O legado do mensalão
O advogado Rubens Naves, conselheiro e fundador da Transparência Brasil, ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP, diz que a condenação do mensalão reflete a crescente intolerância com a corrupção. Para ele, o julgamento não demoniza o PT, mas coloca um desafio aos partidosLuís Brasilino
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Os resultados, até agora, do julgamento do mensalão no STF, após mais de sete meses, surpreendem?
RUBENS NAVES– O julgamento do mensalão − um esquema de compra de apoio de parlamentares no Congresso Nacional a fim de serem aprovados projetos de interesse do governo, segundo a narrativa do Ministério Público chancelada pelo STF − é um momento simbólico na busca de transparência e combate à corrupção no Brasil.
Esse movimento contra a corrupção teve início com a pressão da sociedade brasileira para o impeachment do então presidente Collor, em 1992. Esse foi o marco inicial do atual processo de aperfeiçoamento democrático.
A partir daquele episódio, tivemos um ativismo político muito forte dos órgãos de controle do Estado, destacando-se a ação do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e da Corregedoria Geral da União (CGU). O Poder Judiciário passou a atribuir penas pesadas nas ações de improbidade administrativa, até mesmo desproporcionais. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo recentemente confirmou condenação do prefeito de uma importante cidade do interior na qual houve aplicação de penas severas, como a devolução da totalidade dos valores de um contrato – apesar de ele ter sido integralmente cumprido –, perda do cargo público e suspensão de direitos políticos. Tudo isso pelo fato de o contrato, de valor modesto, ter sido ampliado sem observação de todos os procedimentos previstos em lei. Não houve prejuízo ao erário nem enriquecimento ilícito.
A sociedade civil, nesse período, tensionou e cobrou providências para a apuração de irregularidades noticiadas pela imprensa, o combate à improbidade na administração e a busca de transparência no uso de recursos públicos.
A trajetória da ONG Transparência Brasil no combate à corrupção e na busca da transparência é um exemplo das batalhas que culminaram na aprovação da Lei n. 12.527/2011, que regulamenta o acesso à informação, previsto na Constituição Federal.
Além da ratificação de tratados internacionais, novas leis, como a Lei da Ficha Limpa e a de Combate à Lavagem de Dinheiro, foram aprovadas. E estão sendo discutidas no Congresso Nacional medidas para a responsabilização penal da pessoa jurídica.
No âmbito da Administração Pública Federal, merece destaque a atuação da CGU na busca de transparência das ações de governo, em especial para o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, a execução da legislação do pregão eletrônico (2000), a instalação do Portal da Transparência (2004) e dos portais dos estados e municípios (2006), do Cadastro de Empresas Inidôneas (2008), dos sites da Copa e Jogos Olímpicos (2010), do Plano do Governo Aberto (2011) e a publicação de remunerações e cadastro de expulsões (2012).
Há uma crescente intolerância com os procedimentos ilícitos na administração, expressa no combate à corrupção, no aperfeiçoamento dos procedimentos e na penalização. Nesse contexto, os rumos do julgamento do mensalão, de maneira geral, não me parecem surpreendentes.
DIPLOMATIQUE– Que balanço o senhor faz do julgamento do mensalão até o momento?
NAVES– Trata-se da mais severa advertência feita por um dos poderes da República − no caso, o Judiciário, por meio de seu órgão máximo − aos políticos. É também uma crítica abrangente do sistema político brasileiro. Os arranjos oportunistas e fisiológicos para assegurar a governabilidade foram condenados, e de forma veemente. Deve-se esperar que, ao julgar casos assemelhados, o Judiciário em geral e o STF em especial respondam de igual forma aos clamores contra a impunidade.
Outro aspecto a ser destacado é que no julgamento do mensalão se deu ênfase à responsabilização penal. Desse modo, o Supremo rompeu decididamente com linhas de interpretação mais flexíveis e em defesa do acusado, nas quais a presunção de inocência funcionava como um obstáculo insuperável a condenações sem provas cabais, inquestionáveis. Sem dúvida, houve um endurecimento na interpretação da legislação penal. Considero que o equilíbrio na aplicação das sanções, utilizando-se também penas alternativas e multas realistas, além da recuperação dos recursos públicos desviados, será uma sinalização mais adequada para todo o sistema de justiça, em especial para os juízes de primeiro grau.
DIPLOMATIQUE– As condenações foram justas?
NAVES– O conceito de justiça é amplo e diz respeito à escolha de valores feita pelos magistrados ao analisar o processo e sustentar a sentença. Cada julgador aprecia as provas e decide em função de suas crenças e filiação a correntes doutrinárias.
