O longo trajeto do colégio eleitoral nos EUA
Na próxima terça-feira, dia 5, termina a votação para a Presidência dos Estados Unidos e se inicia uma longa e aflitiva contagem de cédulas
O mandato de Joe Biden chega ao fim em 20 de janeiro e o mundo volta a estar atento para saber quem estará a mando do Salão Oval da Casa Branca, em Washington. Há duas opções, já que os Estados Unidos são na prática um sistema bipartidário, ainda que não oficialmente. Uma delas é a atual vice-presidente, a democrata Kamala Harris, a outra é o ex-presidente republicano derrotado pelo cansado Biden, Donald Trump. Todos os jornais recordam que a eleição está marcada para 5 de novembro, mas, na realidade, ela já está ocorrendo. Só termina neste dia.
Diferentemente do caso brasileiro, as eleições dos Estados Unidos não têm um dia de domingo como o grande dia de votação. Além disso, tampouco utilizam urnas eletrônicas, como ocorre no Brasil desde 1996 – ao menos, não as usam para a maioria dos votos, já que cerca de 70% dos locais de votação só contam com cédulas de papel. Salvo o fato de que até terça-feira todas as pessoas já deverão ter enviado o seu voto, poucas outras regras das eleições estadunidenses se aplicam a todos os cidadãos.
Isso se dá porque os Estados Unidos da América, como o nome do país indica, são uma federação de estados, unidos sob uma única bandeira. Essa federação se fundou com base na Constituição dos Estados Unidos, um documento de 1787, uma das mais antigas do mundo ainda em vigência, nessa tão longeva república, nunca interrompida por um sistema ditatorial desde a sua fundação. Esse documento contém sete artigos e 26 emendas, tendo na sua história rejeitado seis outras emendas.
No primeiro artigo deste pergaminho original da formação da superpotência global, se versa sobre as regras para eleger os deputados e senadores. No segundo artigo, se estabelece o conhecido colégio eleitoral, alterado pela 22ª emenda, de 1951, que criou a nova regra que impede mais de dois mandatos seguidos do mesmo presidente.
Inicialmente esse modelo ditava que o número de delegados, as pessoas que efetivamente votam nas eleições dos Estados Unidos, é determinado pelo número total de senadores e deputados que cada estado tem no Congresso, o que por sua vez é determinado por sua população. No início, não se versava sobre como esses delegados eram escolhidos, apenas que isso era responsabilidade dos próprios estados. Atualmente, todos os estados contam com votações abertas para a escolha dos delegados. Contudo, existem particularidades que se mantêm devido aos ditos “direitos dos Estados”.
Ou seja, é por isso que na prática o presidente dos Estados Unidos ganha o mandato ao conseguir o voto de no mínimo de 270 delegados, um voto a mais do que a metade do total de delegados (538).
Uma pessoa, um voto?
Há de se recordar que, no momento em que os Estados Unidos instauravam o seu sistema eleitoral, as comunicações eram feitas com a velocidade que um cavalo ou um navio simples permitiam. Os motores a vapor já existiam, mas ainda não estavam em todos os lugares. Ainda assim, no melhor dos cenários, levaria dias para que se comunicasse a Nova York os votos do estado da Geórgia, o mais distante da provisória capital.
A ideia de ter delegados que fossem até a capital votar em nome da população local foi uma saída lógica em um cenário como esse. Outra lembrança importante é que a fundação dos Estados Unidos se deu durante uma guerra contra o controle colonial inglês, momento em que ao mesmo tempo as recém-fundadas tropas do país começavam a se expandir, inclusive ao oeste.
Esse modelo de votação era o mais moderno que se poderia criar em um país que não tinha nem certeza de onde seria a sua capital. Nova York foi capital por apenas um ano, tendo o governo posteriormente residido na Filadélfia, no estado da Pensilvânia. Ao olharmos para o mapa vemos o quão mais centralizada estava essa capital em relação aos treze estados iniciais. Em 1971, o país anunciou a junção de mais três estados àquela federação, Vermont, Kentucky e Tennessee. Seria só em 1800 que Washington terminaria de ser construída e se tornaria a capital do país, enquanto a expansão para o oeste seguia a todo o vapor – literalmente, porque surgiam os trens a vapor que cortavam aqueles territórios virgens, onde só viviam os nativo-americanos. Em 1850, o país já tinha 31 estados federados. Ainda no século XIX, tentou-se fazer emendas à Constituição para reformar o modelo de votação, que não vingaram.
Em 1814 e 1820, foram feitas tentativas para forçar os estados a dividirem seus delegados por distritos, em vez de todos serem escolhidos de forma completamente estatal. A proposta foi rejeitada. Já em 1950, um senador republicano se juntou a um deputado democrata para tentar substituir os delegados por uma contagem direta do colégio dos votos populares de cada estado. A proposta também foi rejeitada.
Em 1956, o então senador e posterior vice-presidente democrata, Hubert Humphrey, tentou negociar com os estados para chegar a uma espécie de meio termo. Era uma proposta bem tímida para reconhecer o voto popular no país: dois delegados de cada estado deveriam ser escolhidos de acordo com a proporção do voto popular para democratas e republicanos. Os demais delegados seguiriam sendo escolhidos de acordo com as regras de cada estado, e os estados preservariam a proporcionalidade entre o seu número de delegados e a sua população – naquele momento, a Califórnia, por exemplo, era o estado com mais delegados, com quarenta. Mesmo assim, a proposta foi rechaçada, os estados não pareciam interessados em renunciar ao direito do colégio eleitoral, a base da democracia dessa federação.
O estado de Delaware, em 1966, tentou recorrer à Suprema Corte contra o modelo “o vencedor leva tudo” para a escolha de delegados no país. Salvo o estado do Maine, todos os outros escolhiam seus delegados da seguinte maneira: o mais votado leva todos os delegados que vão a Washington votar no colégio eleitoral. Delaware argumentava que este modelo excluía os votos minoritários a nível estatal e, assim, forçava as campanhas a pensarem somente em estados onde era possível vencer como maioria. A Corte não levou o processo adiante, afinal, quem decidia sobre como deveriam ser feitas as eleições eram os estados, isso era um direito deles. Desde então, somente mais um estado da federação optou por dividir seus delegados proporcionalmente, Nebraska.
Em 1968, durante o auge dos protestos estudantis e do movimento contrário à guerra do Vietnã, o republicano Richard Nixon venceu as eleições com 301 votos no colégio, contra 191 do democrata Humphrey e 46 do candidato independente, o dissidente democrata George Wallace, que tinha sua campanha baseada no movimento pró-segregação racial. Nesse mesmo ano, a conferência democrata que escolhera Humphrey foi marcada por muitas polêmicas, especialmente porque se alegava que os democratas estavam ignorando o voto popular dos seus filiados nas primárias.
A década de 1960 já era um momento de especial violência política nos Estados Unidos. O então presidente John F. Kennedy foi assassinado em Dallas em 22 de novembro de 1963. Em 1968, em 6 de junho, o seu irmão mais novo, Robert F. Kennedy, foi morto em Los Angeles quando já tinha em seu nome 393 delegados para as primárias do partido democrata. Diante daquela tragédia, o partido manteve sua convenção e Humphrey venceu com larga vantagem.
Acontece que no momento da morte de Robert Kennedy, ele e o senador de Minnesota, Eugene McCarthy, tinham juntos 651 delegados para a convenção, ambos defendendo o fim da guerra no Vietnã (McCarthy sozinho tinha 258 delegados). Humphrey já tinha 561 delegados garantidos. Ele era vice-presidente de Lyndon B. Johnson, que naquele momento sofria enormes pressões por não ter posto fim à guerra iniciada pelo republicano Dwight Eisenhower, em 1955. Pode-se avaliar que o erro dos candidatos contrários à guerra foi não terem se juntado em uma única chapa contra Humphrey. Contudo, como a lógica do “vencedor leva tudo” era usada até nas primárias, havia algo mais a se considerar: McCarthy tinha 38,7% do voto popular (2.914.933 votos), Robert Kennedy, 30,6% (2.304.542 votos), e Humphrey, 2,2% (166.463 votos). Para coroar esse magistral estelionato eleitoral perpetrado pelos democratas, a convenção que escolheu Humphrey foi marcada por uma enorme violência policial contra jovens que protestavam contra a guerra.
Humphrey, como dito, perdeu aquela eleição para Nixon por uma diferença de 191 delegados. No voto popular, perdeu por menos de 1% dos votos (511.944). Na convenção republicana que escolheu Nixon como candidato, ironicamente o mais votado pelo voto popular foi o seu maior rival, o então governador da Califórnia e futuro presidente do país, Ronald Reagan. Porém, aquela vitória de Reagan foi por apenas 17.189 votos. Ainda assim, a vitória no voto popular lhe rendeu apenas o terceiro lugar na convenção republicana. Ele só angariou 182 delegados, enquanto o segundo colocado, Nelson Rockefeller, chegou a 277 e Nixon a 692. Rockefeller ganhou apenas 3,67% do voto popular (164.340 votos).
Após essa tumultuada eleição que elegeu um especialmente controverso republicano para a Casa Branca, os democratas iniciaram um processo para abolir o colégio eleitoral, alegando que ele distorcia a vontade popular. Após dois anos de deliberações e algumas vitórias políticas, chegaram a ter apoio verbal até de Nixon, que dizia que era mesmo a hora de acabar com o colégio. Contudo, no final faltaram alguns votos republicanos para o projeto avançar. Quando a proposta voltou para o plenário da Casa, sofreu o conhecido processo de filibuster – prolongar o debate até que se desista de votar o assunto. Posteriormente, foi revelado que políticos conservadores, dos dois partidos, queriam manter o colégio eleitoral porque assim também mantinham a influência política dos estados sobre a nação.
Desde então, foram feitas outras propostas para mudar o sistema, majoritariamente por democratas, todas derrotadas ou que sofreram o filibuster, incluindo uma tentativa do presidente democrata Jimmy Carter.
Direitos para todos, exceto para o povo eleger diretamente o presidente
No período mais recente, críticas sobre o colégio eleitoral partiram desde Trump até de alguns democratas presidenciáveis.
A primeira crítica do atual candidato republicano ao modelo foi em 2012, quando ele foi derrotado nas primárias do partido republicano para o ex-governador de Massachusetts, Mitt Romney. Quando Barack Obama venceu aquela eleição no colégio eleitoral, Trump imediatamente afirmou que Romney vencera no voto popular (o que depois se provou falso), e tuitou que o “colégio eleitoral era uma desgraça para a democracia”. Em 2016, uma semana depois de ser declarado vencedor daquelas eleições contra Hillary Clinton, Trump defendeu que o colégio eleitoral era, na verdade, “genial”, porque “trazia todos os estados para participar, inclusive os pequenos”.
Em 2020, Pete Buttigieg, prefeito de South Bend (Indiana), despontou como favorito para disputar as primárias democratas contra Bernie Sanders. Naquela situação, o jovem democrata reclamou que o sistema de colégio eleitoral era datado e que já havia passado da hora dos Estados Unidos assumirem que “uma pessoa, um voto” era o melhor modelo para eleger um presidente. Buttigieg diminuiu o tom das críticas após vencer o primeiro caucus daquela campanha, em Iowa. Ele ganhou os primeiros delegados daquela primária da forma mais rudimentar que a eleição estadunidense permite, com eleitores se juntando em igrejas e outros locais públicos para disputas de contraste de presença, como ocorre em assembleias estudantis de universidades brasileiras.
Em seguida, Sanders viria a ganhar a primeira eleição com voto direto daquela primária democrata, em New Hampshire (embora não tenha levado todos os delegados, porque o estado dividia a votação em distritos), fazendo com que aquela eleição parecesse fadada a ser disputada por um desses dois nomes pouco badalados pelo establishment democrata. Então, a maioria dos numerosos candidatos daquela primária, preocupados com a possibilidade do partido escolher um nome jovem demais ou radical demais contra Trump, foi se juntando ao único proponente que parecia unir todos os lados do partido, Joe Biden. A campanha do ex-vice-presidente ganhou impulso somente após Biden vencer as primárias em estados importantes do sul, majoritariamente conservadores em eleições gerais. Dos 29 candidatos iniciais daquela grande primária, Biden conseguiu o apoio de 15 antes mesmo da convenção do partido. Foi escolhido como candidato, derrotando Sanders, e venceu tanto em número de delegados (2695 a 1073) quanto no voto popular (quase 10 milhões de votos a mais).
Em 2024, o partido democrata não realizou primárias, já que se contava que Biden disputaria a reeleição. No entanto, ao apresentar sinais preocupantes de que seria derrotado por Trump, a candidatura do presidente foi substituída pela de sua vice, Kamala Harris. Não acharam necessário que os democratas discutissem quem deveria ser o novo líder do partido.
