O governo brasileiro expõe cerca de 400 mil pessoas a novos despejos
O que se vê no país é um crescente número de famílias passando a integrar o déficit habitacional, com a anuência do próprio Estado, que não promove e sim viola os direitos humanos
Não é novidade que os impactos da pandemia da Covid-19 aprofundaram as desigualdades existentes no Brasil. Entretanto, muito tempo ainda será necessário para que seja possível mensurar o real dano na questão da habitação no país. Enquanto dados sobre aumento do desemprego e perda de renda pululam pesquisas e o noticiário global, dados mais apurados sobre o número de pessoas em situação de rua por conta da pandemia são escassos e incompletos.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre fevereiro e março de 2020, momento de eclosão da pandemia, 221 mil pessoas estavam em situação de rua. Para se ter um vislumbre do problema, em um levantamento recente da Prefeitura do Rio de Janeiro, feito este ano, os motivos para 31% das pessoas em situação de rua eram decorrentes de perda de emprego e moradia.
Os problemas habitacionais no Brasil não são recentes. Mas, na atual conjuntura do país, com as crises sanitária e econômica se retroalimentando e ampliando as desigualdades, a falta ou insuficiência de políticas sociais expõe os mais pobres a condições ainda mais precárias de moradia. Apenas no período da pandemia, já foram despejadas cerca de 18 mil famílias, que foram parar, se não nas ruas, em outras ocupações ainda mais precárias. Por outro lado, não existe mais um programa habitacional federal que possibilite a produção de novas moradias com subsídio governamental, para estas e as demais famílias que já integravam o déficit habitacional do país.
Para além da falta de perspectiva no acesso a uma moradia adequada, o governo brasileiro expõe cerca de 400 mil pessoas a novos despejos durante a pandemia, quando o Presidente da República veta o projeto de lei 827/2020, que suspendia os despejos até dezembro de 2021. O referido PL, fruto da mobilização de dezenas de entidades e movimentos, passou por discussão e aprovação no Congresso Nacional, com apoio de partidos de diversos campos políticos, mas não foi sancionado.
Ao contrário do que muitos pensam, as pessoas não escolhem morar em locais de risco ou na rua. Também não é por falta de esforço ou por comodismo que mais de três milhões de famílias no Brasil precisam tomar a difícil decisão de pagar aluguel ou garantir a alimentação da família, pagar o transporte, entre outras necessidades básicas. O aumento da pobreza também afeta as condições de moradia da população mais pobre do país, em especial a população negra, que vive nas periferias das cidades. Segundo a Fundação João Pinheiro (2020), 74,4% das famílias que demandam por uma nova moradia têm renda familiar de até dois salários mínimos.
Em suma, o que se vê no país é um crescente número de famílias passando a integrar o déficit habitacional, com a anuência do próprio Estado, que não promove, e sim viola os direitos humanos. São milhares de pessoas que demandam a construção de moradias novas, para fugir de situações de risco ou locais improvisados. Sem moradia adequada, outros direitos básicos como saúde e educação, também são afetados e afetam o desenvolvimento integral de jovens e crianças.
Para trilhar o rumo de uma redução real do déficit de moradias no Brasil, acreditamos que a soma de esforços é fundamental. Agregar saberes, recursos e vontade política nos setores público, privado e social é o caminho para ampliar as oportunidades para as famílias que vivem em condições precárias.
Contudo, ao resgatar as raízes do que sustenta as desigualdades no nosso país, teremos que ser capazes de criar políticas sociais de Estado, manter um investimento público continuado na política habitacional e democratizar o acesso à terra. Sem tais medidas estruturais, continuaremos nadando contra uma maré de retrocessos e precarização da vida dos mais pobres.
Socorro Leite, diretora executiva da Habitat para a Humanidade Brasil.