O grande concerto
A mão ensangüentada não segurava mais a gilete, mas ela não devia estar longe. Os dedos semidobrados estavam pretos, e em volta do pulso a branquidão extrema da pele era realçada por uma pulseira de sangue secoFábio Fernandes
Pena que Angélica está dormindo, pensa Leonardo ao ver a neve cair no meio da rua. As poucas crianças acordadas a essa hora da manhã escura de domingo – quase todas nas portas das igrejas com empregadas tomando conta enquanto as mães rezam, agora mais do que nunca é preciso rezar – se divertem com os flocos que começam a formar montículos no meio-fio. As mãozinhas enluvadas tentam fazer bolas de neve mas ainda é cedo, certamente ao final da missa haverá matéria-prima de sobra. Leonardo acende um cigarro e pensa num café com bastante açúcar, mas a padaria da Rua São José ainda não abriu, eles têm aberto bem mais tarde ultimamente, para economizar gás e energia elétrica. Tapeia o estômago olhando a neve cair lentamente. Leonardo nunca tinha visto neve: ele e Angélica são do Rio de Janeiro. De repente se lembra da mãe, e uma lágrima escorre gelada até a barba. Ela visitara Gramado uma vez, mas no verão, e a única frustração da velha foi não ter visto neve. Se estivesse ali com ele em Ouro Preto, certamente teria gostado de ver a rua ficando tão branca.
*
Leonardo finalmente chega com o pão e a ração diária de pó de café. Abre com dificuldade a porta cada vez mais emperrada da república e entra. Fecha a porta com força, não há porque fazer silêncio. Todos se foram. Dos quinze moradores não ficou nenhum; agora resta apenas um casal de paulistas, que havia chegado para passar um fim de semana e já estava ali há mais de vinte dias. Como ele e Angélica.
Ele cumpre o ritual de toda manhã: vai até a cozinha, pega a chaleira de alumínio amassada e de cabo frouxo, leva-a ao banheiro e enche-a com a água estocada na banheira (água que já está acabando, mas ele procura não pensar nisso). Volta e põe a água para ferver no velho fogão de lenha esquecido no galpão dos fundos e recuperado por ele. Puxa uma banqueta e senta-se enquanto espera a chaleira assoviar. Esperar. Não tem feito outra coisa.
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Como quando esperara a namorada chegar do Rio no final de semana que já tinha quase um mês e mais parecia um ano. Teve um dia inteiro só para si desde que saltou na rodoviária às seis da manhã de sexta, um dia inteiro só para vadiar pela cidade ocupada com os preparativos para o grande concerto de inverno. Pessoal de produção terminando os últimos detalhes e circulando por toda parte, uma mistura engraçada e bizarra de quarentões ripongas barrigudos e rapazes de blazer e ar blasé, arrogâncias se chocando no ar frio da cidade em fins de junho. Mas essa fauna invadindo a cidade no fundo valia a pena, Leonardo achava, porque o pessoal que vinha não era pequeno. O cartaz que se multiplicava por todos os postes e lojas da cidade anunciava todos os nomes, todos os que realmente importavam, Beto Guedes, Lô Borges, Toninho Horta, Clara Sandroni, João Bosco, Hermeto Paschoal, muita, muita gente, uma lista de nomes que corriam pelo cartaz malfeito de forma quase ininterrupta, formando meio que uma única frase, medíocre demais para um poema concreto mas ainda assim com uma certa musicalidade, um ritmo, café com pão café com pão café com pão, um Trenzinho do Caipira mais moderno mas com um charme antigo, de movimento universitário, de Clube da Esquina, de um tempo que Leonardo não viveu mas gostaria de ter vivido, um tempo que tinha o seu símbolo e esse símbolo se fazia presente no final do cartaz, com letras garrafais que formavam um nome ainda não confirmado. Para Leonardo, só não era deus no céu e Milton Nascimento na terra porque ele não acreditava em deus. Mas em Milton sim.