A própria escolha da lei que deve ser aplicada em cada caso é fruto de juízos de valor por parte dos representantes do Ministério Público e do Judiciário. Importante, neste momento, é analisar a legitimação do procedimento que norteou o julgamento.
As decisões foram tomadas por um colegiado legitimado por normas democráticas. Houve absoluto respeito ao contraditório e ao devido processo legal. Provas foram colhidas, defesas foram apresentadas, juízes divergiram inclusive na consideração da prova e na cominação das penas. Houve preocupação com a coerência, com a razoabilidade, proporcionalidade e, finalmente, total publicidade. Foi possível acompanhar ao vivo – e muita gente o fez – as sessões do julgamento. Juristas de várias universidades e tendências doutrinárias acompanharam e comentaram todas as etapas do julgamento e suas implicações. Tudo o que vem acontecendo na Corte tem sido, portanto, constantemente questionado, esclarecido e discutido na mídia nacional.
Creio que, no âmbito do Supremo, não se verificou a tão falada demonização do PT, e sim condenações de indivíduos que desviaram o poder de suas funções precípuas. A sociedade deve reconhecer, inclusive, que um julgamento dessa magnitude e impacto foi realizado sob o governo do PT e protagonizado por um procurador-geral da República e oito ministros indicados pelos presidentes Lula e Dilma − um indicativo bastante positivo para a democracia brasileira.
DIPLOMATIQUE– O uso que foi feito da teoria sobre o domínio do fato está correto? Afinal, o envolvimento da cúpula do PT foi provado?
NAVES– A teoria do domínio do fato diz que o autor de determinado crime não é só quem o executa, mas também quem tem o poder de planejar e decidir sobre sua realização, e o faz. A teoria surgiu para explicar situações de autoria mediata, diferenciando-se da teoria objetiva formal na qual é autor exclusivamente quem pratica a ação descrita no tipo penal. É importante lembrar que, de acordo com essa teoria, deve haver prova de que quem ocupa posição de comando efetivamente emitiu a ordem para a execução do crime. Não posso afirmar se o uso da teoria está correto no julgamento em questão, pois não tive acesso ao processo. De todo modo, o exame das provas foi feito por um colegiado. Pelo menos seis julgadores muito qualificados se convenceram de que cabia o uso da referida teoria.
É imprescindível que a aplicação da tese do domínio do fato seja feita de forma consistente, pois balizará outros julgamentos, até mesmo na primeira instância. A jurisprudência a ser firmada pelo Supremo deverá oferecer um modelo consistente e seguro de aplicação desse instrumento teórico para que se evitem, futuramente, sentenças e penas baseadas em análises excessivamente subjetivas.
DIPLOMATIQUE – O STF pode ter agido de forma mais rigorosa por conta da pressão exercida pelos meios de comunicação comerciais?
NAVES – Não podemos negar que houve pressão. Ela foi muito forte desde a investigação e do acolhimento da denúncia até o processo do julgamento. De toda forma, a pressão seguiu as regras do jogo de acordo com o estágio atual da nossa democracia, em conformidade com a regulação e concentração da mídia atualmente definidas − e as imperfeições aí existentes.
Apesar disso, o Judiciário tem meios para enfrentar essa pressão. O Judiciário é um Poder independente; os juízes têm cargo vitalício, estando menos vulneráveis às pressões políticas que influenciam o Executivo e o Legislativo. Além disso, no caso do STF, são onze ministros julgando e justificando cada decisão. No exemplo do mensalão, o devido processo legal foi respeitado e tivemos decisões variadas. Em alguns casos houve condenação por maioria; em outros, absolvição.
DIPLOMATIQUE– O julgamento do mensalão ocorreu exatamente durante o período eleitoral. É apenas uma coincidência ou o calendário foi manipulado?
NAVES– Certamente houve pressão para que o julgamento ocorresse durante o período eleitoral, mas dificilmente houve manipulação, pois o processo do mensalão foi longo e temos eleições a cada dois anos. Mesmo que admitíssemos a possibilidade de tentativas de manipulação, constataríamos que seus efeitos eleitorais foram, no mínimo, bastante limitados, haja vista o resultado das eleições municipais no país, especialmente em municípios importantes, como São Paulo.
Considero mais razoável o argumento de que talvez tenha havido falta de cuidado por parte do STF, que se mostrou alheio ao fato de que fases importantes do julgamento ocorriam às vésperas das eleições. Mesmo assumindo que o julgamento é neutro e objetivo, poderia, talvez, ter havido uma preocupação em evitar a coincidência de datas para não ensejar excessiva exploração política num momento em que os cidadãos devem exercer a livre escolha de partidos e candidatos.
