O imposto e a nobreza carioca
Não é contra o prefeito que se volta a grita dos mais ricos. Diante das ocupações de prédios abandonados, da luta pela urbanização das favelas e de acesso dos bairros pobres aos serviços públicos, eles reagem exigindo estratificação, ordenação e hierarquização dos territórios produtivosAlexandre Mendes
O ano de 2008 irrompe indicando que o debate sobre o papel estratégico da cidade, da gestão de espaço público e das intervenções urbanas nos territórios assumirá peso decisivo no rumo das ações políticas ligadas às metrópoles brasileiras. Não somente a proximidade do pleito municipal, mas outros inúmeros fatores colaboram para conferir a esse tema uma centralidade talvez inédita.
De início, vale ressaltar a pioneira iniciativa, no âmbito federal, de criação de um ministério específico para formular políticas voltadas às cidades. O ministério das Cidades, criado em 2003, instituiu uma política nacional de regularização fundiária em áreas urbanas que, entre 2004 e 2006, desenvolveu ações em 201 municípios brasileiros, tendo iniciado o processo de regularização de 929.146 famílias possuidoras. Esse contexto favorável, em conjunto com outras atividades, tem colocado o conceito de “regularização fundiária” no centro do embate político.
É claro que, muito antes de representar um “favor” do Estado, essas novas políticas públicas são o resultado de décadas de intensa mobilização social para a produção do direito à moradia. A mesma mobilização constituinte, sempre viva e atuante, provocou uma série de mudanças legais e jurídicas, facilitando a defesa da posse socialmente útil, dos ocupantes de imóveis abandonados e dos moradores ameaçados por remoções autoritárias.
Além e atravessando a questão da moradia, destacamos a formação de novas redes sociais metropolitanas, que definem um novo espaço público de produção, trabalho e cooperação na cidade. É nesse campo que podemos inserir a atividade dos camelôs, dos trabalhadores informais e dos precários, que ocupam as ruas da cidade em busca de renda e liberdade produtiva. Aliás, as constantes ocupações de prédios abandonados por camelôs e trabalhadores precários expressam com clareza a luta por uma moradia não só digna, mas que esteja inserida no coração do espaço produtivo urbano.
Por fim, não podemos esquecer a crescente emergência cultural da periferia, que direciona inúmeros jovens, negros e pobres para novas formas de sociabilidade e vida, deslizando tanto da violência estatal, como do tráfico de drogas. Esses mesmos jovens estão cada vez mais mobilizados pelo acesso à universidade pública, através dos cursinhos populares e pré-vestibulares comunitários. O que une a periferia, os camelôs, os precários, os ocupantes e os novos produtores de cultura (os novos sujeitos) é a luta na cidade pelo “acesso” a serviços de todos os tipos (moradia, saneamento, transporte, educação, internet, crédito, assistência jurídica etc.), antes oferecidos apenas para os cidadãos “formais”.
Diante de apartamentos avaliados em R$ 15 mi, erguem faixas e gritam frases indignadas contra o “caos” da cidade
É nesse contexto, de intensa transformação dos territórios urbanos, que devemos inserir a mais recente “polêmica” criada com impulso midiático: a questão do IPTU. Desde logo, é fundamental lembrar que a “insurgência” contra a prefeitura nasceu de um movimento muito particular dos bairros ricos (digo, riquíssimos) do Rio de Janeiro. É que a Zona Sul, em sintonia com seu periódico preferido, resolveu dizer um “basta” ao que denomina de “desordem” urbana. Diante de apartamentos avaliados em R$15 milhões, numa tarde de sol no Leblon, levantaram faixas e gritaram frases indignadas contra o “caos” que domina a cidade.
O que primeiro chama a atenção é o fato da revolta ter vindo da parcela da população beneficiada com quase todos os serviços públicos e privados de qualidade disponíveis no Rio de Janeiro. Mesmo tendo acesso aos melhores transportes públicos, a um asfaltamento de primeira qualidade, a serviços de lixo e esgoto ininterruptos, a áreas de lazer lindíssimas e a todo o tipo de segurança pública e privada, alguns moradores da Zona Sul querem simplesmente parar de pagar o imposto municipal.
