O impossível acontece
Sem remeter necessariamente à Revolução Francesa, o ciclo histórico que vive a Tunísia parece familiar. Um movimento espontâneo estende-se, reunindo as mais diversas camadas sociais; o absolutismo balançaSerge Halimi
(Protestos contra o governo em Damasco – Síria)
Os políticos adoram invocar a “complexidade” das coisas para explicar que seria loucura querer transformá-las. Mas, em certas circunstâncias, tudo se torna muito simples, como por exemplo, quando o ex-presidente George W. Bush ordenou a todos, após o 11 de Setembro, que escolhessem “entre nós e os terroristas”. Em Túnis, a escolha deveria ser entre um ditador amigo e “um regime de caráter talibã no Norte da África”.1Esse tipo de alternativa conforta os protagonistas: o ditador proclama-se o único baluarte contra os islâmicos; os islâmicos, os únicos inimigos do ditador.
Mas basta que um movimento social ou democrático faça surgir atores que recusem uma coreografia definida para toda a eternidade, e o balé desanda. Então, o poder desesperado começa a sondar o menor traço de “subversão” nos protestos populares. Se ela existe, ele se aproveita; caso contrário, basta inventá-la.
Foi assim no dia 13 de janeiro, véspera da fuga do presidente Zine al-Abidine ben Ali. Diante de Mezri Haddad, embaixador da Tunísia na Unesco, Nejib Chebbi, oponente laico da ditadura, fazia acusações contra “um modelo de desenvolvimento que utiliza os baixos salários como única vantagem comparativa na competição internacional”.2Ele criticou “a exposição provocativa de riquezas ilícitas nas grandes cidades”, destacando que “toda uma população repudia esse regime”. Haddad perdeu a compostura: “Logo, logo eles virão saquear seu palácio em La Marsa, pois essa é a lógica de todas as sociedades que não têm mais medo da polícia. […] Ben Ali salvou a Tunísia, em 1987, das hordas de fanáticos e fundamentalistas. […] Ele deve permanecer no poder, aconteça o que acontecer, pois o país está ameaçado por hordas de fanáticos e neobolcheviques que são seus aliados estratégicos”. No entanto, algumas horas depois, Haddad reclamava a partida do “salvador da Tunísia”. E, em 16 de janeiro, Chebbi tornou-se ministro do Desenvolvimento Regional de seu país…
Os povos árabes não fazem revolução todo dia, mas são rápidos em fazê-la. Menos de um mês se passou entre a imolação de Mohammed Bouazizi, as queixas de bacharéis desempregados, a tomada dos palácios de Cartago da família Trabelsi e a libertação dos detidos, e os camponeses já estavam em Túnis exigindo a abolição de privilégios.
A entrada em cena dos povos do Egito, Líbia, Marrocos, Iêmen, Síria e Bahrein continuaria. A unidade árabe seria reconstruída, porém não a partir da matriz da identidade religiosa fundamentalista, e sim do fogo das lutas sociais e democráticas.
Sem remeter necessariamente à Revolução Francesa, o ciclo histórico que vive a Tunísia parece familiar. Um movimento espontâneo estende-se, reunindo as mais diversas camadas sociais; o absolutismo balança. De uma hora para outra, é preciso fazer a escolha: sair do jogo e recolher os ganhos, ou dobrar a aposta.
Neste instante, uma fração da sociedade (na Tunísia, a burguesia liberal; no Egito, a Irmandade Muçulmana e o exército) procura fazer o curso dos acontecimentos voltar ao normal. Outra (camponeses radicalizados, empregados sem futuro, trabalhadores desocupados, estudantes depauperados) afirma que a onda de protestos vai varrer do poder muito mais do que uma autocracia envelhecida e um clã aproveitador e inescrupuloso. Essas camadas populares, principalmente os jovens, não arriscaram a vida para que outros, menos temerários mas mais bem colocados socialmente, perpetuem o mesmo sistema social, porém livre de parasitas policiais e mafiosos.
