O movimento social britânico sai da letargia
Desde o início do ano, a resistência ao plano de austeridade se intensificou no R.U. A tensão atingiu seu ápice no dia 26 de março, quando 500 mil pessoas tomaram as ruas de Londres, numa onda de protestos que não deixa de ser surpreendente em um país cujo ardor reinvindicativo parece ter esfriado por várias décadasTony Wood
Uma onda de agitação social vem sacudindo o Reino Unido há alguns meses, e surpreende tanto pela intensidade como pela radicalização de opinião que coloca em evidência. Em novembro de 2010, o anúncio da redução drástica do orçamento destinado à educação, juntamente com o aumento substancial das taxas de matrícula na universidade, suscitou forte mobilização estudantil.1 Esses eventos rapidamente emergiram como prelúdio de um movimento maior que, aos poucos, ganhou todas as esferas da sociedade.
Na origem dessa irritação estava o plano de austeridade concebido pela coalizão de conservadores e liberal-democratas (no poder desde maio de 2010), que prevê reduzir o conjunto de despesas públicas em 80 bilhões de libras (R$ 210 bilhões) até 2014-2015, o que equivale a um corte de pouco mais de 12%. O orçamento para os serviços sociais deverá sofrer redução de 18 bilhões de libras (R$ 47 bilhões), o dos serviços públicos, 36 bilhões (R$ 95 bilhões). Em vista desses números, o aumento do imposto destinado a equilibrar a reforma parece cada vez menor na medida em que resulta, em grande parte, de um aumento de 20% da taxa de valor agregado (IVA). “Viver à custa do Estado não é mais uma opção”,2 justificou o ministro britânico da Economia, George Osborne, em setembro de 2010.
Em 22 de outubro, um editorial do Le Monde celebrou a “austeridade justa” do primeiro-ministro conservador David Cameron.3 Os britânicos se mostraram menos satisfeitos: em todo o país, a contestação se revelou em várias frentes. Enquanto os estudantes se reuniam diante do Parlamento, uma ampla coalizão se mobilizou contra a proposta de venda das florestas do Estado, conseguindo fazer o governo recuar em fevereiro.
Desde o início deste ano, a resistência ao plano de austeridade se intensificou. No âmbito local, as tentativas de bloquear algumas privatizações foram coroadas com sucesso, como em Douvres. Em março, a esmagadora maioria da população dessa cidade costeira do condado de Kent votou contra a venda do porto. Enquanto isso, em todo o país, os sindicatos do serviço público, estudantes e diversas associações locais uniam forças. Em Leeds e nos bairros londrinos de Haringey e Lambeth, eles ocuparam as subprefeituras para impedir os conselhos municipais de votar os cortes orçamentários dos serviços públicos.
A tensão atingiu seu ápice no dia 26 de março, quando cerca de 500 mil pessoas tomaram as ruas de Londres. Nessa data, a manifestação organizada por iniciativa de uma central intersindical nacional coincidiu com outros protestos convocados por uma multiplicidade de agentes: estudantes, aposentados, anarquistas, socialistas… Ao mesmo tempo, os membros do coletivo UK Uncut – que faz campanha contra a evasão fiscal praticada por grandes grupos financeiros – ocupou várias lojas, entre elas a muito emblemática mercearia Fortnum and Mason: uma maneira de convidar seu proprietário, o fundo Whittington Investiments, a pagar os 40 milhões de libras (R$ 106 milhões) que, segundo eles, deve ao Tesouro do Reino Unido. Um estudo realizado pela consultoria independente Research UK estima que a fraude no imposto, praticada pelas empresas, chegaria a 16 bilhões de libras (42 bilhões de euros) por ano, o equivalente a metade dos valores efetivamente pagos.4
O retorno da contestação social
Uma onda de protestos como essa não deixa de ser surpreendente em um país cujo ardor reinvindicativo parece ter esfriado por várias décadas. A decisão de Margaret Thatcher (então primeira-ministra) de reprimir a greve dos mineiros de 1984-1985 tinha encerrado um longo ciclo de rebelião, iniciado dez anos antes – e que alcançara seu apogeu em 1978-1979, durante o “inverno do descontentamento”.5 Desde então, o Reino Unido experimentou apenas dois episódios de protesto em massa: as “revoltas da poll tax” (quando Margaret Thatcher tentou introduzir um novo imposto sobre os serviços públicos), em 1990, e a mobilização contra a invasão do Iraque em 2003. De resto, os movimentos sociais têm sido particularmente discretos, em especial se comparados àqueles que a França, a Itália ou mesmo a Grécia conhecem com regularidade.