No lado republicano, desde que Trump conseguiu sua vitória nas primárias de 2016, quando venceu Ted Cruz com 890 delegados de vantagem e quase o dobro de votos do adversário, seu controle no partido jamais chegou perto de ser efetivamente contestado. Em 2020, por disputar a reeleição, era o candidato óbvio. Mesmo depois da derrota contra Biden, Trump voltou a vencer as primárias do partido republicano em 2024, conquistando 54 dos 56 distritos disponíveis, e derrotando Nikky Haley, ex-governadora da Carolina do Sul, que logo correu para apoiá-lo. Apesar da acachapante vitória no colégio, Trump venceu Haley no voto popular por 76,4% contra 19,7% dos votos.
Apenas em cinco eleições presidenciais estadunidenses o candidato que perdeu no voto popular foi eleito pelo colégio eleitoral, e, com a exceção do pleito de 1824, anterior à fundação dos partidos Democrata e Republicano, isso sempre favoreceu o candidato republicano. Em 1876 o republicano Rutherford B. Hayes venceu o democrata Samuel J. Tilden dessa forma. Em 1888, Benjamin Harrison, republicano, virou presidente sobre o democrata Grover Cleveland, mesmo perdendo no voto popular. Nessas duas eleições do século XIX, o candidato democrata era de Nova York e os republicanos de estados mais rurais, Ohio e Indiana. Os outros dois exemplos são recentes: a vitória de George W. Bush sobre Al Gore em 2000 e a de Trump sobre Hillary Clinton em 2016.
Ainda que essa ferramenta pareça necessariamente ajudar os republicanos, o New York Times inferiu que a chance de que Trump vença Kamala Harris no voto popular e perca no colégio eleitoral é bastante real. Se assim for, é difícil prever qual seria a reação do republicano. No entanto, os democratas hoje tampouco parecem animados com a ideia de mudar o modelo de votação, porque o establishment do partido acredita ser mais fácil garantir as suas escolhas desta forma. O voto popular costuma favorecer candidatos de zonas urbanas das costas leste e oeste do país, ignorando os estados do interior. Fora isso, as eleições deste ano já estão marcadas por diversos processos de interferência, sem contar o famoso gerrymandering, hábito de desenhar distritos de votação de forma a favorecer a manutenção de seus candidatos, que ambos os partidos realizam.
Nessa longa eleição, que também acontece por correio e por outros métodos de antecipar o voto, já houve denúncias de urnas eleitorais incendiadas, o que causou a perda de cédulas. Também houve uma tentativa de Trump de mudar as leis eleitorais de Nebraska, para que o estado não dividisse mais seus delegados por distrito, o que poderia potencialmente lhe dar um delegado a mais numa eleição que está empatada em todos os aspectos. Tudo isso considerando também as clássicas medidas que governadores, de maioria republicana, realizam para suprimir votos de bolsões democratas, como dificultar o acesso aos locais de votação, restringir os horários de voto, impedir que se vote sem um documento de identificação nacional (e os Estados Unidos não contam com essa documentação para além de passaportes e carteiras de motorista) e também retirando para sempre o direito a voto de qualquer pessoa que já foi condenada por um crime, como ocorre no Tennessee.
Para ajudar na tensão, a contagem dos votos será lenta, levando dias, e provavelmente tensionará ainda mais um país que já parece estar no limite da violência política. O mesmo New York Times mostrou como até os fiscais de certificação de votos, em alguns casos, estão tão envenenados pela ideologia que podem atravancar a contagem. Mesmo após uma definição, há risco de que o resultado do pleito não seja aceito, o que pode gerar semanas de tensão até o dia da inauguração, em janeiro.
Em um país que desenhou um sistema tão bem pensado para garantir a democracia quando os votos vinham a galope, há de se perguntar se, em 2024, esse modelo segue servindo ao seu propósito.
Daniel Azevedo Muñoz é doutor internacional em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid, com estância realizada na Universidade de São Paulo. Dedicado especialmente à História das Relações Internacionais e à História da Mídia Internacional. É também mestre em História Contemporânea pela mesma instituição espanhola e jornalista formado pela Universidade de São Paulo. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo, e a Rede de Investigadores em Comunicação Internacional, da Universidade Estadual de Ponta Grossa.