O internacionalismo no tempo da Comuna
Muitos historiadores analisam a Comuna de Paris como um levante patriótico que teve origem no confisco dos canhões da Guarda Nacional, em março de 1871. Os fundamentos intelectuais da insurreição, porém, parecem mais antigos: desde 1868, nos clubes políticos e nas reuniões populares, o sonho da “República Universal”Kristin Ross
Em abril de 1871, no auge da Comuna de Paris, 7 mil operários londrinos organizaram uma manifestação de solidariedade para com seus camaradas parisienses, marchando do que a imprensa britânica chamava de “nossa Belleville” – o bairro de Clerkenwell Green – até o Hyde Park. Acompanhados de uma fanfarra, eles levantavam bandeiras com os slogans “Viva a Comuna!” e “Vida longa à República Universal!”.
Na mesma semana, no anfiteatro da Escola de Medicina da Sorbonne, abandonada por seus professores – todos tinham fugido para Versalhes1 –, os artistas e artesãos parisienses (“todas as inteligências artísticas”) escutavam Eugène Pottier ler o manifesto da Federação dos Artistas de Paris, que terminava com a seguinte frase: “O comitê vai contribuir para a nossa regeneração, a inauguração do luxo comunal e os esplendores do futuro, e para a República Universal”.
“Comuna” e “República Universal” representam dois elementos fundamentais do imaginário político da Comuna de Paris, duas expressões cuja carga afetiva vai além de qualquer conteúdo semântico preciso. Mas a repetição desses termos ao longo dos últimos anos do Império, da tomada da capital e da própria insurreição exprimia o desejo dos participantes da Comuna por uma vida social organizada segundo os princípios da participação e da descentralização.
A maioria dos historiadores situa o início da Comuna em 18 de março de 1871, com o que Karl Marx chamou de “tentativa de roubo” de Adolphe Thiers,2 sua decisão de confiscar os canhões da Guarda Nacional e as reações que isso provocou. Nesses relatos, a insurreição aparece como um levante espontâneo, ligado a um crescimento de “patriotismo extraviado”3 – como o próprio Thiers disse – em razão das circunstâncias particulares da Guerra Franco-Prussiana.
No entanto, se começamos não por essa reação espontânea, mas pelas reuniões de trabalhadores do fim do Império, uma imagem completamente diferente aparece. Vemos certas ideias progressivamente ganharem importância. As reuniões dos clubes políticos do norte de Paris, os mais revolucionários, começavam e se encerravam aos gritos de “Viva a Comuna!”, e as expressões “República Universal” e “República dos Trabalhadores” eram empregadas indistintamente. Esses encontros criaram e desenvolveram a ideia de uma comuna social: o desejo de substituir um governo de traidores e incompetentes pela cooperação direta de todas as energias e inteligências.
Paris vivia de sua própria vida
O termo “Comuna” exprimia a preocupação da escala de ação, o desejo de autonomia local, a autossuficiência de unidades sociais pequenas e humanas o bastante para que cada um se sentisse diretamente ligado aos detalhes da vida cotidiana. A noção de “República Universal” representava, por sua vez, o horizonte internacionalista. Juntas, as duas palavras de ordem desenhavam os contornos de um imaginário poderosamente não nacional. Assim, por “luxo comunal”, os artistas e artesãos da Comuna pareciam entender uma espécie de “beleza pública”: a melhoria dos espaços comuns em todas as cidades e vilas, o direito de cada um viver e trabalhar em um ambiente agradável. Ao criar uma arte pública, uma arte vivida, no nível de municipalidades autônomas, o “luxo comunal” devia trabalhar contra o próprio conceito de espaço monumental e sua lógica centralizadora (nacionalista). Esse tipo de programa não deveria nos espantar vindo daqueles que derrubaram a coluna da Praça Vendôme. Mas é preciso evitar imaginar que o termo pudesse implicar um fechamento no interior dos contornos estreitos da municipalidade. A Federação dos Artistas considerava que ele se aplicava ao mesmo tempo para o luxo comunal e para a República Universal.
Como um de seus participantes mais célebres, o pintor Gustave Courbet, escreveu para sua mãe, sobre a Comuna, “Paris renunciou a ser a capital da França”.4 A Paris de então não queria ser um Estado, mas uma entidade autônoma no seio de uma federação internacional dos povos. A escala que privilegiava o imaginário comunal era ao mesmo tempo mais limitada e ampla que a nacional. A expressão “República Universal” retomava um conjunto de desejos, identificações e práticas que não se deixavam definir pelo território do Estado ou se circunscrever pela nação. Ela distinguia bem claramente aqueles que a empregavam dos republicanos parlamentares ou liberais: estes últimos acreditavam na necessidade de uma autoridade estatal forte e centralizada, suposta garantia de ordem social.
Durante os meses do cerco, que precederam a Comuna, Paris, segundo as palavras do participante da comuna Arthur Arnould, “vivia de sua própria vida, só existia por sua vontade individual. […] Paris tinha […] aprendido o desprezo absoluto das duas únicas formas governamentais que já tinham existido até então na presença de nosso país: a monarquia e a República oligárquica ou burguesa”.5 A República Universal significava, por oposição, o desmantelamento da burocracia imperial, de seu exército profissional e de sua polícia em primeiro lugar. “Não basta emancipar cada nação em particular da tutela dos reis”, escrevia o geógrafo anarquista Elisée Reclus, “é preciso libertá-la da supremacia das outras nações, é preciso abolir esses limites, essas fronteiras que fazem de homens simpáticos inimigos!”6
Nos dias que se seguiram à proclamação da Comuna, todos os estrangeiros foram admitidos em suas fileiras, pois “a bandeira da Comuna é a da República Universal”.7 Mas a expressão não nasceu nesse momento; ela retoma, na realidade, um breve episódio de internacionalismo durante a Revolução Francesa. Seu inventor, Anacharsis Cloots, prussiano de origem, que se apresentava como “o orador do gênero humano”, apoiou a revolução ao lado de Thomas Paine, sobre bases internacionalistas, antes de ser guilhotinado. Mas, longe de significar um retorno aos princípios da Revolução Burguesa de 1789, a palavra de ordem da República Universal, lançada pelos participantes da Comuna, marca a ruptura com sua herança em favor de um verdadeiro internacionalismo dos trabalhadores.