A extensão das restrições previstas explica em parte o retorno da contestação social. Rowena Crawford, economista do Instituto de Estudos Fiscais (IFS, na sigla em inglês), diz que os cortes no orçamento prometidos pelo ministro da economia, George Osborne, se anunciam como “as mais drásticas medidas desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.6 Esse novo ataque aos serviços públicos está em consonância com as políticas de privatização postas em prática por Margaret Thatcher e pelo trabalhista Tony Blair. Tais reformas sucessivas têm fragmentado e minado as bases da cobertura universal estabelecida pelos criadores do Welfare State. Hoje, muitos britânicos acreditam que a etapa transposta por Cameron pode ser fatal para seu sistema de proteção social e que é hora de agir para evitar seu desaparecimento puro e simples. É com isso em mente que, em Lewisham, subúrbio de Londres, e em Edimburgo, os manifestantes encenaram funerais para alertar a opinião pública. E quando Cameron fala em uma “Big Society” (literalmente “grande sociedade”) capaz de assumir o controle do Estado e minorar suas fraquezas, alguns – e são muitos – ouvem outra mensagem: a promessa de novos ataques aos direitos da maioria em favor de uma minoria privilegiada. Esta última, aliás, se encontra amplamente representada no novo gabinete, com 18 milionários entre seus 29 membros.7
O salto do movimento social britânico encontra também explicação num contexto difícil da economia global: ele combina uma crise sistêmica e uma recessão prolongada. No Reino Unido, a participação do setor financeiro no Produto Interno Bruto (PIB) cresceu de 22% para 32% entre 1990 e 2007 (contra um aumento médio de 24% para 28% nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico [OCDE]).8 Desde o colapso dos mercados, em setembro de 2008, o crescimento do PIB britânico luta para se recuperar: era de apenas 0,5% no primeiro trimestre de 2011; oficialmente, o país tem 2,5 milhões de desempregados. Em suma, a opinião pública se mostra cada vez mais cética quanto aos pretensos benefícios do capitalismo financeiro. Pelo menos era isso o que sugeria o impacto das manifestações contra a evasão fiscal, raras em outros países.
O elevador social está quebrado e as disparidades de renda atingem seu nível mais importante dos últimos cinquenta anos. De acordo com dados da OCDE, em 1980 a renda dos 10% mais ricos da Grã-Bretanha equivalia a pouco menos de três vezes a renda dos 10% mais pobres. Em 2008, esse índice era de 3,6. O coeficiente de Gini, que mede a desigualdade,9 está agora em 0,33, contra 0,28 em meados da década de 1970. A população britânica se mostra ainda mais sensível ao aspecto abertamente desigual do programa de seu governo, à medida que ele tenta fazê-la pagar (sobretudo os mais pobres) pela salvação da City (centro financeiro londrino): uma “dívida” de 955 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em socorros, garantias e outras isenções de pagamentos. Na conferência do Partido Conservador, em 2009, Osborne – que ainda não estava no governo – afirmou, falando da crise financeira: “Estamos todos no mesmo barco”. Hoje, essa lembrança provoca risos.
Mesmo após treze anos de governo trabalhista, grande parte da população continua nutrindo um sentimento de desconfiança em relação ao Partido Conservador, sempre associado ao legado de Margaret Thatcher. É verdade que Tony Blair assumiu a responsabilidade pelo desenvolvimento maciço das finanças, a partir do final dos anos 1990, e seu sucessor, Gordon Brown, o do salvamento da City, em 2008. Mas é sobre a coalizão de conservadores e liberal-democratas que recai a iniciativa das medidas de austeridade. Sob essas condições, grande parte da centro-esquerda e das forças progressistas se permite manifestar sua oposição com mais energia do que o faria sob um governo trabalhista – em especial os sindicatos que permanecem, em sua maioria, filiados ao Partido Trabalhista, apesar da falta de interesse deste pelas classes populares. O último orçamento proposto por Brown, em abril de 2010, previa cortes de 52 bilhões de libras (R$ 138 bilhões): a confederação sindical Trade Union Congress (TUC) teria lançado um movimento de mobilização como este se Brown tivesse ganhado as eleições em maio de 2010?
O fator geração também pode ter tido seu papel. Assistimos ao surgimento na cena política de jovens mais radicais que seus predecessores. Os estudantes de hoje cresceram em uma sociedade dominada pela repercussão da “guerra contra o terror” e dos conflitos no Afeganistão e no Iraque: um clima muito mais dividido politicamente que aquele que prevalecia nos anos 1990, fase triunfal do “pensamento único” neoliberal.
Desde o início dos anos 2000, os movimentos de alterglobalização/alterglobalizadores têm aparecido. Aos poucos, sua presença vem se intensificando durante os desfiles anuais do 1º de maio. Foi, aliás, para enquadrar esses ativistas de novo tipo que a polícia britânica desenvolveu técnicas inéditas para conter multidões. Os estudantes de hoje não conheceram um sistema diferente do New Labour. No final da administração Gordon Brown (2007-2010), alguns deles, hostis aos conservadores, se voltaram para os liberal-democratas nas eleições de maio de 2010 – mas suas esperanças se viram frustradas com a formação da coalizão e a ascensão do dirigente liberal-democrata Nicholas Clegg ao cargo de vice-primeiro-ministro. Essa geração está em uma posição inédita: ela rejeita firmemente as três principais forças políticas do país, o que a leva a optar quase sistematicamente por táticas extraparlamentares que os mais velhos tinham deixado para trás.
