O lucro acima da vida
Mais de 1 milhão de pessoas enfrentam há mais de vinte dias problemas com o abastecimento de água no Rio de Janeiro
Desde o início da pandemia em março de 2020 a população do Rio de Janeiro, especialmente a que vive nas favelas e periferias, sofre com a falta de água. Nos últimos vinte dias, a situação piorou e mais de 1 milhão de pessoas, da Baixada Fluminense e das zonas Oeste e Norte e algumas áreas da região Central do Rio, enfrentam problemas de abastecimento desse recurso natural essencial à vida.
O que seria absolutamente inaceitável em condições de vida “normal” se torna ainda mais grave durante uma pandemia, que exige a utilização de água e sabão para garantia da higienização como medida imprescindível para evitar a propagação da doença.
Não é nenhuma novidade para nós, mulheres, em especial as negras, de territórios de favela e periferias, a convivência com a falta de água. Sempre nos foi negligenciado o acesso à água de qualidade e ao saneamento básico. Nossa vida foi forjada, e ainda é em muitos lugares, no subir e descer as ruas íngremes com latas de água na cabeça, em ficar na fila para conseguir água para preparar os alimentos, ou mesmo para dar banho nas crianças, isso quando conseguimos. Sempre lutamos para obter aquilo que é dever do Estado garantir, abastecimento regular de água potável.
Enquanto a população sofre, o governo do estado, ocupado interinamente por Cláudio Castro (PSC), tem como principal pauta a privatização da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae), a fim de sanar o imbróglio orçamentário marcado para 2021 e para atender uma exigência do governo federal, que quer colocar os integrantes da federação de joelhos. O Rio de Janeiro será o laboratório, quiçá a cobaia, daqueles que já provaram sua incompetência, a exemplo da imoralidade de deixar o Amapá um mês em estado de apagão, tendo toda sua economia colapsada.
O impressionante é que ceifam o direito de acesso ao bem mais básico para a sobrevivência humana, a água, por causa de um reparo emergencial em um dos motores da Elevatória do Lameirão – seu bombeamento está operando com uma redução de 25% da capacidade total. A diretoria da empresa informa que o serviço tem previsão de ser normalizado entre 20 e 25 dias, ou seja, mais de 1 milhão de pessoas enfrentarão os dias quentes do final de novembro e o mês de dezembro quase inteiro, sem falar na subida dos índices de contaminação por coronavírus, sem acesso à água.
Não bastasse a crise da geosmina no início do ano, quando a população recebeu água com gosto estranho e cor de barro, a gestão da Cedae torna público que uma das bombas da Elevatória queimou há meses, sem ser substituída, e outra encontra-se danificada. Com isso, a gestão da Cedae deixa muitas perguntas no ar: não há investimento em manutenção? Como os gestores permitiram que uma elevatória que atende 25% da população do estado ficasse com uma bomba queimada por meses? É ineficiência mesmo ou seria boicote para entregar uma empresa que gera lucro à iniciativa privada?
Por conta da crise no abastecimento, no dia 26 de novembro o Ministério Público (MP) e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) se reuniram com a diretoria da empresa, comandada pelo recém-condecorado Edes Fernandes de Oliveira, ordenando a criação de um gabinete de crise após a malograda expedição de ofícios pedindo providências imediatas que pudessem provisoriamente sanar a falta de abastecimento. A DPRJ e o MP exigiram também que fossem apresentados prazos para a conclusão dos reparos e um cronograma de retorno do fornecimento do serviço em cada localidade atingida.
De qualquer forma, mesmo sem previsão de solução, tais medidas só puderam ser encaminhadas devido a interferência de ambas as instituições da esfera pública. E essa circunstância só pode ser explicada pelo perfil que a estatal tem tomado, a mando de nossos últimos governantes. Com a gradual abertura de seu capital, a Cedae tem atuado cada vez mais nos moldes da iniciativa privada, isto é, a minimização de seus gastos e a maximização de seu lucro. A partir da grave crise financeira que assolou o RJ, a partir de 2016, a reputação da estatal motivou uma série de mudanças estruturais, cortando os estímulos para a ampliação de seus serviços e buscando uma trajetória de acumulação de lucro – o que resultou em um processo de desinvestimento marginal de projetos.
Desde então, a empresa passou a superar os 300% de aumento de seus lucros líquidos, assim como uma redução de 80% de seu endividamento líquido. Em um primeiro momento, este desempenho positivo da empresa pode parecer um cenário favorável para o mercado, já que a Cedae está gerando superávit para o orçamento público. No entanto, não podemos esquecer do eixo central que norteia a administração pública: uma empresa estatal não deve ter como sua meta a geração de caixa. Isso significa que quando uma empresa pública está lucrando, ela não está alocando seus recursos da forma mais eficiente, que é maximizando o acesso ao seu serviço – é importante reiterar que a Cedae opera aproximadamente com apenas 26,8% de sua capacidade plena.
O preocupante transtorno na Elevatória do Lameirão serve para nos situar diante do óbvio: o corpo diretivo da Cedae não deve poupar esforços – e muito menos recursos financeiros – para garantir alta taxa de lucro. Esse excedente deve retornar ao setor operacional da empresa e servir de reinvestimento a fim de promover obras em infraestrutura, gerando emprego e renda nas localidades com maior escassez, e, óbvio, uma maior oferta dos serviços prestados à população fluminense, porque água e saneamento são direitos, não mercadorias.
Mônica Francisco é deputada estadual pelo PSOL-RJ e presidente da Frente Parlamentar Contra as Privatizações e em Defesa da Economia do Rio de Janeiro