Essa hipótese, que veria o combate contra a ditadura personalizada da família Ben Ali estender-se à dominação econômica de uma oligarquia, não agrada nem aos operadores de turismo, nem aos mercados financeiros, nem ao FMI. Eles só gostam da liberdade aplicada aos turistas, às zonas francas e aos movimentos de capitais. No dia 19 de janeiro, a agência de classificação de risco Moody’s baixou a nota tunisiana, alegando “a instabilidade do país, devido à recente mudança inesperada de regime”.
Algumas semanas antes do levante de parte do povo líbio contra o regime de Kadafi, o FMI se vangloriava da “forte performance macroeconômica da Líbia e seus progressos no fortalecimento do setor privado”. Amigo de Kadafi, Ben Ali havia recebido elogios similares do FMI em novembro de 2008, porém feitos pessoalmente por seu diretor-geral, Dominique Strauss-Kahn, que chegava diretamente de… Trípoli.
O mesmo descontentamento está presente em Argel, Trípoli, Pequim, Tel-Aviv, Cairo e nas embaixadas ocidentais. No momento em que a multidão, de maioria muçulmana, exigia liberdade e igualdade, a França esclarecia, à sua maneira, o “debate” sobre a compatibilidade entre democracia e Islã, oferecendo ao cambaleante regime de Ben Ali “o know-how de nossas forças de segurança”… Muçulmanas, laicas ou cristãs, as oligarquias no poder uniram-se assim que sua população despertou. O ex-presidente tunisiano proclamou-se um pilar da laicidade e dos direitos das mulheres contra os fundamentalistas; ele presidia um partido-membro da Internacional Socialista e foi encontrar refúgio na… Arábia Saudita!
Autocracias simpáticas
Os países árabes pareciam congelados para sempre – talvez por traços culturais ou religiosos – numa glaciação autocrática. Porém, sem temerem que a defesa das liberdades individuais, da liberdade de consciência, da democracia política, do sindicalismo fosse considerada prioridade “ocidental” maquiada de universalismo emancipador, povos árabes ocuparam as ruas, de Túnis a Sanaa. Com essas ações de massa, demonstraram a recusa do autoritarismo, das injustiças sociais, dos regimes policiais que infantilizam as populações e da liderança de dinossauros. Todo esse movimento lembra outros processos revolucionários, cuja dinâmica – esquecida há tempos – de arrancar conquistas sociais e democráticas dia após dia foi retomada com vigor por esses povos no momento preciso em que “o Ocidente” parecia dividir-se entre o medo do declínio e a lassitude perante um sistema político necrosado no qual o parecido se torna idêntico, a serviço dos mesmos. E, em lugares como Paris, Washington e Pequim, a imobilidade autocrática dos países árabes parecia ainda maior.
Há mais de 30 anos, em um artigo decisivo, uma professora universitária norte-americana, Jeane Kirkpatrick, então democrata, já teorizava sobre o apoio dos Estados Unidos aos regimes ditatoriais.5 Segundo ela, os regimes “autoritários” pró-Ocidente sempre seriam preferíveis (e, pensava ela, mais facilmente reformáveis) aos regimes “totalitários” que poderiam sucedê-los.
Publicada em novembro de 1979, sua análise entusiasmou o candidato Ronald Reagan a tal ponto de, depois de eleito, nomeá-la embaixadora nas Nações Unidas. Kirkpatrick estudou dois problemas estratégicos vividos no mesmo ano por Washington: a Revolução Iraniana e a Revolução Sandinista na Nicarágua. Argumentava que, em ambos os casos, na tentativa de promover a democracia, os Estados Unidos do presidente Jimmy Carter “cooperaram ativamente com a substituição de autocratas moderados e simpáticos aos interesses norte-americanos [o xá do Irã e Augusto Somoza] por autocratas extremistas menos amigáveis para conosco”.
Naturalmente, os dois regimes derrubados não deixaram de sofrer suas críticas: “Eles eram dirigidos por homens que não foram eleitos, […] que chegaram a recorrer à lei marcial para deter, prender, exilar e até, segundo se diz [sic], torturar seus adversários”. Sim, mas – ponderava Kirkpatrick –, “eles ao menos eram simpáticos em relação aos Estados Unidos: enviavam seus filhos para nossas universidades, votavam conosco na ONU, apoiavam regularmente os interesses norte-americanos, mesmo em situações em que isso lhes custou alguma coisa. As embaixadas de ambos os governos receberam norte-americanos influentes. O xá e Somoza eram bem-vindos aqui, onde tinham muitos amigos”.
E, em seguida, “prisioneiro de uma versão contemporânea da ideia de progresso que traumatizou o imaginário ocidental desde o Iluminismo”, o governo Carter encorajou uma mudança de regime. Erro fatal: “Washington superestimou a diversidade política da oposição – especialmente o poder de ‘moderados’ e ‘democratas’ –, subestimou a intransigência dos radicais no movimento e a influência dos Estados Unidos sobre o governo e a oposição”. O resultado foi a teocracia dos aiatolás e os sandinistas.
Podemos ver que não é de hoje a ideia de uma “ditadura do mal menor” – pró-Ocidente e suscetível de ser um dia reformada (desde que até lá lhe seja concedida a eternidade) – e o medo de descobrir fundamentalistas (outrora comunistas) disfarçados de manifestantes democratas. Mas parece que nas últimas semanas o fantasma de Jeane Kirkpatrick andou assombrando mais Paris do que Washington. Isso porque o papel apagado dos islamitas no levante tunisiano – que incentivou a constituição de uma ampla frente social e política contra Ben Ali – tranquilizou os Estados Unidos. O WikiLeaks revelou os sentimentos do Departamento de Estado norte-americano em relação à “quase máfia” e ao “regime esclerosado” do clã no poder; a Casa Branca os abandonou à própria sorte, confiando em um levante liberal e burguês. Ela fez o mesmo no Egito.
O impasse na Líbia
Os insurgentes líbios também teriam gostado de derrubar sozinhos um poder tirânico. A fúria repressiva do regime de Kadafi, que em quarenta anos passou de ditadura anti-imperialista a despotismo pró-Ocidente, e seus discursos exaltados relacionando todos seus oponentes a “agentes da Al-Qaeda”, a “ratos que recebem dinheiro e trabalham para os serviços de informação estrangeiros”, obrigaram os manifestantes a reclamar apoio do exterior. Ratificada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (resolução nº 1.973), a intervenção de diversos Estados ocidentais, em particular Estados Unidos, Reino Unido e França, provavelmente impedirá o aniquilamento de uma revolta condenada pela pobreza de meios e forças militares. Por outro lado, também ameaça transformar os adversários do líder líbio em dependentes de potências que nunca se preocuparam com a liberdade desses povos.
A justificativa dessa exceção regional é atribuída, contudo, ao chefe líbio, Kadafi. Um movimento de rebelião desarmado e confrontado com um regime de terror não recusa o socorro de uma polícia internacional pouco recomendável e que despreza os apelos da maior parte das vítimas. Concentrado em suas adversidades, o movimento esqueceu voluntariamente que essa polícia é mais conhecida como uma força de repressão do que como uma associação solidária. E quem ainda acredita que Estados, quaisquer que sejam, consagram seus recursos e suas forças armadas para realizar missões democráticas? Não é porque Kadafi seja o pior dos ditadores ou o mais sanguinário que suas tropas foram bombardeadas, e sim porque ele era o mais frágil dos líderes contestados, sem armas nucleares e sem amizade com grandes potências suscetíveis de proteger a Líbia de um ataque militar ou defender sua causa no Conselho de Segurança.
Os levantes árabes continuam a ecoar para além da região porque muitos de seus elementos detonadores também estão presentes em outras partes do mundo: crescimento da desigualdade, desemprego elevado, manifestações reprimidas por aparelhos policiais inflados, juventude instruída sem perspectivas, burgueses parasitas que vivem como turistas em seus próprios países. Os povos árabes não solucionarão todos esses males de uma vez, mas já se rebelaram contra o jugo da fatalidade. Diante do argumento de que “não existe alternativa”, eles responderam que, “às vezes, o impossível acontece”.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).