O massacre como entretenimento, o entretenimento como massacre
A junção entre pandemia e hiperconexão nos dá a oportunidade de transmitir e assistir o sofrimento em tempo real. Os efeitos dessa novidade precisam ser explicitados para que possamos compreender as camadas subjetivas da crise do coronavírus.
Imagine que você chega em casa depois de um longo dia de trabalho e que no caminho do retorno você foi atingido por uma tempestade. Imagine então que você, com suas roupas ainda encharcadas, pega o controle remoto e liga a tv. São pouco mais de oito da noite e a primeira imagem da tela é o fundo azul característico do Jornal Nacional contrastando com a “mulher do tempo” Maju Coutinho. Enquanto você tira as roupas molhadas, Maju anuncia: amanhã vai começar a chover forte, leve um guarda-chuva! Ainda incrédulo com a previsão atrasada, você ouve pela janela um senhor de idade passar na rua e primeiro gritar que a tempestade na verdade é uma garoa para depois alternar o discurso e dizer que resfriado de chuva nunca matou ninguém. Nesta metáfora você é você, a Maju Coutinho são governos despreparados tentando lidar com uma pandemia e a chuva é uma infecção viral com a capacidade de te matar. A identidade do senhor desequilibrado e com dificuldade de concatenar pensamentos eu deixo em aberto para a imaginação de quem lê.
A relação entre metáforas e doenças é antiga. Para alguns casos, a utilização de eventos cotidianos servem como ferramenta para simplificação de assuntos complexos, como a relação entre dinâmicas de contágio, medidas governamentais e lideranças políticas erráticas. Para outros, o emprego de nomes de doenças podem ajudar a descrever, a partir de um certo senso comum, os efeitos danosos de uma atividade, como quando se diz que a economia “entrou em depressão”.
Uma terceira utilização diz respeito ao aparecimento da doença e sua relação metafórica com as crises existenciais de uma determinada faixa da história. Foi assim que a epidemia de tuberculose com sua combinação entre aumento explosivo de poluição do ar nos países industrializados e o desencantamento psíquico das primeiras aglomerações urbanas se tornou a “doença romântica”. Também foi num processo semelhante que a epidemia de AIDS representou a intensa regulação dos corpos como resposta ao avanço dos métodos contraceptivos, das lutas LGBTs e dos experimentos hormonais, para se tornar assim um tipo de totem homofóbico representado como “A doença gay”.
Mudanças no cotidiano
Nas últimas semanas o mundo parece ter se dado conta dos perigos do Covid19, versão atual do conhecido coronavírus. Dia a após dia, os efeitos da infecção viral mudam de maneira sensível o cotidiano de cada vez mais pessoas, produzindo mortes, internações, quarentenas, fechamentos de fronteiras e incitando a rápida reação de governos por todo o planeta. Aqui e ali começam a surgir comparações desta pandemia com a gripe espanhola durante a Primeira Guerra Mundial. Não deve ser por acaso que o Covid19 está sendo comparado a uma doença que matou um terço da população mundial em uma época que se seguiu com três décadas de ascensão do fascismo, genocídio, conflito bélico global e reformulação geopolítica. Contudo, diferente da pandemia do século XX, a sua versão do novo milênio vem acompanhada pela amplificação da capacidade comunicativa via internet e da transformação desta experiência em espetáculo de entretenimento.
Diante de uma pandemia de escalas inéditas no último século e reformulações existências aprofundadas por três décadas de aceleramento tecnológico, a chegada do coronavírus parece nos incitar mais uma vez a criação de figuras de linguagem que nos ajude entender quais são os problemas do mundo que ele vem representar. Escrito em um momento que é apenas o início dos efeitos desta crise e de suas reverberações para nossos problemas existenciais, este ensaio tentará colocar em análise duas metáforas advindas do modo hiperconectado pelo qual vivemos a vida cotidiana e no qual viveremos a pandemia do coronavirus.
A proposta aqui é a de que a crise do coronavírus pode ser lida como uma metáfora para uma vida dominada pela experiência do entretenimento. Esta experiência se dividiria em dois pólos: de um lado o consumo de notícias de sofrimento do mundo como forma viciante de distração através das transformações recentes do jornalismo, e do outro a transmissão e recepção dos sofrimentos de nossas vidas privadas como produtos de consumo via redes sociais.
Este ensaio, evidentemente, não tem nenhuma pretensão de clarividência. As tentativas de previsão por parte de acadêmicos sempre partem, como dizia Proudhon, de uma ignorância típica de estadistas frente a fecundidade do inesperado. Esta é uma frase que cai particularmente bem ao momento atual do país, época em que ninguém mais ignora o caos do cotidiano: primeiro porque a surpresa virou a norma, segundo porque no Brasil não existe nenhum estadista vivo.
