem Berlim quiseram incomodar o governo de Mariano Rajoy – membro da mesma família política que Juncker e Angela Merkel… – antes das eleições legislativas de 26 de junho.
Impor sacrifícios cruéis a povos inteiros em nome de regras que eles mesmos não compreendem, esquecer rapidamente estas últimas quando comparsas políticos as transgridem: é também nesse terreno de amoralismo e cinismo que a extrema direita europeia avança.