O lado jardim da Rússia
Ilha de propriedade privada sob o comunismo, refúgio da agricultura de subsistência na época da coletivização, local de todas as criatividades arquitetônicas e de evasão intelectual sob Brejnev, a datcha continua sendo a face oculta da Rússia – uma zona de direito consuetudinário na qual a nova lei, em vigor desde 1º de janeiro, pretende pôr ordem
Aproximando-se do aeroporto de Moscou-Cheremetyevo, o avião sobrevoa a pequena cidade de Putilkovo. Os passageiros que olham pela janela veem rarear as florestas e desfilar conjuntos de mnogoetajki (prédios residenciais), townhouses (empreendimentos de luxo) de Sabourovo Park, alguns campos cultivados e, aqui e ali, extensões de hortas coletivas com suas casinhas mal e mal construídas. À medida que o avião perde altitude, nota-se que muitas dessas propriedades de subúrbio estão em péssimo estado: jardins invadidos pelo mato, arbustos sobre os tetos, obras abandonadas. Essas construções heteróclitas, erguidas em terrenos de tamanho padronizado (600 m2), agrupadas em clareiras ou à margem de plantações, longe dos centros urbanos, constituem em sua extraordinária diversidade aquilo que os russos chamam de datcha.
A datcha está em crise. Segundo Dmitri Taganov, chefe do departamento de análise da Inkom-Immobilier, cerca de 35% dos terrenos individuais da região de Moscou estão abandonados. Segundo outro estudo, publicado em 2013 pelo Centro de Opinião Pública, mais ou menos 38% dos russos declaram possuir uma residência secundária, mas apenas cerca de dois terços a usam “regularmente” como local de descanso nos fins de semana, feriados e férias de verão. Por que esse desdém relativo? Por um lado, a datcha enfrenta a concorrência de novas ofertas de lazer. As redes sociais, as séries televisivas e os jogos pela internet se encarregam de distrair, principalmente os mais pobres, enquanto as estadias all inclusive na Turquia, na Tailândia ou no Mar Vermelho, além dos tesouros culturais europeus, propõem às classes médias novos horizontes. De resto, o ritmo do trabalho capitalista e a fragmentação dos períodos de férias não combinam com as exigências da horticultura, que constitui um dos principais atrativos da datcha. Além disso, as prateleiras dos supermercados agora transbordam de frutas e legumes em todas as estações.

“Dói fundo soltá-la”
Desde 2008, a renda média dos russos se estagnou. O orçamento das famílias se divide entre tentações cada vez mais numerosas, sem contar as despesas inevitáveis (aluguel, energia, taxas municipais) que tiveram aumentos mais ou menos vertiginosos. Imposto predial e serviços de ligação e fornecimento de água e luz fazem da casa de campo, outrora praticamente gratuita, um luxo: ter uma cabaninha custa um mínimo de 30 mil rublos por ano (cerca de R$ 1,8 mil), uma despesa suntuosa para as famílias modestas, difícil de compensar no “país dos tomates sempre verdes”, como dizem os russos. E nem se fala nas inevitáveis obras de reparação e manutenção. Todos esses fatores levaram, nos últimos anos, inúmeros proprietários a pôr à venda sua residência de verão. “A datcha é uma mala sem alça”, ouve-se dizer com frequência. “Dói fundo soltá-la, mas não temos mais força para carregá-la.”
As agências imobiliárias multiplicam ofertas que nem sempre encontram interessados. “A oferta ultrapassa em muito a demanda, que tende a zero em alguns segmentos”, explica Irina Dobrokhotova, da agência Best. O setor dos casas de campo de alto padrão viu o número de transações despencar nos últimos dez anos (–60%), ao passo que os bens de categorias mais modestas perderam 25%. “De 33 mil imóveis à venda nas imediações de Moscou”, explica a agência imobiliária Cian, “15% têm defeitos inaceitáveis e 80% estão degradados ou sobreavaliados. Ao fim, somente 5% podem esperar encontrar um comprador.”
