O levante da canção e da música baiana: você conhece o Coletivo Outras Vozes?
O Coletivo Outras Vozes é um novo movimento musical que se alimenta do passado para construir o futuro. Eles bebem das fontes de Caymmi, dos tropicalistas, dos Novos Baianos, mas com a sede de criar algo novo, algo que ecoe pelos tempos que virão
“A gente criou um levante pela canção. Um trabalho de composição e melodia mais elaborado, mas não para parecer intelectual. É música popular brasileira autoral. Temos artistas de toda a Bahia, muito diferentes um do outro, mas com a causa em comum que é a canção.” – Coletivo Outras Vozes.
A música baiana é como um rio antigo que carrega, em suas águas, o pulsar de uma terra fértil. Suas raízes se aprofundam nos primórdios da “descoberta” do Brasil, mas seguem em eterna metamorfose, sempre em diálogo com os movimentos sociais, políticos e culturais do país. A Bahia, com sua alma mística e fervilhante, moldou a identidade musical do Brasil, influenciando e sendo influenciada por diversos ritmos e sonoridades numa dança sem fim.
A Bahia, esse chão de misturas e encantos, onde o sagrado e o profano se encontram no batuque e no canto, é a fonte que nutre o vasto oceano da música brasileira. Dorival Caymmi, o velho sábio do mar, personifica essa essência. Nascido em Salvador, em 1914, Caymmi trouxe ao Brasil e ao mundo a melodia das ondas, o sussurro dos coqueirais e o ritmo do remo que corta o mar. Suas canções, como “O Que é Que a Baiana Tem?”, “Samba da Minha Terra” e “O Mar”, são como rezas cantadas, que celebram a Bahia e sua gente, transformando o cotidiano em poesia.
As melodias de Caymmi são simples como uma brisa. Contudo, carregam a força de um vento que balança o coração. Ele foi um dos primeiros a traduzir a alma baiana em música com um olhar que transcende o tempo e inspira gerações. Foi precursor, foi revolução tranquila, inaugurando caminhos que outros percorreriam, como as vozes que ecoam hoje no Coletivo Outras Vozes.

Nos anos 1960, um novo vento soprou forte sobre a Bahia. Surgiu o tropicalismo, um movimento que, como uma tempestade tropical, sacudiu o Brasil. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé – nomes que se entrelaçam como raízes de uma árvore ancestral, mas que crescem em direção ao sol, buscando novas formas, novas cores. O tropicalismo, com seu manifesto em “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968), misturou o que era antigo com o novo, o samba com o rock, o Brasil com o mundo. Foi como um jardim selvagem, onde flores de todas as cores e formas cresciam lado a lado, sem medo de se misturar.
Então vieram os Novos Baianos, com sua alegria despojada e sua música como um carnaval sem fim. Viviam em comunidade, dançavam ao som de seus próprios passos, misturando samba, rock, choro, MPB e bossa nova. O álbum “Acabou Chorare” (1972) é como um sorriso no rosto de quem acaba de descobrir a beleza do mundo. Eles eram a síntese de uma Bahia que não tem medo de ser feliz, de inovar, de se reinventar, a partir de outra grande tradição brasileira: a bossa nova de João Gilberto.
É dessas águas profundas e dessas raízes que surge o Coletivo Outras Vozes, um novo movimento que se alimenta do passado para construir o futuro. Eles bebem das fontes de Caymmi, dos tropicalistas, dos Novos Baianos, mas com a sede de criar algo novo, algo que ecoe pelos tempos que virão. Como as ondas que rebentam na praia, o coletivo traz consigo a força e a suavidade, misturando tradições com novas sonoridades.
O Coletivo Outras Vozes é um sopro de vida na música baiana, reunindo músicos, compositores e poetas que, como folhas ao vento, vêm de diferentes cantos da Bahia. Cada membro traz consigo suas próprias histórias, suas próprias influências, e juntos, eles criam uma sinfonia diversa e poderosa. Ana Barroso, Angela Velloso, Daniel Farias, Dorea, Fatel, Guigga, Lígia Rizério, Nalessa Paraizo, Luíza Britto, Tom Vasconcelos e Théo Charles são nomes que iluminam a música contemporânea baiana. O Coletivo Outras Vozes é uma reunião de artistas baianos que se destaca pela criação de um espaço coletivo de experimentação musical, poética e performática, expressando a diversidade artística da Bahia.
Essa geração, representada, entre outras expressões, pelo Coletivo Outras Vozes, dá continuidade a essa rica tradição musical baiana. Formado por músicos, compositores e poetas de diferentes partes da Bahia, o coletivo se destaca pela criação de um espaço de experimentação artística que busca tanto preservar as tradições quanto incorporar elementos contemporâneos. Em sua sonoridade, encontram-se ecos das canções de Caymmi, da ousadia tropicalista, e da alegria dos Novos Baianos, todos reinventados e adaptados para o hoje, como um espelho que reflete o passado, mas projeta o futuro.
Esse coletivo é mais do que música; é um movimento, uma revolução suave em forma de canções. O grupo dialoga com o público, cria uma experiência que vai além do ouvir; é sentir, é viver a arte em sua plenitude. As canções autorais se misturam com releituras de clássicos, e tudo se torna indissociável. A Música é, acima de tudo, um ato político, e nessa melodia que se reinventa, nascem novos sonhos e canções.
O sucesso do Coletivo Outras Vozes reside em sua capacidade de conversar com a tradição sem deixar de olhar para o futuro. Uma tapeçaria que é construída para durar, ser admirada e vivida.
Talvez eles não estejam criando algo completamente novo, ou talvez estejam apenas mostrando aquilo que as grandes indústrias e as plataformas digitais deixaram de lado: a beleza que reside na simplicidade, na sinceridade, na alma de uma canção. Anota esses nomes, porque pouco se ouve falar, mas que muito têm a dizer.
Herlon Miguel é bacharel em administração, produtor cultural e mestrando em gestão de tecnologia aplicada à educação pela Universidade do Estado da Bahia, destaca-se como criador da plataforma Ative a cidadania, dedicada à formação, capacitação e lançamento de autores e autoras negras. Além disso, é fundador da plataforma de comunicação Negrito LAB. Como escritor, ele também é coautor do livro Amar pode ser perigoso. Janaina Rocha que é Diretora de Programação e Conteúdos da TVE Bahia e Rádio Educadora FM desde 2018. Mestre em Literatura e Práticas Sociais na Universidade de Brasília (UnB), foi repórter musical do jornal O Estado de São Paulo nos anos 2000 (1998 a 2001).