O governo Lula e a “política” do mercado financeiro
Governo do PT pode ter de lidar, mais uma vez, com a oposição de um setor que se apresenta como politicamente neutro, mas participa ativamente do processo político nacional
O novo governo Lula trouxe (de novo) à baila o papel do mercado financeiro no cenário político e econômico brasileiro. Quando o presidente fala sobre seus objetivos de política econômica, o mercado costuma reagir mal. De um lado, uns apontam o viés político desse comportamento, que indicaria um lado na política partidária e seu descaso com o contexto de calamidade social e ameaça à democracia experimentado pelo país. Do outro, analistas lembram que essas reações nada mais são do que o somatório de decisões individuais de investidores que operam no circuito financeiro, de modo que não faria sentido personificar o mercado ou dizer que ele tem lado na política. Há um fundo de verdade nas duas perspectivas. Assim como há um problema menos evidente, que será abordado nos parágrafos a seguir.
O que se convenciona chamar de “mercado financeiro” abrange uma miríade de atores que não necessariamente possuem os mesmos interesses e objetivos: fundos mútuos, fundos de pensão, seguradoras, fundos de hedge, fundos soberanos, bancos de investimento etc. As ações desses investidores são assessoradas por outros atores, como consultorias e agências de classificação de risco, que compõem o que se conhece por infraestrutura financeira. Assim se viabiliza o funcionamento de “marketplaces”, como bolsas de valores e leilões de títulos públicos, onde ocorrem as transações financeiras. Daí a dificuldade de se personificar o mercado e a ele atribuir uma ação concertada para prejudicar um governo ou um partido.
Mas também é verdade que o mercado tem suas instituições representativas, que vocalizam interesses de agentes dispersos no sistema financeiro. Por exemplo, quando uma agência de classificação de risco critica o governo ou ameaça piorar a nota de credibilidade do país em função de uma política implementada, ecoando interesses de credores do Estado, o “lado” do mercado se torna claro. Afinal, por trás de todas as decisões de investimento e da própria classificação de risco de ativos financeiros, há uma ideologia identificável, que atende a interesses de grupos sociais específicos. Como partidos políticos diferentes possuem agendas respaldadas por ideologias diferentes, o mercado acaba por “confiar” mais naqueles com que convergem ideologicamente.
Para além do fator ideológico, atores do mercado financeiro também podem fazer uso de sua autoridade epistêmica para tentar influenciar o processo político nacional em prol da agenda de sua preferência. Por exemplo, às vésperas das eleições presidenciais de 2014, tornou-se infame um e-mail do banco Santander a seus clientes, intitulado “Você e seu dinheiro”, posicionando-se contra a reeleição de Dilma[1]. Já durante o pleito de 2018, a agência de risco Fitch Ratings divulgou um relatório no qual projetava dois cenários para o Brasil nos casos de vitória de Bolsonaro ou de Haddad[2]. No caso de vitória do petista, o cenário seria catastrófico, com uma provável recessão econômica, fuga de capitais e aumento do risco-país. Já para o caso de vitória bolsonarista, a agência previa um cenário virtuoso, com atração de investimentos e crescimento econômico já em 2019 – o que contrasta com o caos estabelecido até 2022. Somando-se aos movimentos de bolsa e às oscilações no preço do real, esses exemplos ilustram alguns dos mecanismos de que o mercado financeiro dispõe para manifestar suas opiniões e mesmo seu “voto” em processos eleitorais.
Mas o fato de o mercado ter lado na política não é um problema. É natural e legítimo que grupos sociais tenham preferências e interesses que encontram representação no espectro político partidário. Isso também se aplica aos setores financeiros da sociedade. Para deixar tudo mais complexo, na etapa atual do capitalismo, marcada pelo processo de financeirização, todos os que possuímos uma conta bancária pertencemos, em algum nível, ao mercado – dado que investimentos feitos por bancos com nosso dinheiro nos colocam na posição de investidores. Daí que as manifestações do mercado também possuam incidência sobre indivíduos que, a priori, sequer se percebem como parte do mesmo.