O evento estava sendo anunciado havia mais de três meses, toda Ouro Preto estava se preparando. Hotéis e pousadas lotados. Ele só conseguiu onde ficar porque conhecia alguns alunos da universidade, e arrumou um cantinho em uma das repúblicas. Por via das dúvidas, resolveu chegar um pouco mais cedo para garantir o lugar e esperar Angélica.
Teve medo de que ela não viesse. Andavam brigando demais. Tempo demais, pensava Leonardo enquanto acendia um cigarro que tinha prometido largar muitas vezes. Ambos com vinte e três anos na cara e dois de namoro, sonhos na cabeça e um desejo de pôr tudo em prática de uma vez só: ela bancária e estudante de astronomia, ele largara a faculdade de jornalismo para estudar teatro e não trabalhava. Dois fodidos, pensou na terceira tragada, isso não dá dinheiro algum. Mas o que é que eu vou fazer?, ele se perguntava sempre. Às vezes sentia vontade de casar, sair de uma vez por todas da casa dos pais; não agüentava a pressão. Mas nessas horas ficava confuso. Não achava que fosse a melhor saída. Leonardo só sabia que precisava de tempo.
*
A chaleira apita de repente. Leonardo pula sobressaltado e percebe que quase havia caído no sono. O coração bate mais forte; tem medo de dormir assim. Quando menino, lera um conto de Jack London em que o explorador perdido no Alasca com seu cão fazia uma fogueira para tentar sobreviver mas acabava morrendo assim, mãos estendidas em frente à minguada pilha de gravetos, os pensamentos interrompidos no meio como quem dorme. Leonardo tem medo de morrer dormindo.
Derrama a água fervendo sobre o coador de pano – há muito que o filtro Melitta fazia parte do imenso monturo de lixo nos fundos da casa velha – e torna a se sentar enquanto passa o café. Os pensamentos perdidos, mas os olhos bem abertos.
*
Leonardo sabia que ia encontrar muita gente conhecida peruando em Ouro Preto. A cada esquina cruzava com uma figura diferente: um colega do segundo grau que acabara de chegar com uma caravana de ripongas, uma loura espetacular do curso de inglês que ele cercara durante um semestre inteiro e nada, uma amiga que trabalhava na produção do Geraldo Azevedo. Às cinco da tarde daquela sexta, Leonardo batia pernas pelas ruas, procurando alguma coisa para dar de presente a Angélica. Parou na loja de jornais e revistas da São José, comprou um exemplar do Estado de Minas, pulou a manchete sobre a ameaça de guerra no Leste Europeu – toda hora tem uma merda dessas acontecendo em algum lugar, pensou – e foi direto ao segundo caderno. A programação do espetáculo estava lá, mas ainda não havia confirmação quanto ao Milton.
Entrou na loja ao lado, viu algumas lembrancinhas, achou tudo muito brega. Acabou resolvendo comprar apenas um saquinho de biscoitos amanteigados – besteira, ele achava, mas era a única coisa que ele tinha certeza de que ela ia gostar – e ia voltar para a república para tomar um banho e comer um sanduíche. Subiu a Rua Direita para chegar mais rápido à Praça Tiradentes.
De repente, passando a mão pelo queixo áspero, lembrou: precisava comprar um barbeador. Sem parar de caminhar, varreu a rua com os olhos. A única farmácia da rua havia ficado para trás, e em Ouro Preto, para trás freqüentemente significa muito para cima ou muito para baixo. Leonardo não estava com o menor saco de voltar.
Foi então que descobriu o beco. Uma ruela que rachava um quarteirão da rua logo antes da praça, e que só tinha duas tabuletas em toda a sua mínima extensão. Uma, de metal pintado, onde se lia a palavra DROGARIA; a outra, escavada numa acha de lenha, com o originalíssimo nome de Bar do Beco. Dobrou a ruela, e no instante em que entrava na drogaria ouviu chamarem seu nome.
Virou-se. O rapaz sentado numa das mesas dentro do bar em frente estava meio oculto pelas sombras, mas antes de olhar para ele Leonardo já sabia quem era.