Ninguém sabe ao certo quantos imóveis de férias a Rússia possui; as estimativas variam do pouco ao muito. O país contava com cerca de 16 milhões de hortas particulares, segundo Ludmilla Buriakova, presidente da União dos Horticultores da Rússia.1 Se incluirmos as datchas mais antigas e as casas de campo construídas sem permissão nos anos 1990, o número alcançaria entre 32 milhões e 35 milhões, no dizer do professor Ivan Starikov, pesquisador do Instituto de Economia da Academia de Ciências. Segundo outros especialistas, existem perto de 15 milhões de construções não constantes do cadastro, grande parte delas abandonada ou inacabada.
Uma nova lei, em vigor desde 1º de janeiro de 2019, pretende pôr um pouco de ordem nessa tranquila anarquia. Uma vez registrados, os lotes baldios poderiam ser tomados e recolocados no mercado, dando-se prioridade aos proprietários contíguos que quisessem aumentar seu terreno. Pretende-se também acabar com os arranjos informais e as coletas de dinheiro líquido entre vizinhos, obrigando-os a abrir uma conta bancária e a apresentar um livro de receitas e despesas verificável.
Mal promulgada, a lei atraiu críticas de todos os lados. Elas se voltam, primeiro, contra o desaparecimento, no direito, do termo usual datcha, substituído por “jardins” (ou “hortas”) individuais. É uma palavra tão carregada de sentido e emoção, tão intrinsecamente russa, que figura nos dicionários das línguas. Etimologicamente, deriva da raiz dat, que significa “dom”, “presente”. Sua origem remonta ao século XVIII, quando o czar Pedro I “dava” aos bons servidores do Estado propriedades situadas perto das principais cidades ou nas províncias recém-adquiridas. Essa abordagem meritocrática da gerência das terras do império, conjugada com a tradição igualitária que dividia as heranças em partes iguais entre os filhos, teria emprestado sua forma particular à aristocracia russa, descrita em detalhe pelo ensaísta francês Anatole Leroy-Beaulieu (1842-1912).
O fenômeno da datcha como local de veraneio dos cidadãos surgiu logo após a fase de urbanização dos anos 1860. A abolição da servidão assinalou o declínio dos proprietários de terras, obrigados a ceder ou a fragmentar seus domínios. No início do século passado, a vida na datcha inspirou romancistas e dramaturgos russos. Máximo Gorki escreveu uma peça de teatro, Os veranistas (1904), adaptada várias vezes para o cinema. Metade dos contos de Anton Tchekhov tem por cenário a datcha, que serve também de pano de fundo para as peripécias do príncipe Míchkin, imaginado por Fiódor Dostoiévski em O idiota (1869).
A Revolução de Outubro pôs abaixo o antigo regime, a Igreja, a propriedade privada, os resquícios da servidão… mas não a datcha. Desde meados dos anos 1920, retomando a tradição czarista, altos funcionários, artistas favoritos do Partido, pesquisadores e acadêmicos ganharam datchas “de serviço”. Tratava-se o mais das vezes de bens requisitados, cujos proprietários haviam fugido para o estrangeiro. Cooperativas de horticultura foram organizadas pelos principais teatros, a União dos Escritores e diversos institutos de pesquisa, para repouso de seu pessoal. A datcha permitia, é certo, recompensar os servidores do Estado, mas também controlá-los e até puni-los, pois mandá-los para longe constituía o primeiro sinal de que haviam caído em desgraça. Na era stalinista, as vantagens concedidas aos “salvadores da pátria” – marechais, pesquisadores do programa atômico ou grandes capitães de indústria – não apresentavam problema ideológico, mesmo porque as propriedades não eram privadas, mas alojamentos funcionais.
