O mito da crise fiscal
Na atual conjuntura da economia brasileira, a ampliação do déficit e sua preservação enquanto durar o quadro de recessão é a medida correta a ser adotada, tanto do ponto de vista social, isto é, do emprego e da renda, mas também do ponto de vista fiscal-financeiro. Veja no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Economistas, jornalistas e outros formadores de opinião de posição conservadora têm sido incansáveis em apregoar a inevitabilidade da crise fiscal. Segundo eles, o déficit fiscal inevitável, decorrente da pandemia, induziria a uma trajetória explosiva da dívida pública. Todavia, ressalvam, há uma tábua de salvação: o ajuste fiscal duro, com a manutenção do teto dos gastos, na pós-pandemia, quiçá acompanhado de eventuais acomodações patrimoniais como a venda de estatais e de reservas internacionais. É surpreendente a abstração de fatos e variáveis relevantes nessa postulação; provavelmente por um misto de interesse e ideologia, mas cuja consideração a põe sob forte suspeita.
Independentemente do conceito de dívida pública a ser considerado, uma constatação inicial a ser levada em conta é que para a sua trajetória ampliar déficits é mais favorável do que a não ampliação. Ou seja, por razões estritamente econômicas, o aumento dos déficits, no contexto atual, redundará numa posição da dívida/PIB, que é o critério essencial de sua sustentabilidade, menor do que aquela resultante de uma postura passiva. E as razões são: a ociosidade, o efeito multiplicador do gasto sobre o PIB e a elasticidade da arrecadação ante este último.
A ociosidade de trabalhadores e máquinas, na verdade um eufemismo para caracterizar a recessão aguda pela qual passamos, permitirá uma rápida mobilização da produção, ante o aumento de gastos públicos. Está amplamente consolidado na teoria, e nos estudos empíricos, que isso induzirá o incremento da renda via efeito multiplicador. Em situações recessivas e para gastos sociais e de investimentos este último é recorrentemente superior à unidade. Por último, o PIB incrementado dará origem a uma ampliação da arrecadação, cujo montante dependerá da elasticidade desta última ante o primeiro, sabidamente alta em estruturas tributárias muito dependentes de impostos indiretos, como a brasileira. Em resumo, amplia-se o déficit, coeteris paribus, aumenta a dívida em igual magnitude, mas o incremento do PIB e da sua parcela apropriada pela arrecadação já permite amortizar uma parte desse aumento. Ao final, com o crescimento do PIB, teremos uma relação dívida/PIB menor do que a inicial.
O raciocínio anterior mostra que, na atual conjuntura da economia brasileira, a ampliação do déficit e sua preservação enquanto durar o quadro de recessão é a medida correta a ser adotada, tanto do ponto de vista social, isto é, do emprego e da renda, mas também do ponto de vista fiscal-financeiro. Ademais, é necessário considerar que a trajetória da dívida também será atenuada pelo contexto de taxas de juros reduzidas e pela posição da taxa de câmbio.
A proposição anterior vale tanto para a dívida bruta como para a líquida. Aliás esta última é a forma mais correta de medir a dívida pública, pelo menos numa economia capitalista, na qual o crédito é um elemento constitutivo e a situação de solvência de qualquer agente econômico deve ser considerada à luz da sua posição de balanço e, portanto, líquida. No caso brasileiro – no qual a diferença entre as duas formas de medição é de 27 pontos percentuais do PIB – este argumento é reforçado pelo fato da quase totalidade dos ativos do setor público ser constituída de reservas em moeda forte.
O pensamento conservador não desiste, todavia, de acenar com a crise fiscal por meio de um argumento adicional: o de que a trajetória explosiva da dívida, decorrente do aumento dos déficits, inviabiliza reduções significativas das taxas de juros, levando, portanto, ao reforço da pior trajetória. Postula que a liquidez dessa dívida, da qual 17 pontos percentuais do PIB estão sob a forma de compromissadas, e que deverá se ampliar em razão do financiamento monetário dos déficits, poderá levar a uma fuga de capitais, ante a uma redução adicional das taxas de juros. A despeito de levantar dois aspectos relevantes – a liquidez da dívida, sobretudo da sua parcela que está sob a forma de operações compromissadas, e as possibilidades de fuga de capitais, numa economia integrada financeiramente, mas de moeda inconversível – a proposição deixa de considerar importantes fatores antagônicos.
Assim é que as massivas operações de injeção de liquidez via Quantitative Easing (QE) nas economias de moeda conversível levaram as taxas de juros para patamares negativos e com a promessa de que permanecerão nesses limites enquanto for necessário, com indicações de que assim ficarão pelo menos até o final de 2021, segundo pronunciamento do presidente do FED. No bojo dessas decisões, assistiu-se nas últimas semanas um revigoramento do ciclo de liquidez e da bolha de preços de ativos, incluindo o arrefecimento parcial da fuga de capitais para a periferia.
Diante desse quadro, é possível antever uma evolução muito mais suave da dívida pública bruta e líquida, determinadas simultaneamente pela redução da carga de juros oriunda da redução da Selic e por ganhos patrimoniais decorrentes da desvalorização do real. No quadro abaixo produzido pelo Banco Central se calcula esses impactos. Não se trata, obviamente, de negar que a redução da Selic dê origem ao desmonte de operações de carry trade, mantendo o real com viés de desvalorização, mas sem implicar uma trajetória de overshooting, típica dos momentos de fuga de capitais.
A dívida líquida do setor público (DLSP) é favoravelmente sensibilizada pela desvalorização do real, via efeito patrimonial, e pela queda das taxas de juros, via redução da sua carga. Essa é uma combinação virtuosa que deve prevalecer na atual conjuntura cujos elementos foram assinalados acima. Ou seja, muito provavelmente, enquanto durar o QE nos países desenvolvidos, as possibilidades de praticar juros muito baixos na periferia serão mantidas, abrindo espaço para uma evolução mais suave da dívida pública, mesmo no contexto, et pour cause, de déficits fiscais elevados. Certamente, há a possibilidade de agravamento da crise, ampliação das turbulências, ou mesmo o estouro da bolha, porém nessa hipótese extrema de derretimento dos mercados, pode-se e deve-se recorrer ao controle de capitais.
Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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