Pensemos, por exemplo, nos hábitos de trabalho e na cultura dos artesãos de arte, que participaram em tão grande número do movimento de março de 1871, como notou mais tarde Prosper-Olivier Lissagaray, o primeiro e mais influente dos historiadores da Comuna. Eles eram internacionalistas antes mesmo de o termo existir. Hoje em dia lembramos frequentemente de Pottier como o autor da Internacional, escrita em junho de 1871, no meio das execuções brutais dos revolucionários vencidos; na véspera da insurreição, ele dirigia um grande ateliê onde se confeccionavam cortinas, tapeçarias, rendas, pintura sobre estofados e sobre cerâmica. Artesãos qualificados de diversas origens e nacionalidades trabalhavam juntos em tarefas complementares; seu internacionalismo se explica em parte pela mobilidade que caracterizava esse tipo de profissão: eles iam livremente de uma região a outra e mesmo de um país a outro. Como muitos jovens de hoje em dia, que a precariedade econômica obriga a uma existência nômade, os homens e mulheres artesãos do meio do século XIX passavam a maior parte de seu tempo não a trabalhar, mas a procurar trabalho.
Quando a França declarou guerra à Prússia, em 19 de julho de 1870, os funcionários do ateliê de Pottier estavam entre os signatários do manifesto da seção parisiense da Internacional, ao lado de seus camaradas da Alemanha e da Espanha, contra o que Pottier chamou em um poema de “regime celular da nacionalidade”.8 Fato inédito em uma formação socialista, a mensagem era resolutamente antinacionalista: “Mais uma vez, sob pretexto de equilíbrio europeu, de honra nacional, ambições políticas ameaçam a paz do mundo. Trabalhadores franceses, alemães, espanhóis, que nossas vozes se unam num grito de reprovação contra a guerra! […] A guerra […] só pode ser, aos olhos dos trabalhadores, um absurdo criminoso”.9
Mas talvez tenha sido a direção particular tomada então pelas mulheres e pelo feminismo que dê o melhor testemunho dessa vontade de ultrapassar o quadro político do Estado moderno. Louise Michel, Paule Minck, Elisabeth Dmitrieff e outras não procuravam a integração ao Estado ou sua proteção; elas não exigiam, como as mulheres tinham feito em 1848, o direito de voto ou nenhum outro direito de tipo parlamentar. Elas praticavam uma forma de liberdade no desprezo total ao Estado. Enquanto participantes da República Universal, elas se mostravam indiferentes à política republicana. E, no entanto, Dmitrieff e sete operárias da costura criaram o que se tornou a maior e mais eficiente das organizações da Comuna: a União das Mulheres. Seus comitês se reuniam cotidianamente em quase todos os bairros de Paris, fornecendo trabalho remunerado às mulheres, ao mesmo tempo que respondiam às urgências das situações de combate.
Nada era mais distante da República Universal, encarada como associação voluntária de todas as iniciativas locais ou “livre confederação de coletividades autônomas”, do que o universalismo republicano então a ponto de triunfar. A República Universal imaginada, e em certa medida vivida durante a Comuna, não era apenas muito diferente da República que acabou surgindo, mas também foi concebida em oposição à República Francesa timidamente criada em setembro de 1870 por Thiers e ainda mais oposta àquela que se firmou sobre os cadáveres dos participantes da Comuna. Esse massacre foi o ato fundador da Terceira República, uma república que se consolidou enquanto a burguesia industrial e os grandes fazendeiros da província firmavam sua aliança histórica, fundindo pela primeira vez a modernização capitalista ao Estado republicano.
Na França, o massacre marcou o início de uma sequência profundamente conservadora sobre a questão da identidade nacional. Essa sequência deveria se prolongar ao menos até Vichy, enquanto em toda a Europa as nações entravam na competição colonial e colocavam em ação novas formas de massacre em larga escala necessárias para o controle e a manutenção da ordem nos impérios.
A partir da anistia dos participantes da Comuna, votada pelo Parlamento em 1880, assistimos a tentativas de integrar a Comuna à ficção republicana francesa, assimilando-a a um movimento patriótico ou a um combate pelas liberdades republicanas – em outras palavras, uma tentativa reformista de democratizar o Estado burguês, em vez de destruí-lo. Basta, porém, ler as memórias dos sobreviventes para ver a que ponto eles mesmos se defendiam violentamente de ter agido para salvar essa República: “A República dos nossos sonhos não era com certeza esta que temos. Queríamos que fosse democrática e social, e não plutocrática”, escreve um deles.10 Seu camarada Gustave Lefrançais se mostra ainda mais radical: “O proletariado só vai conseguir se emancipar realmente se conseguir se livrar da República, última forma, e não a menos maléfica, dos governos autoritários”.11
Kristin Ross é professora de literatura comparada na Universidade de Nova York. Autora do livro L´Imaginaire de la Comuna, La Fabrique, Paris, 2015.