– Douglas? – perguntou, a voz baixa, hesitante. O rapaz em sombras ergueu um copo e sorriu.
Leonardo esperava todas as pessoas do mundo, mas não esperava Douglas. Muita coisa lhe passou pela cabeça numa fração de segundo: cumprimentá-lo e seguir seu caminho, virar de costas ostensivamente, ou até mesmo ir lá e falar com ele. Foi.
– Quanto tempo – esboçou um sorriso sem graça, parando na soleira da porta do bar e olhando para o rapaz louro sentado. – Dois anos, né?
– Três no mês que vem – corrigiu Douglas. – Senta, toma uma cerveja comigo.
– Não sei, tenho umas coisas pra fazer ainda… – sentou-se.
– Veio sozinho? – Douglas perguntou, esticando o braço para chamar o garçom e pedir mais um copo.
– Não. Ou melhor, vim, mas Angélica está chegando.
– Ah, legal – diz Douglas com um sorriso amarelo. O garçom chegou com o copo. Douglas serviu Leonardo. – Você não mudou.
– É mesmo?
– Sempre indeciso. Nunca sabe o que quer.
Leonardo pegou o copo, mas não bebeu. Desviou o olhar para a rua. Podia dar uma desculpa e sair. Mas não sabia se era isso o que queria.
– E você, como está? – perguntou por perguntar.
– Vim com a banda do Barrosinho. Estou substituindo o baixista dele, o cara quebrou o braço.
– Ah.
Não havia muito o que dizer. Mas Douglas não estava incomodado com isso, ou pelo menos não parecia, pois Leonardo só se deu conta de que o rapaz estava dizendo algo no final da frase.
– O que foi que você disse? – perguntou de repente.
– Eu perguntei – Douglas disse com um sorriso de quem já estava acostumado – se você não quer dar um pulo lá na república onde eu estou. Daqui a pouco vou ter que ensaiar, mas agora não deve ter ninguém. A gente podia tomar um vinho ótimo que eu comprei.
– Desculpe, não vai dar – Leonardo aproveitou a deixa. – Tenho que apanhar Angélica na rodoviária daqui a pouco. – Mentira, ela só chegaria às cinco do dia seguinte. Mas Douglas não precisava saber.
– Tudo bem, fica pra outro dia. — Douglas sorriu, erguendo o copo. – À nossa.
Leonardo aceita o brinde, meio incomodado. A deles já foi há muito tempo.
*
Quando Leonardo vê que o café está finalmente pronto e pensa em chamar Angélica já é tarde: ela entra na cozinha arrastando as sandálias de borracha que calçam dois pés e quatro pares de meias. Está igual a um botijão de gás, camadas e camadas de roupas cobertas por um poncho boliviano por sua vez envolto em dois cobertores grossos de lã dos quais ela não se separa nem para ir ao banheiro. Vendo o andar arrastado dela, Leonardo tem vontade de chorar. A palidez de Angélica é preocupante demais, e ele não sabe mais o que fazer para lhe devolver a vontade de lutar.
*
A vontade de Leonardo no instante em que Angélica desceu do ônibus na rodoviária era de sair correndo, se esconder em algum lugar, não pensar em mais nada. Ou pensar então que aquele rosto inchado e cansado não estava carrancudo por causa dele, mas sim por causa da viagem.
Achou melhor nem pensar. Pegou a sacola dela e consultou o relógio: seis e vinte da manhã. O sol tentava perfurar a neblina que cobria a cidade; o leve brilho azul no céu dava sinal de que o tempo seria bom, mas por enquanto ainda fazia muito frio.
Desceram a Rua Padre Rolim no meio de um burburinho só. O caminho da rodoviária à Praça Tiradentes estava cheio de gente chegando para o grande concerto, e as vozes empolgadas eram de uma dissonância irritante para os ouvidos de Leonardo, perdido em pensamentos muito distantes.
– O que foi que você disse? – perguntou de repente para Angélica.
– Eu perguntei – ela olhou para ele irritada – se vocês aqui estão com luz e telefone.
– Estamos. Por quê?