Cabe lembrar a liderança exercida pela presidência do STF e seu interesse em concluir o julgamento ainda este ano. O ministro Ayres Britto se notabilizou pelo julgamento de casos extremamente simbólicos e importantes, como a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, o caso das células-tronco e o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. Diante desse histórico, não causou surpresa seu empenho, dosado por exemplar cordialidade no trato ao presidir os trabalhos, para julgar a ação penal do mensalão até o final do seu mandato à frente da Corte.
DIPLOMATIQUE– O PT alega que o Supremo condenou os antigos membros da cúpula do partido apenas porque estes são advindos do campo popular e que o mesmo não teria ocorrido com membros de governos passados. É possível que isso tenha acontecido?
NAVES– Nos próximos meses teremos a resposta, uma vez que dependerá da pauta apresentada pelo STF. Nossa democracia está sendo testada e em breve poderemos avaliar com mais segurança se um dos setores políticos está sendo desproporcionalmente punido ou se o julgamento do mensalão entrará para a história como marco de um processo democrático e republicano de aperfeiçoamento institucional.
A aplicação da lei de forma igualitária entre os diversos setores da sociedade é uma questão crucial no Brasil há muito tempo. Pesquisas indicam que a população ainda não acredita que haja igualdade perante a lei. Os resultados do julgamento do mensalão e a postura do STF daqui em diante colocarão essa questão à prova, e de maneira muito visível. A partir de agora a sociedade estará observando as tendências do STF, o que me parece ótimo. O dedicado relator ministro Joaquim Barbosa promete celeridade e eficiência no período em que presidirá o STF.
DIPLOMATIQUE– Quais precedentes foram abertos por esse julgamento? É esperada uma elevação das condenações por corrupção?
NAVES– Creio que as principais consequências serão maior agilidade e maior pressão para julgar casos de corrupção. Isso já pode ser demonstrado pelo acordo, realizado no início de novembro, entre os presidentes dos tribunais de justiça de todo o país junto ao CNJ para identificar e julgar as ações de improbidade administrativa e as ações penais relacionadas a crimes contra a administração até 31 de dezembro de 2013.
Devemos ficar atentos para abordagens exclusivamente penalistas no que diz respeito à corrupção e, principalmente, à improbidade. Uma penalização excessiva e uma visão demasiadamente formalista podem, além de afetar a gestão pública, inibir o funcionamento do sistema político e remeter para a arena judicial embates e controvérsias que talvez possam ser mais adequadamente solucionados pela própria política. O processo de responsabilização deve ser mais pedagógico que sancionador.
DIPLOMATIQUE– Durante o julgamento, pouco se falou em reforma política. Para o senhor, é preciso alterar as leis para enfrentar a corrupção ou os instrumentos são suficientes?
NAVES– A reforma política é imprescindível e inadiável, principalmente no que tange à reorganização partidária, ao sistema de votação, à natureza do mandato e ao financiamento de campanhas. Isso poderá reduzir a corrupção. Mas para punir atos de improbidade e corrupção já temos um conjunto normativo amplo e um forte compromisso do Estado brasileiro com tratados internacionais que abordam o tema.
Necessitamos de uma ação mais ágil e eficiente dos órgãos de controle, e não de penalização de meras irregularidades administrativas, o que vemos recorrentemente. Atualmente, o Estado gasta mais com controle do que com planejamento e gestão. Mais do que de novas leis, precisamos de maior racionalidade e agilidade.
O grande desafio para a presidente Dilma Rousseff é ser a condutora das reformas necessárias para a modernização do sistema político brasileiro. Isso poderá consagrá-la na esteira dos presidentes do Brasil que fizeram diferença. Todos os partidos e lideranças são unânimes em qualificar a reforma política como urgente e necessária. O PSDB e o PT, que estão sendo desafiados a apresentar uma nova forma de fazer política, deveriam dar um exemplo de responsabilidade para com o desenvolvimento democrático do país, articulando uma plataforma comum para o aprimoramento do sistema de representação política e partidária.
Nessa direção, uma proposta presidencial poderá seguir o exemplo do que foi feito no Brasil em 1985, com a criação da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais como etapa do processo de restauração democrática. Um grupo de trabalho de experientes representantes da sociedade civil, juristas, cientistas políticos e notáveis de outros campos do saber poderia formular um anteprojeto de reforma política a ser submetido à discussão pública no Congresso Nacional. O estudo técnico pressupõe diálogo com as iniciativas populares existentes [www.reformapolitica.org.br]. Creio que a presidente tem todas as condições de articular um amplo apoio político para o encaminhamento, nesses moldes suprapartidários, de uma proposta inovadora.
Luís Brasilino é Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.