O massacre como entretenimento
Apesar de assustadoramente perspicaz em suas possibilidades letais, a comparação do coronavírus com a gripe espanhola esbarra em seu sentido como problema público. Parece um pouco estranho para nossas atenções super-contemporâneas, mas a verdade é que a maioria das pessoas que morreram de Gripe Espanhola no período entre 1918 e 1919 não sabiam do quê estavam morrendo. A época era de guerra total e os jornais da maioria dos países estavam sob censura, soma-se isso o fato de que quase todo trabalho científico e médico estava direcionado ao esforço de guerra. Deste modo, as especificidades exclusivas a este tipo de gripe só foram divulgadas, com muita lentidão, por jornais espanhóis devido sua neutralidade na guerra (e, por isso, esse é nome da doença) e o trabalho real de caracterização da doença ficou mais a cargo de historiadores da medicina da década de 1930 do que de médicos e cientistas contemporâneos ao desastre.
O coronavírus, contudo, é a primeira pandemia que será vivida “ao vivo” e através da estética do entretenimento. Por entretenimento, de maneira bastante simplória, estou dizendo “qualquer atividade feita com objetivo direto de captar nossa atenção e nos distraia do mundo do trabalho”. Neste mundo que vivemos, este transmitido e autotransmitido através de nossos celulares, o entretenimento tem basicamente três fontes: a primeira – e mais tradicional – é a advinda da indústria cultural e seus cinemas, teatros, transmissões de esporte, consertos, etc. A segunda é o próprio jornalismo, transformado em entretenimento uma vez que seu principal meio de difusão se tornaram os mesmos que os da indústria cultural. A terceira é a nossa vida privada, transformada em entretenimento alheio via redes sociais
Contudo, uma vez que a erosão dos espaços de trabalho cancelem as forças produtivas da indústria cultural, ficaremos apenas com as outras duas alternativas. Ao passo que vão se embora os shows, cinemas e campeonatos de futebol, nos sobrará apenas a alternativa de nos distrairmos com as notícias e com nossas timelines. Diferente da pandemia do outro século, nós não só saberemos aquilo que está nos molestando e matando, como também teremos a oportunidade de transmitir e assistir os nossos sofrimentos e tentativas de sobrevivência.
O massacre segundo a segundo
A aceleração das notícias e a transformação dos periódicos em entretenimento são processos mútuos da nossa experiência informacional. Uma vez que o ramo da economia da atenção se tornou a única atividade econômica com real capacidade de expansão do capitalismo tardio, o jornalismo foi gradativamente perdendo seu status de atividade ritualística de suspensão do ritmo acelerado da vida (o famoso “dar boa noite pro William Bonner”). O jornalismo então entrou nas nossas telas, disputando espaço estético com memes e outras distrações e disputando em velocidade com a capacidade de todas as outras pessoas relatarem em tempo real “o que está acontecendo”.
Naturalmente, a atividade jornalística adquire deste modo parte dos aspectos estéticos de sua concorrência, incorporando o meme e a tentativa de transformar seus produtos em peças parecidas shows de humor ao mesmo tempo que tenta competir em chamatividade e urgência para ganhar destaque nas timelines. Também consequência da luta acirrada pela nossa atenção, a predileção pela representação da violência se tornou uma espécie de norma que não afeta apenas a simples transmissão de cenas violentas, como também a adoção progressiva de estéticas guerreiras e a representação de todo tipo de notícia como um esforço de conflito. Não só se tornou comum a tradução jornalística do trabalho de segurança pública como “guerra contra o crime”, como também não é difícil encontrar representações como “luta contra o câncer”, “batalha pelo corpo perfeito”, “a corrupção como inimigo”.
Não demorará muito até aparecerem os primeiros editoriais conclamando uma “guerra” contra o coronavírus. As consequências disso é que não só o jornalismo nos distrai tanto quanto os vídeos de gatinho rodando no sofá, como seus aspectos de consumo se tornaram tão viciantes quanto. Nestes nossos tempos, a cada momento somos atingidos por novas notícias de sintomas recém-descobertos da doença e que nos farão prestar mais atenção se nossa tosse é seca ou não. A cada dia seremos presenteados por gráficos que de infecção e mortalidade e suas curvas, nós então nos surpreenderemos pelo seu caráter quase inescapável de nossa atenção.
E assim entenderemos a primeira metáfora existencial dessa nova pandemia: assim como nosso fascínio pelo jornalismo da violência explícita, a experiência desta crise também representa nossa incapacidade de tirar nossos olhos de algo que é, trocado os miúdos, a ilustração de uma pilha de cadáveres de sujeitos mais vulneráveis que nós.
