O grito de independência de turistas pelo mundo e no Brasil
As cenas fartamente reproduzidas por diferentes meios de comunicação revelam, especialmente em ambientes praianos, uma espécie de deslocamento entre realidade e fantasia, como se a viagem tivesse transportado essas pessoas para um mundo paralelo ou quiçá para um tempo-espaço assemelhado àquele do chamado “velho normal”
Brasileiros que, em atenção aos protocolos sanitários estabelecidos por governos nas diferentes instâncias, permanecem, há meses, restritos na sua mobilidade espacial cotidiana, acompanharam, talvez admirados, talvez estupefatos, as notícias sobre lotação em praias e outros espaços tradicionalmente frequentados por turistas neste feriado da Independência do Brasil.
Ao contrário, entretanto, da emissão de um simples juízo de valor, buscamos analisar os fatos, considerando, principalmente, a complexidade de suas causas, sem enveredar pela análise de seus efeitos, os quais possivelmente sejam sentidos apenas em futuro próximo. Nessa direção, tomamos a tela de Edvard Munch (1863-1944), O grito, de 1893, como uma metáfora, dado a mesma evocar sentimentos muito próprios ao momento que atravessamos, como ansiedade e incerteza, os quais, por distintas razões, teriam também marcado a vida de seu autor.[1]
Em 3 de julho passado, uma sexta-feira em pleno feriado prolongado da Independência dos Estados Unidos, o jornal “The Philadelphia Inquire” publicou a matéria intitulada “What pandemic? Tourists crowd Jersey Shore beaches for Independence Day weekend”. É notório que Estados Unidos e Brasil têm presidentes que minimizam a importância da pandemia em seus respectivos países assim como, sistematicamente, aparecem em público sem o uso de máscaras e, no caso do brasileiro, muitas vezes interagindo fisicamente com pessoas em aglomerações. Entretanto, se faz necessário destacar que cenas de praias lotadas têm se repetido em diferentes lugares do planeta, como, por exemplo, Reino Unido, França, Espanha, Portugal e Austrália, o que indica que esse fenômeno não pode ser compreendido levando-se em conta apenas o comportamento de respectivos chefes de Estado.
A transformação das viagens em objeto de desejo e de consumo, ou seja, a invenção do turismo,[2] decorre de um processo lento, que resulta de uma convergência de fatores como progressos técnicos e científicos, que tornaram os deslocamentos humanos mais rápidos, seguros e confortáveis ao longo dos séculos. Mas, também, da construção social de uma valorização econômica e cultural das viagens enquanto, por um lado, uma forma de dinamizar economias locais, regionais e nacionais[3] e, por outro, uma espécie de escape à rigidez imposta pelas obrigações cotidianas, orientadas pelo mundo do trabalho. As viagens tornaram-se, assim, ao longo do século XX, sinônimos de lazer, prazer e entretenimento.
Por outro lado, como têm alertado profissionais da saúde, especialmente psiquiatras, a pandemia da SARS-CoV-2 trouxe, entre seus efeitos deletérios, o aparecimento e o agravamento de problemas de saúde emocional e mental. O avanço da doença pelo mundo e as sistemáticas notícias sobre mortes por Covid-19, somadas às quarentenas e ao isolamento e necessário distanciamento social formam, juntos, o quadro dramático em que nos vimos inseridos. Segundo a Academia Brasileira de Ciência, os danos humanos, econômicos e sociais sem precedentes provocam um estresse “que impacta nossas mentes” e “aumenta o risco de desenvolvimento de transtornos mentais”.
Amalgamados no tempo presente, os pressupostos acima nos ajudam a entender por que um dos efeitos do confinamento prolongado é a saída, em massa, no feriado da Independência, em direção a lugares diferentes do lugar de moradia, em plena pandemia. O desejo reprimido de viajar, enfim, transborda como um grito de liberdade, uma válvula de escape para a ansiedade e as incertezas trazidas pelo novo coronavírus, sendo, portanto, absolutamente compreensível. Ocorre, todavia, que as cenas fartamente reproduzidas por diferentes meios de comunicação revelam, especialmente em ambientes praianos, uma espécie de deslocamento entre realidade e fantasia, como se a viagem tivesse transportado essas pessoas para um mundo paralelo ou quiçá para um tempo-espaço assemelhado àquele do chamado “velho normal”.
Ao “grito” dos turistas soma-se o estridor de comerciantes em geral, direta ou indiretamente relacionados à economia do turismo, como prestadores de serviços de hospedagem, de alimentação, de lazer, entre outros, todos ávidos por retomar suas atividades, que são, em grande parte dos casos, seu único meio de sobrevivência. A pressão sobre governantes aumenta na medida em que o tempo passa e a economia padece. Não é difícil compreender o apelo de pequenos empresários e também de trabalhadores, muitos já desempregados pela crise. Importante lembrar que em algumas localidades do mundo e do Brasil, a taxa de dependência do turismo é elevada.
Mas o alarido provocado pela crise pandêmica é mais complexo. Profissionais da saúde não se cansam de alertar para a necessidade de cumprimento de protocolos básicos, como uso de máscaras e de álcool gel, e para os iminentes riscos à saúde trazidos por aglomerações. Muitos padeceram contaminados na linha de frente do combate à doença, somando-se, no caso brasileiro, às mais de 100 mil vítimas fatais. Por isso, não é difícil entender por que entre eles tantos bradam, cotidianamente, pela conscientização da população em geral. Suas vozes são, entretanto, abafadas por achismos e negacionismos de toda sorte, os quais vão do uso aleatório de vermífogo à pretensa cura por hidroxicloroquina. E quando o garoto propaganda é o próprio presidente da República se estabelece uma concorrência desleal entre discurso científico e discurso político-ideológico, este frequentemente bramindo palavras de ordem a favor de um medicamento cuja eficácia tem sido sistematicamente questionada por pesquisadores em todo o mundo. Esse discurso é, certamente, um estímulo a mais para turistas ávidos por viajar.
O que o noticiário neste feriado também trouxe à tona foi a voz inquietante de populações residentes em localidades tomadas por visitantes no feriado prolongado, as quais revelam sua preocupação com a presença maciça de “estrangeiros” em seus territórios, na maior parte dos casos sem a aplicação de medidas preventivas como medição de temperatura corporal. Naturalmente, ainda que o turismo dinamize as economias locais e gere postos de trabalho e renda para parte dos residentes, é compreensível que populações receptoras desses fluxos exponham seu legítimo receio de contágio diante do imponderável.
Por fim, cabe dizer que alguns governos estaduais e municipais, Brasil afora, anunciaram medidas para o controle e a fiscalização da circulação de pessoas em localidades turísticas, como foi o caso do governo do estado de São Paulo e de algumas prefeituras de municípios litorâneos paulistas. A Operação Independência, divulgada pelo governo João Dória pouco antes do feriado de 7 de Setembro, envolveu, em uma parceria, a Polícia Militar, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Agencia de Transportes do Estado de São Paulo (Artesp), concessionárias de rodovias e prefeituras municipais. Entre as medidas previstas, encontra-se o uso de megafones pela PM para “divulgação de mensagens de conscientização e prevenção ao coronavírus e também apoio a equipes locais de Vigilância Sanitária e Guarda Civil”.
O que as imagens do feriado prolongado nos mostraram, entretanto, é que, aparentemente, neste caso, não ganha quem grita mais alto. Praias apinhadas de banhistas, muitos sem máscara e sem distanciamento social, revelam que falou mais alto o desejo do lazer à beira mar, enquanto o bom senso padeceu sufocado pelo grito de independência dos turistas.
Rita de Cássia Ariza da Cruz é docente do curso de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana e coordenadora do Laboratório de Estudos Regionais-LERGEO do Departamento de Geografia da FFLCH/USP.
[1] Conforme se lê na página oficial do museu Edvard Munch.
[2] BOYER, Marc. História do turismo de massa. Bauru (SP): EDUSC, 2003.
[3] Não se deve ignorar o fato de que em 2019, por exemplo, o volume de negócios do turismo no mundo foi equivalente àqueles relativos à exportação de petróleo, produção de alimentos ou de automóveis, de acordo com a Organização Mundial do Turismo – UNWTO, órgão vinculado à ONU.