Embora a oposição ao governo tenha começado a tomar corpo durante o verão (do hemisfério norte), foi a revolta estudantil de dezembro de 2010 e sua determinação em ocupar as ruas que galvanizou outros setores da sociedade civil: “Os estudantes britânicos deram um eletrochoque no movimento sindical. Sua organização contra as taxas de matrícula na universidade mostrou-se muito mais eficaz para a mobilização política que centenas de debates, conferências e resoluções”,10 explicou Len McCluskey, líder do sindicato Unite, em um editorial de 20 de dezembro de 2010. Lançando suas próprias ações ou associando-se com outros setores no contexto de uma formação mais ampla (como a Coalizão para a Resistência, fundada em agosto de 2010), os sindicatos, especialmente os que representam o funcionalismo público, continuam sendo a maior força de oposição organizada no país. Mas os movimentos estudantis são dinâmicos, e uma infinidade de grupos sem afiliação definida se forma para encaminhar reivindicações específicas e conduzir ações pontuais, como no caso das campanhas contra a evasão fiscal.
Em outubro de 2010, um pequeno punhado de ativistas de Londres organizou uma manifestação para denunciar a evasão fiscal nas lojas da empresa de telecomunicações Vodafone, dando origem à organização UK Uncut. Desde o início, eles salientaram a ligação entre o caráter severo do programa de austeridade do governo e a leniência em relação às empresas. A partir daí, o nome UK Uncut vem sendo usado por outros grupos em todo o país, sem que desponte uma autoridade central ou um sistema de afiliação formal. Surpreendente, essa combinação de ação direta e de reivindicação reformista parece caracterizar as novas formas de protesto no Reino Unido.
Como a coalizão governista confiou a prática do seu “rigor” às autoridades locais, é a estas que cabe fazer cortes em todas as frentes de despesas – às vezes até um quarto do orçamento. Não é de admirar que seja nesse nível que se enraíza mais vigorosamente a resistência. Os comitês locais para a proteção dos serviços públicos proliferam, principalmente nos grandes centros urbanos. Aí é possível encontrar membros do Partido Trabalhista associados a organizações comunitárias e a ativistas independentes.
A organização Salve Nossos Serviços – em inglês, Save Our Services (SOS) – de Lambeth, na periferia de Londres, lançou a ideia da ocupação do prédio da subprefeitura, em fevereiro de 2011. A SOS Lambeth reúne, em partes aproximadamente iguais, ativistas sindicais locais e representantes de estruturas de bairro (associações de aposentados, de deficientes físicos ou culturais), mas a alquimia é variável. Em Leeds, uma associação similar (Leeds contra os Cortes) abriga ainda ativistas sindicais; eles são minoria no seio da Aliança contra os Cortes, em Exeter. Em Southport, Kat Sumner, uma dona de casa com quatro filhos, e Nina Kille, jornalista, mãe de três filhos, levam adiante a Coalizão contra a Austeridade – mobilizadas contra os cortes nos abonos de família e nos serviços públicos locais. E, cada vez mais, se forjam ligações com os movimentos estudantis.
Esses diferentes grupos destacam a heterogeneidade de sua base social, cimentada pela extensão das reduções orçamentárias: do sistema de saúde (National Health Service, NHS) às bibliotecas municipais, da habitação às áreas de recreação para crianças, dos transportes públicos à assistência às vítimas de violência doméstica etc. Além da ameaça imediata que pesa sobre os serviços públicos, as preocupações também existem em longo prazo: “O custo real, financeiro e social da maioria dos cortes orçamentários só se tornará visível depois que este governo terminar”, prevê Sumner.
Dispersar a cólera para contê-la
E qual o ponto fraco dessa oposição à austeridade orçamentária? Sua fragmentação. A distribuição geográfica dos cortes é desigual. Ela reflete desequilíbrios na distribuição da riqueza e do desemprego no país. O governo Blair tinha compensado a contínua destruição de empregos industriais desde os anos 1970, particularmente no Norte, por meio de um reforço do serviço público; muitos desses cargos públicos serão eliminados. E para as pessoas envolvidas, as chances de encontrar um emprego são escassas. É precisamente nesses grupos sociais e nessas áreas geográficas que o governo concentra a austeridade, fazendo a aposta de que a fragmentação permitirá dispersar a irritação e contê-la.
Hoje, o desafio para os que fazem oposição é a colocação em rede das reivindicações locais ou específicas com uma agenda nacional. Nesse sentido, a recente decisão de Cameron de fazer uma “pausa” na sua reforma geral do NHS pode indicar que o governo tem medo de deixar um tema tão unificador ocupar por muito tempo o primeiro plano do noticiário. Evitar que a recuperação seja feita por um Partido Trabalhista oportunista também será um desafio significativo. O líder trabalhista, Edward Miliband, participou da manifestação de 26 de março; em 2008, ele era ministro do governo que efetuou o salvamento dos bancos do país.
Trata-se de obstáculos familiares/domésticos. Mas os acontecimentos ao longo dos últimos seis meses sugerem uma retomada da mobilização e da criatividade no seio das forças de contestação que poderia permitir superar essas barreiras. E fazer de 2011 o ano da recuperação no Reino Unido.
Tony Wood é redator-chefe adjunto da revista britânica New Left Review.