– Tem uma cidade na divisa com o Rio que estão sem luz nenhuma. E na parada perto de Belo Horizonte a caixa da lanchonete disse que a tevê não pega desde as duas da manhã e todo mundo ali dizia que a guerra estourou.
– Ah, que bobagem – disse Leonardo. – Eles estão ameaçando essa guerra tem dois meses, e as tropas na Europa ainda não dispararam um tiro.
– Não fui eu quem disse isso – Angélica retrucou, mais fria que a temperatura ambiente. Leonardo baixou a cabeça e soltou um palavrão entre dentes.
E Angélica detestou os biscoitos amanteigados.
*
– Não é bem assim – disse Douglas assim que a notícia do cancelamento havia se espalhado, no dia seguinte após a chegada de Angélica. – Parece que um cara da produção do Hermeto conseguiu contato com ele, e mandou avisar que estão marcando outro dia.
– Mas houve mesmo guerra? – perguntou Leonardo.
– Não sei, sei lá. Me disseram que esse sujeito trouxe essa notícia por telefone lá de Mariana, não sabemos nem se é verdade.
– Ah – e de repente não havia mais o que dizer. Leonardo bebericou o restinho do vinho tinto que havia no copo de geléia, saboreando bem devagar, olhando as paredes descascadas e com cheiro de mofo da república onde Douglas estava hospedado.
– Gostei de você ter vindo, sabia? – disse Douglas.
Leonardo não respondeu. Tirou do bolso da jaqueta um pacote aberto de biscoitos amanteigados e ofereceu a Douglas. Que gostou muito.
*
Leonardo serve o café para Angélica, que sorri com esforço. Ela sente dores e ele sabe. Corta o pão para ela e passa a pouca manteiga que resta no pote. Virgínia e Marcelo vão entender.
O casal de paulistas logo se reúne a eles na cozinha. Leonardo sente que eles continuam dispostos apesar do frio e da fome, mas se contêm quando olham para sua cara. Ele agradece a intenção com um rápido sorriso e torna a observar Angélica tomando o café. Escava os cantos da memória tentando achar motivos para a alegria fora do normal que vê nos rostos rosados. Lembra. O grande concerto foi remarcado para hoje.
*
Leonardo não acreditava em bruxas, mas que elas existiam, existiam. Podia até não ter acontecido guerra nenhuma, mas se não fosse isso, então como explicar a total falta de comunicações com Rio e São Paulo desde a chegada de Angélica? Leonardo custou a assimilar o fato de que não poderiam sequer sair da cidade, a menos que pedissem carona: não havia ônibus, nem chegando nem saindo da cidade. Era domingo, o concerto não acontecera e não podiam ir embora. Os funcionários das empresas de ônibus não tinham idéia do que estava se passando nem de quando haveria transporte para o Rio. Leonardo acabou colocando seu nome e o de Angélica numa lista de espera: era o número 182.
Se ele não conseguia aceitar isso, muito menos Angélica, que tinha trabalho no dia seguinte. Decidiram tentar a carona. Depois de três horas na beira da estrada, disputando espaço com dezenas de jovens igualmente preocupados e ansiosos, voltaram para a república.
*
Leonardo não deixa o café esfriar. Engole rapidamente tudo o que há na xícara; come sua fatia de pão devagar e depois toma um copo de água filtrada. Está alimentado até a noite. Agora é batalhar alguma coisa para Angélica, comida, remédio, coisa que o valha.
*
Em poucos dias as coisas começaram a ficar feias. Restaurantes e supermercados fecharam por falta de comida, as farmácias estavam esgotando o estoque de remédios, a distribuição de água começou a falhar em diversos pontos da cidade.
E o frio. A temperatura caiu cinco graus nos primeiros três dias. Até o dia da chegada de Leonardo, a mínima registrada em Ouro Preto naquele inverno havia sido de três graus positivos às quatro da manhã.
*
– Esta madrugada deu três negativos, você soube? – Leonardo perguntou para Douglas no quarto dia.
– Soube. Como é que vocês estão se virando?