Contudo, toda modalidade de entretenimento tem seu limite na captura de nossa atenção. Em algum momento do dia nos cansaremos de contar os corpos empilhados da pandemia. Quando este momento chegar – e depois de percebermos que as plataformas de streaming são grandes lixeiras de produtos repetidos ou fora de moda – voltaremos a outra opção de distração. Esta opção é, como já apontado, a transmissão e consumo mediatizado da nossa vida privada.
O entretenimento como massacre
Uma das grandes invenções da internet é poder transformar a nossa vida cotidiana em produtos consumíveis enquanto entretenimento. Se antes deste advento a possibilidade de criar estas peças para entreter os outros era reservado àqueles que possuíam os custosos materiais para fazê-lo e transmiti-lo, a popularização da banda larga despencou as operações de difusão ao passo que os materiais de produção (câmeras, computadores, microfones) seguiram caminho parecido de depreciação do preço. Foi assim que uma nova cena de arte surgiu com escritores, músicos, cineastas e outros artistas independentes.
A outra ponta deste processo foi que, ao colocar todas estas possibilidades no nosso bolso através dos smartphones, ganhamos também a potência de transformar cada momento de nossas vidas em produto de consumo alheio. Não demorou muito até que a transmissão massiva deste cotidiano ganhasse contornos que imitassem a estética da indústria cultural: fotos descompromissadas que parecem saídas de filme, relatos dos dias que são muito semelhantes aos roteiros dos nossos shows prediletos e, principalmente, uma perspectiva da vida que só pode ser entendida como o antagonismo moralista entre mocinhos e heróis.
Não é por acaso, assim, que a midiatização da vida cotidiana veio acompanhada por uma profunda moralização de cada um dos nossos gestos. Resultado de uma certa interpretação confusa do postulado de Virginia Woolf de que o “pessoal é político”, a transmissão das nossas vidas e o consumo da vida alheia produziu uma maneira de experienciar as relações semelhantes a roteiros holywoodianos, onde não se pode ter dúvidas do certo e do errado. Assim, não cansamos de transmitir através das nossas redes sociais o jeito de certo de cozinhar, separar o lixo, transar, ver filmes, e – com atenção especial para o assunto deste ensaio – o modo certo de sofrer; ao mesmo tempo não perdemos a oportunidade de “cancelar” a vida alheia uma vez que seu modo levar o dia seja passível de crítica.
Em crises que envolvem dinâmicas de contágio, as atitudes de prevenção costumam se tornar alvos de grande escrutínio moral. Desta vez, não deverá ser diferente. Já pululam aqui e ali vídeos de denúncia sobre como as pessoas estão lidando errado com os protocolos de higiene, ou estão saindo às ruas em momentos pouco propícios. Estas denúncias, contudo, nada tem a ver com uma solidariedade frente aos mais vulneráveis (que, afinal, precisam de ajuda e não de denúncias) sendo apenas mais uma volta no parafuso da vilanização alheia.
Também já é comum ver a transmissão de nossos sofrimentos cotidianos e os efeitos que este tem numa rede dominada pela estética do entretenimento. São tutoriais, vídeos e textos inspiradores que, no limite, tentarão nos ensinar a maneira certa de lidar com o sofrimento produzido pela quarentena e pelo medo da infecção. Estas transmissões servirão, em seu cerne, para traçar uma linha daqueles que conseguem ou não sofrer de uma maneira produtiva, esteticamente agradável e moralmente a provável.
Sofrimento produtivo
Esta inadequação da estética de redes sociais com o sofrimento que não é produtivo reverbera as ideias de um capitalismo que funciona em todas as partes de nossas vidas ao mesmo tempo que se apresenta com grau de competição ultrajante. Esta preocupação – de estar produzindo a todo tempo e de transmitir a produção para que não nos contem fora da vida produtiva – se amplifica em um ambiente de quarentena mas não é sua exclusividade. Basta verificar, por exemplo, a popularidade de histórias de superação ou a estetização de episódios de sofrimento para percebemos a tentativa de expressar a experiência do sofrer como mais um passo do processo produtivo, escondendo assim sua natural (e salutar) potência de desmoronamento das nossas capacidades de trabalho. Esta disposição, contudo, passa longe de ser um engano ou uma má interpretação da realidade, pelo contrário, a estética do sofrimento produtivo é a mais crua tradução dos tempos e veremos seus traços ganharem cores mais forte durante a crise do coronavírus: Primeiro, porque as condições empregabilidade se deterioram e o medo de ser sacado do mundo do trabalho é real. Segundo porque existe uma ansiedade que junta a expectativa de adaptação rápida ao novo ambiente com uma esperança um pouco delirante de que a situação se resolva já nos próximos dias. É desta combinação que surgem tantas fotos de home office, teleconferências e tapetes de yoga.