Talvez com saudades da nobreza imperial, os mais abastados do Brasil descobriram, crê-se que a partir da empresarial vitória na queda da CPMF, que podem ser ultraprivilegiados sem, no entanto, pagar um tostão por isso. As mesmas pessoas que ora se vestem de preto para apoiar os candidatos conservadores à presidência, ora se vestem de branco exigindo um maior rigor ao historicamente racista sistema penal brasileiro, passaram a utilizar adesivos escritos em inglês, “NO IPTU”, em seus carros blindados.
A despeito do caráter “quase excêntrico” do movimento, existe um sentido preocupante em suas reivindicações, facilmente percebido na leitura dos slogans e manchetes de jornal. Trata-se da antiga utopia higienista urbana, insistentemente relembrada pela elite carioca como a única “salvação” para a cidade .
A segunda ilusão refere-se à ilusória participação, no movimento, de algumas associações de bairros da periferia
Assim, metáforas médicas não tardam em aparecer (“cidade doente”, “tecido social esgarçado”, “câncer social”, “degeneração urbana”, “cidade encardida” etc.), aliadas a uma nostalgia, meio bossa-nova, de um Rio esplendoroso, lindo, poético e belo que se “perdeu” em razão da desordem e do descaso.
A solução seria, então, adotar políticas rígidas de ordenação e limpeza urbana, ações de tolerância zero (ou intolerância dez), remoção da população favelada, recolhimento dos adolescentes negros, prisão dos camelôs, filmagem das áreas de prostituição, retirada dos mendigos e melhoramento do já excelente equipamento urbano fornecido à Zona Sul.
Duas questões, porém, não podem nos enganar: a primeira, é que a insurgência não é estruturalmente contra o prefeito César Maia, mas sim uma exigência de radicalização das políticas de ordenação autoritária do espaço urbano já existentes no município. É só perceber que os partidos conservadores continuam sendo os preferidos dos moradores indignados. A segunda diz respeito à ilusória participação, no movimento, de algumas associações de bairros pobres da periferia. A posição dessas entidades foi em todo o momento coadjuvante, sem uma divulgação substancial pela mídia, sendo reduzidas a um papel apenas conveniente na divulgação de uma falsa “ampla representatividade social”.
Parece óbvio que o levante sulista busca exatamente se contrapor às redes sociais e produtivas mobilizadas pela população pobre da cidade. Em oposição aos esforços de democratização do espaço público, expressados nas ocupações de prédios abandonados, no trabalho metropolitano informal, na luta pela urbanização das favelas, na busca da regularização fundiária e na tentativa de acesso dos bairros pobres aos serviços públicos, surge um movimento claro pelo acirramento da estratificação, ordenação e hierarquização dos territórios produtivos cariocas.
A radicalização da democracia exige outro projeto. Em favor dele vale a pena mobilizar-se — ainda que sem apoio da mídia
Percebe-se uma conservadora coerência em ações políticas que abrangem, por exemplo, a proibição municipal de ocupação das escolas pelos pré-vestibulares comunitários, o combate violento aos camelôs e a política de remoções de comunidades tradicionais e/ou faveladas. Em todos os casos, o objetivo é transformar o espaço público-comum da cidade em um território estriado, previsível e autoritário. Contra a constituição do comum , que cria uma rede de cooperação entre os novos sujeitos da metrópole, algumas pessoas da Zona Sul lançam a campanha de “ordem” e limpeza, cujo símbolo máximo é o trator demolidor. O objetivo é somente acirrar uma tendência já encontrada em algumas intervenções municipais. Nada de novo, portanto.
A radicalização da democracia na cidade exige um outro projeto, uma ação política que afirme o sentido constituinte das ocupações urbanas, da mobilização produtiva dos territórios, da expressão cultural das periferias, do acesso às universidades, aos serviços públicos e tecnologias contemporâneas.
Na pauta municipal, é preciso definir uma série de iniciativas, como a utilização do IPTU progressivo para as propriedades abandonadas, desapropriação para fins de moradia, regularização fundiária das favelas e loteamentos, abertura das escolas municipais à cidade e difusão dos serviços públicos nos bairros pobres. Em oposição a uma visão meramente privatista e contratual do IPTU (“quanto mais pago, mais devo receber em troca”), torna-se urgente compreender o caráter redistributivo do imposto. Nesse sentido, nada mais justo que utilizar a ar