O problema reside, contudo, no caráter eminentemente técnico e apolítico com que o mercado financeiro traveste suas opiniões. Como estas são apresentadas como as únicas válidas, porque supostamente desprovidas de motivações “ideológicas”, qualquer outra abordagem socioeconômica concorrente é descartada ou descredenciada como “populista”. Isso se torna ainda mais problemático na medida em que grandes conglomerados de mídia, identificados com a agenda do mercado, propagam essa mesma visão, acabando por cristalizá-la na opinião pública.
Uma consequência imediata disso é que qualquer governo que sinalize desvirtuar dos preceitos econômicos defendidos pelo mercado tem de lidar com suas reações negativas, correndo o risco de ser taxado de incompetente. Afinal, a “justiça” do mercado seria espontânea e politicamente neutra. Alimentando tal perspectiva, em colunas recentes na Folha de S. Paulo, Marcos Lisboa definiu o mercado como um “amálgama de inúmeros gestores descoordenados”[3], enquanto Demétrio Magnoli o comparou ao trânsito, uma vez que “sua dinâmica reflete inumeráveis ações individuais derivadas do interesse próprio”[4].
Trata-se de uma visão de apelo para aqueles que creem ser o mercado financeiro desprovido de qualquer ideologia – o que, no mundo real, não é factível de ocorrer. Além disso, tal perspectiva ignora o processo de arquitetura institucional de um país, que traduz disputas políticas entre setores sociais de interesses concorrentes. Em outras palavras, se hoje os atores que compõem o mercado financeiro têm o poder punir ou recompensar governos em função de sua performance, é porque há uma institucionalidade que lhes confere essa prerrogativa.
No caso do Brasil (e em boa parte do mundo), esse arcabouço institucional se estabeleceu principalmente durante a década de 1990, quando do processo de liberalização econômica e financeira da economia nacional. Nesse contexto, a globalização financeira e a financeirização do capitalismo se alastraram pelo mundo. Isso conferiu proeminência aos interesses do sistema financeiro na política e economia nacional dos países integrados à ordem da globalização – sobretudo os emergentes, como o Brasil.
Desse modo, se o mercado financeiro é como o tráfego de automóveis, cabe perguntar como foram decididos os pontos interligados pelas estradas, aonde se situam os pedágios ou quem definiu o limite de velocidade. Na estrada dos fluxos financeiros, sabemos que o cenário hoje é amplamente favorável aos atores que operam no circuito global de finanças, o que deixa governos e populações vulneráveis a ações de investidores, que repercutem sobre variáveis reais da economia. Qual correlação de forças sociais permitirá um dia alterar essa realidade é uma questão em aberto no debate político e acadêmico. Com efeito, eventos cataclísmicos, como a pandemia de Covid-19 e a atual crise ambiental, indicam a necessidade de se rever os parâmetros da ordem financeira global. Daí que reconhecer os fundamentos políticos da mesma, descartando seu véu de neutralidade, seria o primeiro passo para tanto.
Em uma palavra, não há como existir neutralidade política no mundo social, e a arquitetura institucional de um país reflete o embate de suas forças sociais, muitas das quais aliadas a forças que operam transnacionalmente. No Brasil de hoje, isso significa que o governo Lula continuará tendo de lidar com a vigilância – e por vezes oposição – de um poderoso segmento social, que, durante o governo anterior, fechava os olhos a uma profusão de tragédias em nome da agenda econômica de seu interesse. Lula foi bem sucedido em lidar com o mercado financeiro em seus dois primeiros mandatos. Resta saber se será capaz de administrar essa relação em um contexto mais hostil e com desafios bastante distintos dos que enfrentou na primeira década deste século.
[1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2014/07/santander-diz-em-nota-clientes-que-reeleicao-de-dilma-pioraria-economia.html
[2] https://www.fitchsolutions.com/country-risk/bolsonaro-win-giving-rise-market-optimism-brazil-29-10-2018
[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2023/01/usando-o-mercado-como-bode-expiatorio.shtml
[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2022/11/o-mercado-nao-tem-comite-central.shtml
Pedro Lange Netto Machado é doutorando em Ciência Política no IESP-UERJ e pesquisador visitante na Freie Universität Berlin.