Leonardo deu de ombros. – Tudo bem. Metade do pessoal da república foi embora, moram todos nas cidades mais próximas, Itabirito, Mariana, Congonhas. Sobrou café, macarrão, essas coisas. Difícil está sendo passar sem notícias lá de fora.
– O Barrosinho e a banda estão indo embora hoje – Douglas comentou.
– Então você deve estar animado – Leonardo disse. Uma pontada de tristeza saiu da voz antes que ele se desse conta.
– Não sei.
– Como não sabe?
– Não sei, porra – Douglas respondeu atravessado. – Só você que pode ficar indeciso?
Leonardo não estava entendendo.
– Não precisa ser grosso. Está agindo assim comigo por quê?
O louro balançou a cabeça com ar de cansaço.
– Eu é que pergunto, Leonardo. Há três anos você sumiu sem uma explicação, mas por acaso a gente se cruzou aqui, viva. Aí vem você todo dia beber do meu vinho e fala o tempo todo da merda em que anda sua vida e me trata como se nada tivesse acontecido? E a minha vida? Você sabe como eu fiquei?
Leonardo não sabe. Não sabe sequer como ele próprio ficou depois de Douglas. E de Angélica.
*
Voltou para a república decidido a conversar com Angélica. Era preciso entender melhor a situação, definir tudo de uma vez por todas.
Todas as suas dúvidas o atropelaram quando chegou à república. Angélica meio desanimada na cozinha, uma sopa de ervilha de pacotinho meio rala na panela. Os outros moradores já haviam comido. Sentaram juntos na mesa da cozinha, portas fechadas para não entrar nenhuma corrente de ar. E não sair nenhuma palavra.
– Hoje disseram que fez três negativos de manhã cedo – Angélica puxou assunto.
– É. Disseram que é capaz de nevar ainda hoje.
– Você acha que o Rio foi mesmo…
– Não sei – Leonardo dizia entre colheradas de sopa, cabeça baixa. – Os ônibus do Rio não têm vindo mais, estamos sem telefone, televisão e rádio, nem jornal impresso a gente tem mais.
– Grande merda – ela disse, irritada.
Leonardo levantou a cabeça e encarou-a, sem a menor paciência.
– Falei direito com você, porra – retrucou, engrossando a voz.
– E por acaso eu te ofendi?
– Você está muito azeda, está ficando insuportável – Leonardo continuou, sem conseguir se controlar. – E sabe do que mais? Você está ficando gorda. Já notou como seu rosto está ficando inchado?
Ele só percebeu que havia exagerado quando viu as lágrimas rolando pelo rosto de Angélica. Ela não era de chorar.
– Você tem razão – ela disse entre soluços. – Eu sou insuportável. Mas você é um idiota. – E, baixando a voz: – Vai dar um péssimo pai.
– O que foi que você disse? – ele perguntou, sem acreditar.
– O que você ouviu – e saiu, batendo a porta da cozinha.
Leonardo perdeu a fome. A sopa esfriava rapidamente no prato.
*
Na rua que sobe até a praça, as poucas pessoas que se arriscam a sair tão cedo – são dez horas, mas o céu está escuro e a neve agora começa a se acumular perigosamente nas ruas – falam do concerto. Leonardo ouve sem conseguir acreditar. Não é possível que todo mundo esteja acreditando numa bobagem dessas.
Mas é ao passar novamente pela Praça Tiradentes que as dúvidas se dissipam. Os olhos brilham ao ver os andaimes reluzentes de duralumínio sendo colocados em frente ao Museu da Inconfidência. Atrás do palco, peões e técnicos de som, todos encasacados e encapotados precariamente mas correndo de um lado para outro para compensar, instalam e checam dezenas de caixas imensas, na certa recebendo eletricidade de algum gerador gentilmente cedido. Agora é sério.
Volta correndo. Precisa avisar Angélica.
*
– Grávida? – Douglas perguntou ao ouvir a notícia no dia seguinte. Após ter resolvido ficar na cidade.