A tentativa de encenar uma estética de sofrimento produtivo, contudo, desmoronará ao passo que todos percebam que o período de quarentena será maior que o do Carnaval. Já é possível perceber nos países que estão em quarentena há mais tempo os efeitos psicológicos desta combinação entre isolamento hiperconexão. Para citar um exemplo rápido e assustador: na china, em fevereiro (e segundo mês de quarentena), o presente mais vendido do dia dos namorados foram cestas românticas cheias de papel higiênico, álcool em gel e máscaras de proteção. Não vai demorar muito para também percebemos por aqui que solidão televisionada é muito distinto de companhia. Contudo, um isolamento que dá como contrapartida a oportunidade de trocar companhia pela versão midiatizada da vida e do sofrimento alheio e próprio é algo que o Covid19 seja provavelmente um amplificador metafórico de um problema existencial profundo de nossa maneira de se relacionar produzindo versões midiatizadas de nossos sofrimentos.
Assim, somos apresentados a um vírus que viajou num mundo conectado em que as circulações de riqueza parecem não depender mais da liberdade humana. Enquanto isso, acompanhamos cada passo desta catástrofe segundo a segundo nas telas de nossos aparelhos. Como resultado subjetivo temos uma angústia social que expõe os limites cruéis de uma existência que vendeu liberdade e entregou precarização somado aos efeitos psicológicos da combinação entre isolamento físico e hiperconexão digital embotada e paranoica. Não seria arriscado dizer que é provável que os efeitos do coronavírus como pandemia tenha um tempo de vida menor do que sua capacidade de ser metáfora de nossos problemas existenciais.
No momento em que eu escrevo este texto o número de infectados pelo coronavírus no Brasil passa dos mil e o número de mortes já chegou a onze. A previsão é de que a curva brasileira tenha projeção parecida com a italiana, onde deixou de ser uma surpresa ver a notícia diária dos cadáveres ser contada na casa da centena.
Atualmente, vivo numa cidade no interior do México e a impressão é que nem os governantes, nem o povo mexicano parecem compreender a gravidade do presente. Meu gesto de me auto-quarentenar foi recebido com estranhamento pela maioria da vizinhança. Contudo, mesmo vivendo em um país estrangeiro, minha aflição vem diretamente das mensagens que recebo do Brasil e de minhas amizades brasileiras que vivem pelo mundo. É possível ver pela tela do celular como a angústia cresce no cotidiano de cada um, seja a partir de palavras muito diretas e relatos de sofrimento, seja por pequenos gestos de aflição, como o impulso moral de justificar um abraço. Foi a partir desta experiência de um cotidiano material de aparente tranquilidade e uma experiência de conexão digital que transmite sofrimento em tempo real que resolvi escrever este texto. Depois de reler o ensaio de Susan Sontag sobre as doenças como metáfora tive a ideia de como escrevê-lo.
Este não é o meu tema de pesquisa ou campo de trabalho, mais voltado as relações entre violência e segurança no estado de São Paulo. Contudo, me parece estranho que ao anunciar de uma crise civilizatória sem precedentes, nós acadêmicos pensemos ser normal a suspensão de todas as atividades, ao mesmo tempo que desejemos que nossos cotidianos de trabalho permaneçam os mesmos. Afinal, se os tempos são excepcionais e cada um deve fazer o que pode para ajudar que esta crise passe, me parece natural que eu ofereça ao mundo parte do que sei fazer enquanto intelectual, que é, basicamente, tentar dar sentido ao mundo. O mundo, agora, tem problemas mais urgentes dos que enfrentamos em nossos trabalhos intelectuais cotidianos e me parece salutar tratar nesses termos os desafios da ocasião.
Outro impulso de interromper o fluxo normal do trabalho frente a esta crise é que uma vez que os tempos se normalizarem teremos de lidar também com sequelas excepcionais. As rachaduras do desmoronamento das nossas vidas pessoais começam a aparecer: amplificação de problemas familiares, violência doméstica, falência financeira, ansiedades múltiplas. Uma quarentena é um período que coloca em suspenso boa parte das muletas que utilizamos para sobreviver ao dia a dia. Contudo, sem estas muletas também se torna mais evidente a percepção de que o vírus é um grande problema, mas que a vida que ele ameaça, quando expostas em seus termos mais crus, talvez seja tão problemática quanto.
Esta crise é uma oportunidade para demonstrarmos como o coronavírus é uma amplificação metafórica da nossa existência, que afinal, não precisamos somente de outra cura e sim de um outro modo de existir. Se não fizermos isso, se apenas trabalharmos para nos salvar e para voltar logo a vida de sempre, correremos o risco de viver o futuro próximo a partir de uma soma entre os conhecidos problema do cotidiano com os ainda desconhecidos problemas oriundos daquilo que vivemos agora.
Evandro Cruz Silva é educador popular, sociólogo e doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp.