O liberalismo de cócoras da elite brasileira em geral, e da paulista em particular
Em recente pesquisa, a Fundação Perseu Abramo levantou dados nas periferias de São Paulo com objetivo de qualificar e de aprofundar a compreensão e o debate sobre as classes populares, por sua vez, jornais, institutos e intelectuais ligados ao pensamento liberal tentaram colocar na boca e na cabeça do povo aquilo que eles não disseram e aquilo que eles não pensaram
O liberalismo no Brasil dá o que falar. Entretanto, ele se revela menos naquilo que diz e mais naquilo que tenta ocultar. No século XIX, liberais de matizes variadas defenderam enfaticamente a não intervenção do Estado no direito de propriedade privada, faltava dizer que cerca de 2/3 da população formada por escravos é que sendo tratados jurídica e politicamente como coisas compunham a propriedade privada que não poderia ser tocada, portanto, o liberalismo emerge na história brasileira como defesa da escravidão.
No século XX se dá algo análogo, e os liberais passam a defender o encontro do Brasil com sua vocação econômica natural de país “gigante pela própria natureza”, cujo encontro marcado com o futuro ocorreria a partir do livre-mercado, omitiu-se como por trás de tais ideias encontrava-se o desejo de perpetuação de um país agroexportador, inserido na economia internacional de forma subordinada, com baixos níveis salariais e alta precarização das ocupações, noutras palavras: entre nós o liberalismo se desenvolveu como combate contra a industrialização, a modernização do mercado de trabalho e a soberania nacional.
Nesse início de século XXI, uma nova invencionice se propaga entre os neoliberais de plantão, a ideia de que o Estado corrupto e ineficiente seria o responsável pelo sufocamento da iniciativa privada empresarial e da sociedade civil organizada, um problema que só poderia ser minimizado com o enxugamento das contas públicas e com a austeridade fiscal, dessa vez o que se tenta esconder é uma disputa pelo orçamento público, nessa perspectiva o Estado é mínimo para os direitos sociais e trabalhistas, mas o Estado é máximo no seu aparelho de repressão e nas benesses que fornece de forma subserviente aos interesses do rentismo.
Em todos esses capítulos o que se observa é um liberalismo de pé quebrado por trás do qual a principal mensagem implícita é: no Brasil não cabem todos os brasileiros. As revoluções liberais produziram burguesias com um mínimo senso de valores modernos, como igualdade, liberdade e fraternidade. Entretanto, nessas plagas, os liberais brasileiros via de regra apenas cultivaram valores mercantis de perpetuação da desigualdade, da opressão e da intolerância. Adam Smith, o pai fundador do liberalismo econômico, ficaria constrangido em ver os maus usos e abusos que se fazem das suas ideias nesse lado dos trópicos.
Como pode se auto-interpretar como inovadora uma elite empresarial que sistematicamente transfere seus riscos para o Estado? Como pode se auto-avaliar como empreendedora uma classe média que não suporta conviver com os trabalhadores em filas de banco, corredores de shoppings e terminais de aeroportos? Os liberais brasileiros são farsantes e como tal é que interpretaram a recente pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo (Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo). A pesquisa buscou chamar a atenção para como a polarização institucional cria um afastamento entre a política institucional e o tecido social, fazendo com que a visão de mundo das camadas populares seja mais complexa e carregada de nuances.
Entretanto, as leituras feitas por jornais, institutos e intelectuais ligados ao pensamento liberal fizeram uma interpretação absolutamente distorcida e seletiva das tendências apresentadas pela pesquisa. Tais análises revelam mais sobre o pensamento elitista brasileiro e menos sobre a própria pesquisa. Como historicamente não conseguem conviver com a civilidade e a inclusão social, os liberais brasileiros tropeçam nas suas próprias contradições e hipocrisias. A pesquisa aponta para os problemas da polarização, mas os liberal-conservadores utilizaram seus editoriais e espaços justamente para acentuar as leituras polarizadas, o que revela sua cultura de ódio; a pesquisa aborda uma parcela especifica da população da cidade de São Paulo, entretanto os leitores tortos fizeram generalizações equivocadas para o conjunto do país, o que revela sua arrogância paulistocêntrica; a pesquisa aponta demandas pelo aperfeiçoamento do Estado e das políticas públicas, mas os analistas enviesados tentaram converter tal observação em uma negação do Estado; a pesquisa aponta para a construção de uma subjetividade marcada pelo mérito e pelo desejo de sucesso individual, mas os leitores elitizados preferiram enxergar nessa observação a vitória do individualismo de livre-mercado.
Tais leituras não deram conta de aceitar o desafio proposto pela Fundação Perseu Abramo de qualificar e de aprofundar a compreensão e o debate sobre as classes populares no Brasil atual, enquanto a pesquisa qualitativa buscou dar voz à periferia, as interpretações liberais mais uma vez tentaram colocar na boca e na cabeça do povo aquilo que eles não disseram e aquilo que eles não pensaram. O que apenas evidencia a pobreza e a fragilidade dos nossos liberal-conservadores, que desconhecem as diferenças entre realidade e verdade, liberalismo e neoliberalismo, entre mérito e meritocracia, entre consumo e consumismo, entre individuação e individualismo, entre o que é privado, o que é público e o que é estatal. E desconhecem tais categorias de análise justamente porque carregam apenas um verniz liberal tentando esconder uma madeira conservadora.
O que a pesquisa busca iluminar é como pensam e vivem as pessoas que historicamente foram tratadas como subgente pelas nossas elites que gostam de arremedar o liberalismo. Ao sentirem o gosto da inserção no mercado de trabalho e de consumo as camadas populares passaram a desfrutar de mais reconhecimento, de mais autoconfiança na vida cotidiana para se relacionar com outros, de mais autorespeito para reivindicar melhores condições de vida e de mais autoestima para construir a própria biografia, essas pessoas lutam pelo direito de empreender e construir sua própria trajetória individual, tudo o que a elite liberal brasileira nunca permitiu ao impor políticas de concentração de renda e de bloqueio da mobilidade social.
Se fossem liberais de verdade deveriam se envergonhar de terem passado mais de cinco séculos no poder sem nunca ter conseguido construir uma sociedade de mercado no Brasil, pois se tratam de privilegiados, herdeiros, como é o caso do prefeito de São Paulo, João Dória Jr., cuja trajetória nada tem de João Trabalhador ou de meritocracia, é membro da família Costa Dória, donatária de capitanias hereditárias, composta na sua origem por senhores de engenho e escravocratas.
A base da pirâmide social brasileira hoje demanda o direito de sonhar, de construir uma vida digna, lutando com fé e esforço. Esse é o pesadelo dos liberais brasileiros, por isso a leitura que fizeram da nossa pesquisa traz muitas ideias interessadas, mas nenhuma ideia interessante. Enquanto as classes populares lutam por reconhecimento, nossa elite liberal segue distorcendo a realidade e tentando impor suas supostas verdades a fim de sustentar sua risível comédia ideológica.
(*) William Nozaki é cientista político, economista, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenador do mestrado Estado, governo e políticas públicas FPA/FLACSO.