– Três meses semana que vem – respondeu Leonardo, apático, meio copo de vinho na mão. Não conseguia encarar Douglas. Os olhos postos na mesa só viram a mão grande e áspera colocar mais um pouco de vinho em seu copo.
*
No sétimo dia a luz acabou. A princípio em zonas isoladas, mas no oitavo dia a queda foi total. E, salvo num ou noutro gerador, ela não tornou a voltar. Nesse dia a temperatura chegou a oito abaixo de zero.
Boatos: uns diziam que a luz era sobrecarga na subestação devido a problemas em Belo Horizonte, outros diziam que ninguém devia se preocupar, que já haviam conseguido providenciar alimentos e medicamentos, outros ainda diziam que as estradas estavam bloqueadas, ninguém ia nem vinha. Todos diziam tudo.
E os mortos. Todo dia havia no mínimo três mortos na cidade. Quase sempre gente de fora. A polícia se dizia incapaz de resolver qualquer coisa, por absoluta falta de efetivo: apenas dois cabos e um comandante permaneciam na região.
Leonardo ficava sabendo de todas essas notícias ao sair de manhã para tentar conseguir comida. À noite, procurava passar na república de Douglas para saber notícias.
O rapaz louro já não lhe metia mais medo. Primeiro porque agora as prioridades eram outras, e não havia tempo nem espaço para se falar de nada que não fosse essencial à sobrevivência; e, além do mais, Douglas parecia ter perdido o interesse por Leonardo. A cada dia o rapaz se tornava mais distante, fazia muito frio dentro de sua república e o vinho havia acabado. E nem sempre Leonardo podia ou queria ir.
Como no décimo quinto dia, quando Angélica passou mal. Acordou de madrugada, vomitando; sua temperatura chegou a trinta e nove graus. Leonardo pulou da cama e acordou Virgínia. Fizeram chá e compressas. O estado de Angélica só melhorou quando amanheceu.
No dia seguinte o quadro se repetiu, mas à tarde. O chá e o fubá de milho das compressas estavam no fim. Leonardo foi atrás de algum médico, mas não achou nenhum. Das quatro clínicas particulares da cidade, apenas uma estava funcionando, e mal. O máximo que a enfermeira de plantão pôde fazer por ele foi receitar um antipirético. Que as duas últimas drogarias abertas de Ouro Preto não tinham mais.
Desesperado, procurou Douglas. Andou o mais rápido que pôde pelos paralelepípedos escorregadios de gelo e chegou ofegante à república de Douglas: uma fachada cinza, sem vida, o reboco caindo aos pedaços pelo excesso de umidade. As janelas azuis descascadas estavam fechadas. Tocou a campainha.
Nada. Foi paciente, tinha de ser, estavam todos cansados demais para se preocupar em atender portas correndo. Só decidiu bater depois do quinto toque. A porta estreita cedeu ao seu punho, rangendo nas dobradiças. Um cheiro quente, de abafamento, encheu suas narinas. Parecia mofo, mas com algo mais. Pensou em carne podre, mas não devia ser, era um cheiro meio adocicado. Escancarou a porta para deixar o ar gelado entrar. O corredor estava escuro, mas do lado de fora a diferença não era muita. Leonardo teve medo.
Chamou por Douglas. Não houve resposta. Meteu a mão no bolso da calça suja e tirou um miniisqueiro. Não restava muito gás, mas os cigarros haviam acabado há muito tempo. Deu alguns passos à frente, tomando o cuidado de deixar a porta aberta, e acendeu o isqueiro.
A chama fraca não iluminava muito, mas serviu para guiá-lo pelo rastro que o cheiro forte fornecia. O corredor de entrada desembocava numa enorme sala, com portas para dois alojamentos, um de cada lado. Ali o cheiro só não era pior por causa do frio. Caminhando com o máximo de silêncio possível, escolheu o da direita, onde Douglas dormia. Parou na entrada e esticou a mão com o isqueiro para dentro.