Após a morte de Josef Stalin, em 1953, o caráter semiaristocrático das datchas embaraçou os dirigentes. Eles pensaram em abolir essa prática contrária ao ideal igualitário do socialismo. Em uma União Soviética que apostava todas as fichas na industrialização, o êxodo rural chegou ao ponto máximo; a população das cidades explodiu com o afluxo de interioranos para os centros industriais e a crise de moradia se agravou: a norma oficial de 6 metros quadrados por habitante só existia no papel. Por outro lado, o cultivo em marcha forçada de novas terras deu resultados desastrosos: a falta de frutas, legumes, carne e leite persistia. Quando se pensava em relegar ao esquecimento o próprio conceito de datcha, ela se revelou uma solução multiforme para essas crises persistentes. Grandes empresas solicitaram autorização para oferecer a seus funcionários lotes destinados à horticultura e ao repouso estival. As autoridades propuseram plantas padronizadas de cabanas de verão com 25 metros quadrados, mais varanda. A instalação de aquecimento, porém, foi proibida, receando-se que essas “semipropriedades” privadas acabassem sendo ocupadas o ano todo e instilassem nos costumes dos proletários uma “mentalidade de dono”. Em contrapartida, encorajou-se a horticultura, para, ao mesmo tempo, diminuir a penúria de produtos alimentícios e oferecer aos veranistas uma atividade física sadia. Um decreto estabeleceu a superfície padrão por casa em 600 metros quadrados. Autorizou-se mais um andar, depois um celeiro, depois um sótão… Por experiências sucessivas, no respeito aos princípios socialistas, o secretário-geral Nikita Kruchev (1953-1964) democratizou a datcha.
Os empregados se faziam de castelãos
Cada progresso social, cada modernização do período soviético contribuiu, de uma maneira ou de outra, para o desenvolvimento do fenômeno. Nos anos 1950 e 1960, a evolução da rede ferroviária, depois dos ônibus, colocou ao alcance dos cidadãos as zonas próximas das cidades. A semana de cinco dias de trabalho, decretada em 1967, permitiu aos empregados consagrar mais tempo à sua casa de campo. Enfim, a difusão progressiva do automóvel, a partir dos anos 1970, facilitou o transporte de material e, portanto, a administração das residências secundárias.
“Os próprios feriados soviéticos parecem dançar ao ritmo da datcha”, explica Mikhail Larionov, funcionário de um instituto de estatística. “No dia 22 de abril [aniversário de Lenin], o gelo é apenas uma lembrança. Vai-se à datcha para lhe pôr um pouco de ordem, limpá-la e arejá-la, preparar as ferramentas do jardim. O 1º de Maio vem bem a propósito para a fresagem e a limpeza dos canais; o 9 de Maio [vitória sobre o nazismo] é ideal para plantar batatas e semear rabanetes, tomates, pepinos e outros vegetais. À medida que se aproximam os curtíssimos meses de verão, observa-se o crescimento, fim de semana após fim de semana, até a hora da colheita, durante algumas semanas de férias, dos frutos e legumes frescos. Finalmente, o 7 de Novembro [Revolução de Outubro] marca o encerramento oficial da estação. Levam-se para a cidade as conservas preparadas na datcha.”
A vida tem suas exigências, que acabam por desgastar a ideologia. Sob Brejnev (1964-1982), o tempo das grandes experiências sociais se encerrou e o regime socialista não teve mais projeto a propor à sua população. Começou o que os russos chamam ainda hoje, às vezes com nostalgia, de “período de estagnação”. Se a propriedade privada continuava proibida em teoria, as cabanas erigidas penosamente pelos camaradas durante seu tempo livre não tinham mais nada de coletivo. Em suas propriedades, ainda formalmente nas mãos do Estado, mas cujo usufruto se transmitia por herança, os empregados se faziam de castelãos, cuidando de seus frutos e legumes com plena autonomia. Nas imediações, colhiam bagas e cogumelos, restaurando o vínculo com a floresta, perdido em virtude da rápida urbanização do país.
