O investimento em transporte público que agrava a desigualdade
O “Bus rapid transit” (BRT) do Rio de Janeiro é um exemplo claro de como o financiamento de projetos de transporte público não tem o bem-estar da população pobre em mente — mesmo quando executado legalmente
Afirmar que o investimento em transporte público vai contra os interesses dos trabalhadores de baixa renda é contra intuitivo. Espera-se que quanto mais alta a renda de uma pessoa, menor a probabilidade que essa pessoa dependa de ônibus para se locomover. Portanto, se dinheiro for gasto para fazer melhorias neste departamento, naturalmente esperamos que os interesses e o bem-estar dos usuários seja a prioridade. E, por conta dessa expectativa, sempre que ônibus são vandalizados durante um protesto, muitos enxergam essa destruição como um símbolo de ingratidão, ou um tiro no pé. Porém, será que o investimento em transporte público pode, na prática, trazer desvantagens para a população trabalhadora de menor renda?
Corrupção escancarada — propinas e desvios em grandes projetos de infraestrutura — não é a única coisa que cria desvantagens àqueles que não têm dinheiro para ir para o trabalho de carro ou Uber. No Brasil, o “Bus rapid transit” (BRT) do Rio de Janeiro é um exemplo claro de como o financiamento de projetos de transporte público não tem o bem-estar da população pobre em mente — mesmo quando executado legalmente.
O BRT do Rio foi implementado em 2012 com a promessa de conforto, velocidade, eficácia, sustentabilidade, redução de congestionamento e poluição. Também buscou preparar a cidade para receber eventos esportivos globais em 2014 e 2016, além de aproveitar o influxo de investimentos. Em 2020, no entanto, o secretário municipal de obras que supervisionava a implantação desse projeto foi preso por receber um milhão de reais em propina.
Agora, quase uma década depois, as linhas de ônibus lotam, são ineficazes e mal administradas — problemas que só foram exacerbados pela pandemia. “Segundo o BRT Rio, foi registrada por causa da pandemia de covid-19, uma queda de até 75% no número de passageiros”, resultando em perda de receita de 200 milhões de reais. Em fevereiro deste ano, os motoristas de ônibus de BRT entraram em greve porque seus salários de janeiro estavam incompletos e, após dois dias de serviço interditado, um acordo foi alcançado.
No final de 2012, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) publicou um relatório chamado “Financiamento a BRTs: a experiência internacional do BNDES”. Esse relatório aponta que o Brasil é o maior produtor de ônibus da América Latina e o terceiro maior do mundo. Enquanto isso, o BNDES “atua como uma agência de crédito à exportação, estruturando as operações e provendo funding para financiar as exportações de bens brasileiros de alto valor agregado”. Portanto, o principal motivo para investir nesta linha de ônibus rápidos no Rio de Janeiro é consolidar o Brasil como um fornecedor global de ônibus e peças.
Embora o BRT não tenha saído exatamente como prometido para os usuários de ônibus da capital carioca, os números da receita das empresas multinacionais brasileiras que construíram os ônibus deram certo. Para a Marcopolo SA, a maior construtora de carrocerias da América Latina e a terceira maior do planeta, “as exportações […] atingiram receita de R$ 1,3 bilhão em 2012, aumento de 50,3% sobre os ganhos do ano anterior” — no mesmo ano que o BRT começou a funcionar. A implantação do BRT leva ao aumento das exportações porque “a aquisição de veículos” por “operadores privados é fundamental”, segundo o relatório do BNDES. Esses incentivos à venda privada supostamente reduzem o custo dos ônibus e garantem sua manutenção.
Seria oportuno destacar que a maior parte do dinheiro que o BNDES tem para investir vem do Tesouro Nacional. A Marcopolo S.A. pertence principalmente a uma família brasileira, e pelo menos 20% de uma de suas classes de ações pertence a empresas de investimento com sede nos Estados Unidos e no Reino Unido.[1] Ou seja, parte da riqueza coletiva da população brasileira é canalizada, por meio do seguro de crédito à exportação do banco nacional de desenvolvimento, para a riqueza pessoal de meia dúzia de homens com o mesmo sobrenome e estrangeiros que buscam lucrar com sua renda extra de dólares e libras.
Na prática, esse investimento altamente lucrativo no transporte público do Rio de Janeiro criou uma dinâmica espacial em que o aumento da “concentração de empregos para aqueles com ensino superior” levou a um “impacto na desigualdade de renda”, segundo uma avaliação da PUC-RJ publicada este ano. Não só a implantação da linha de ônibus teve como objetivo melhorar a experiência dos veículos particulares, mas também reconheceu que as pessoas sem ensino superior têm menos escolha em torno do “deslocamento casa-trabalho”. Para elas, o tempo de viagem não diminuiu e a satisfação do usuário não melhorou.
Essencialmente, a expansão da infraestrutura de transporte conectou novas áreas ao centro da cidade, expandindo também as áreas residenciais com acessibilidade de baixo custo. Isso levou a mais segregação e desigualdade porque a classe média passou a ter mais opções de lugares acessíveis para morar e maior concentração de empregos bem remunerados. Ao mesmo tempo, outro segmento da população veio a ter menos oportunidades de participar dessa reorganização espacial, que o relatório chamou de “redução na probabilidade de escolha”. À medida que a classe média começou a ganhar mais dinheiro e a viver em lugares mais agradáveis, a classe baixa ficou mais segregada e com menos oportunidades de emprego.
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Os resultados deste relatório acadêmico, sobre a eficácia dos projetos de mobilidade financiados pelo BNDES entre 2009 e 2018, “evidenciam a dinâmica entre segregação espacial e desigualdade de renda” sem atribuí-la à corrupção e má gestão, mas sim à natureza intrínseca do projeto. Conclui afirmando que “os ganhos de conectividade só ocorrem quando de fato há um sistema que permite acesso a todas as áreas da cidade”, o que, evidentemente, não foi como este plano de BRT foi idealizado.
Contra intuitivamente, os investimentos do governo em sistemas eficientes de transporte público podem estar exacerbando a desigualdade devido a seus laços diretos com o sistema capitalista global. Os riscos de um projeto governamental são maiores quando afetam a satisfação de CEOs e investidores estrangeiros, e não a satisfação dos cidadãos que mais precisam ter acesso ao transporte – direito previsto na Constituição. Em outras palavras, a utilidade desse serviço é avaliada por sua capacidade de satisfazer a classe dominante.
Ao olharmos para a conjuntura dessa perspectiva, a frustração que a população expressa quando protesta e vandaliza ônibus começa a fazer sentido. Este não é o sistema de transporte que essas pessoas desejam, porque ele é executado por um sistema econômico que não tem os melhores interesses delas em mente. Devemos nos perguntar: se o bem-estar social e a utilidade de um serviço estão aumentando apenas para um segmento da sociedade e diminuindo para outro, ainda podemos descrevê-lo como útil por promover o bem-estar?
[1] T. Rowe Price International Ltd. 63,807,742 Equity, 10.5%. Westwood Global Investments LLC. 30,312,361 Equity, 5.01%. The Vanguard Group, Inc. 17,995,552 Equity, 2.97%. Dimensional Fund Advisors LP. 10,412,299 Equity, 1.72%.
*As fotos utilizadas para ilustrar esse artigo fazem parte da série fotográfica “Protesto, pandemia, aglomeração de vidas, o vírus do sistema que nos vandaliza”, do fotógrafo Fábio Teixeira.
Mirna Wabi-sabi é escritora, teórica política, professora e tradutora. Ela é editora-chefe da Plataforma9 e editora do site da Gods and Radicals.