De repente um flash bateu nos seus olhos. Leonardo soltou um grito abafado e abaixou a mão, apagando o isqueiro. A mão desajeitada por causa da luva, custou alguns segundos para tornar a acendê-lo. Recapitulando o susto, se deu conta de que o flash devia ter sido o reflexo da chama em algum objeto brilhante. Abaixou mais a mão para que as sombras não atrapalhassem. Então viu o que era.
Uma garrafa de vodca. Vazia. Mas o cheiro não era do álcool destilado. Perto da garrafa havia mais alguma coisa, que as sombras não deixavam ver. Teve de se abaixar para enxergar melhor.
A mão ensangüentada não segurava mais a gilete, mas ela não devia estar longe. Os dedos semidobrados estavam pretos, e em volta do pulso a branquidão extrema da pele era realçada por uma pulseira de sangue seco. Leonardo não estava acostumado a ver cadáveres de perto, mas não foi a mão que o impressionou. Só quando os olhos deram com o rosto de Douglas foi que tudo desabou.
Saiu correndo da república, abafando um grito; o isqueiro caiu no caminho. Vomitou na porta. As lágrimas só viriam muito depois, mas Leonardo não saberia dizer exatamente por que chorava.
*
Douglas foi mais corajoso, Leonardo conclui resignado, enquanto tenta preparar alguma coisa para comerem antes do concerto. Vasculhara todos os cantos da cozinha; não havia mais nada para comer. Nem os restos mofados.
Lá fora, a noite cai mais cedo, como sempre desde o início do inverno, e cada vez o frio é maior, mais insuportável. Leonardo parecia um esquimó barrigudo; vestiu todas as roupas disponíveis que couberam no corpo magro.
Angélica estava um pouco mais forte. As dores e os vômitos haviam parado no dia seguinte à morte de Douglas, e Virgínia conseguira duas cápsulas do antipirético receitado pela enfermeira da clínica. Além disso, a notícia do concerto a animara um pouco; já tinha forças suficientes para andar até a praça.
Leonardo esquenta um pouco de água na chaleira e corta em rodelas bem finas a única batata mirrada que conseguira nas andanças pela cidade. O cheiro do caldo ralo faz doer sua cabeça de tanta fome. Serve o conteúdo da panela em porções rigorosamente iguais, e saboreia a sua refeição como se fosse a última. Mas evita pensar nisso.
O relógio de pulso – que incrivelmente ainda funciona – informa Leonardo de que são sete e meia. O concerto está marcado para as oito. Precisam ir, se quiserem achar algum lugar para sentar. Saem os quatro, ele e Virgínia ajudando Angélica, Marcelo silencioso atrás. Todos magros e frios demais para dizerem alguma coisa.
A Praça Tiradentes está cheia. Várias fogueiras improvisadas sobre os paralelepípedos transformam a neve naqueles pontos em enormes poças de lama, e Leonardo dá graças a Deus porque a neve ainda não chegou ao ponto de acumular na porta das casas. Quando isso começar a acontecer, pensa ele, será o fim.
Abrem caminho por entre as pessoas sentadas e aglomeradas anunciando a gravidez de Angélica. Quase ninguém se comove. No degrau mais baixo da estátua de Tiradentes, uma menina magra e suja – como nós, pensa Leonardo – oferece o lugar para a grávida; ela senta, esgotada. Ele se espreme aos pés dela. Virgínia e Marcelo foram procurar um lugar mais perto do palco.
Leonardo tenta correr os olhos ao redor, mas tudo o que consegue ver são toucas e cabeças, bonés e chapéus, o brilho ocasional de uma fogueira. Os olhos ardem de cansaço.
O tempo passa. Os olhos pesam e ele se força a permanecer acordado. Mas nem todo mundo ali devia pensar como ele; o burburinho animado que antes enchia a praça agora não passa de um silêncio mal disfarçado; diversas das fogueiras que polvilhavam a praça já se apagaram, e ninguém move uma palha para tentar reavivá-las. As luzes do gerador especial cedido pela Prefeitura para o evento – pelo menos foi isso o que os técnicos lhe disseram mais cedo, quando ele resolveu se informar melhor – ainda não haviam sido acesas.