Foi a idade de ouro da datcha, que muitos russos ainda lembram com saudade. A sociedade socialista decaiu, a horta individual substituiu o projeto coletivo. A inventividade dos proletários para ter seu cantinho não conhecia limites. Chega de cabanas padronizadas, modelo Gosplan! Um traz madeira, outro tijolos, outro ainda consegue, não se sabe como, transportar para seu terreno um vagão de metrô que equipou como uma motor home… As “datchas de general”, construídas pelos convocados ao serviço militar, brotaram por toda parte e serviram de moeda de troca entre os funcionários. Foi a época de todos os tráficos, de todas as falcatruas; a corrupção e o mercado negro assumiam as formas mais inventivas, da garrafa-moeda de vodca paralela até a troca direta de bens e serviços. Um se valia de seus conhecimentos de arquitetura para construir um terceiro andar, outro instalava estufas e se lançava na horticultura, um terceiro criava pombos-correio… E havia quem escrevesse ou se entregasse ao alcoolismo – ou as duas coisas.
Como esclarece o historiador Stephen Lovell, essa instituição forneceu uma importante fonte de autorrealização a duas gerações de russos empenhados em construir e administrar a datcha de família.2 Esta é, enfim, uma das conquistas históricas do socialismo soviético, tanto quanto a educação universal gratuita e as viagens espaciais.
É também um dos raros sucessos que, herdados da edificação do socialismo, resistiram à Batalha de Berezina dos anos pós-perestroika. Agora que todos os valores materiais e morais parecem destinados a desaparecer sob os escombros da União Soviética, a datcha serve uma vez mais de refúgio seguro. A economia paralela desenvolve-se lá segundo um modo primitivo ao qual todos se acomodam, e a economia de subsistência retoma seus direitos. O camelô se transforma em pedreiro ou carpinteiro; a babuchka (avó), em horticultora que vende clandestinamente seus produtos perto das estações; os “novos russos” empregam toda essa gente miúda na manutenção e vigilância de suas mansões, que brotam como cogumelos.
Ademais, vários programas de televisão conquistaram popularidade graças a esse tema. A série Datchniki (Os veranistas, 2017) põe em cena várias famílias estereotipadas de cidadãos que se tornam vizinhos durante um verão na datcha, em várias regiões do país. Conflito de gerações, coabitação de classes sociais, confronto de modos de vida e lazer, todos os clichês que envolvem a sociedade russa de hoje aparecem em um espetáculo amável, que imita o estilo documentário.
Residência luxuosa ou cabana de madeira
No registro igualmente popular dos reality shows, o programa semanal Datchny otvet (A datcha responde) propõe desde 2008 aos proprietários a reforma de sua residência secundária. O apresentador começa apontando todos os defeitos da casa – “escura”, “mal dividida”, de estilo “ultrapassado”. Depois, um designer de interiores entra em cena. Com muitas claraboias, espaços de meditação e vigas aparentes, o estilista transforma o casebre numa obra-prima de ecletismo pós-moderno. Por fim, a família volta e se extasia com a mudança do cenário.
Aquela que suportou todas as vicissitudes do socialismo soviético ajudará a superar as do capitalismo russo? “É um indício da inquietude econômica da população. Se, ao redor de Moscou, grande parte dos terrenos está coberta de mato e de canteiros de flores, na região vizinha, o oblast de Vladimir, vemos que metade da superfície tem plantações de batata, legumes e plantas perenes”, observa o antropólogo Mikhail Alexeevski, autor de um estudo sobre a alimentação na datcha.
Residência luxuosa com sauna e piscina interna ou cabana de madeira sombreada de árvores frutíferas, uma só palavra continua a designar essas diferentes realidades. A residência secundária nas imediações dos subúrbios ainda é o ornamento necessário da ascensão social dos mais ricos. Para os outros, a cabana de férias se torna tábua de salvação, acrescentando uma página à história já longa e atormentada da datcha.
Christophe Trontin é jornalista.
1 “Big datcha. Un demi-trillion de roubles pourrait être collecté des propriétaires de datchas” [Big datcha. Meio trilhão de rublos poderiam ser coletados dos proprietários de datchas], Kommersant, Moscou, 22 ago. 2016.
2 Stephen Lovell, Summerfolk. A History of the Datcha, 1710-2000 [Veranistas. Uma história da datcha, 1710-2000], Cornell University Press, Ithaca-Londres, 2003.