O mundo segundo Donald Trump
“A América primeiro!” Martelado por Trump, o slogan sugere que esta será sua política externa. Uma mistura de unilateralismo – desdenho pelos acordos internacionais –, brutalidade – aumento dos orçamentos militares – e mercantilismo – subordinação dos demais objetivos ao interesse comercial norte-americano. E uma boa dose de imprevisibilidade…
É difícil saber precisamente com o que vai se parecer a política externa de Donald Trump. O próximo presidente dos Estados Unidos não detalhou suas intenções nem em documentos escritos nem em discursos. Muitos lhe atribuem uma postura pouco informada ou incoerente, alimentada por manchetes da imprensa e por sua experiência como homem de negócios. Algumas entrevistas ou propostas de campanha e, mais recentemente, a escolha dos membros de sua administração permitem enxergar a questão com um pouco mais de clareza. Trump tem uma visão, talvez não muito amadurecida, mas relativamente coerente, do mundo e do lugar que seu país ocupa. Ela contrasta com a da maioria dos especialistas e líderes políticos respeitados de Washington.
Estes, como qualquer um que more na capital pode perceber, veem círculos concêntricos que se espalham a partir da Casa Branca. O Canadá, o Reino Unido e os outros aliados anglófonos se situam num primeiro anel; os outros membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Japão, a Coreia do Sul e Israel, num segundo; os parceiros econômicos e militares de longa data, como Taiwan, Filipinas e Arábia Saudita, num terceiro, e assim por diante. Na parte de fora desse sistema de relações de dependência, encontram-se os rivais e adversários: a Rússia, a China, o Irã e a Coreia do Norte. Durante décadas, a política externa norte-americana procurou reforçar os laços com e entre os países amigos, e enfraquecer ou isolar os excluídos. Por vezes, isso implica entrar em guerra para proteger aliados periféricos por medo, real ou imaginário, de que os aliados mais próximos se encontrem em perigo.
Trump, que nunca passou por muito tempo em Washington, não partilha dessa visão comum a republicanos e democratas. Homem de negócios nova-iorquino com interesses no mundo inteiro, ele é estranho a toda essa concepção estruturada que atribui papéis definidos aos aliados, amigos e inimigos. Aproxima-se, portanto, da abordagem de Rex Tillerson, o líder da ExxonMobil que acaba de ser escolhido conselheiro de Estado. Os dois homens percebem o mundo como uma vasta selva onde a concorrência é a regra e onde as oportunidades e perigos podem se apresentar em todos os lugares, independentemente da lealdade dos países envolvidos ou de sua hostilidade presumida em relação a Washington.
De acordo com essa ótica, os Estados Unidos não são o centro de uma família de países dependentes que eles teriam por missão proteger, mas um dos poderes que lutam para assegurar posições e lucros num tabuleiro planetário concorrencial. Assim, segundo essa concepção, o objetivo da política externa é promover seus interesses e, consequentemente, contrapor-se àqueles que buscariam garantir para si uma vantagem à sua custa. Cada país será, portanto, avaliado segundo sua contribuição para os interesses norte-americanos, e Trump espera utilizar os instrumentos de que dispõe para recompensar os parceiros e castigar os adversários. Os primeiros podem esperar ser recebidos pela Casa Branca e obter propostas de acordos comerciais vantajosos. Os segundos deverão pagar direitos alfandegários desencorajadores, resignarem-se a ser diplomaticamente isolados e, em caso de provocações consideradas inadmissíveis, sofrer uma intervenção armada.
Para se manter nesse caminho livre de qualquer apego a grandes princípios, Trump rodeou-se de uma equipe capaz de recompensar a colaboração com arranjos interessantes (Tillerson, no Departamento de Estado) ou empregar a força contra inimigos designados (o general Michael Flynn, como conselheiro de segurança nacional, e o general James Mattis, na Secretaria de Defesa). A fim de assegurar a credibilidade de uma eventual opção militar, ele recomendou uma expansão maciça das Forças Armadas – em particular da Marinha, a mais bem adaptada às demonstrações de força e operações de grande impacto.1
Como se dará a transformação em música dessa partitura nas diversas regiões do mundo? É preciso começar pelo Oriente Médio e pela guerra contra a Organização do Estado Islâmico (OEI). Com efeito, desde o início, Trump afirmou que seu objetivo número um seria “destruir a OEI” e esmagar qualquer outra manifestação do “terrorismo do islã radical”. “Tão logo eu assuma o cargo”, declarou em 7 de setembro de 2016, na Filadélfia, “convidarei meus generais a submeterem a mim em trinta dias um plano para vencer e destruir a OEI.”2
Em larga medida, a guerra dos Estados Unidos contra esse grupo é percebida como um problema de política interna. A determinação de destruí-lo deve-se muito ao medo de atentados em solo norte-americano e à hostilidade geralmente inspirada pelo “islã radical”. Esse combate, anunciou Trump, não terá meias medidas: todos os recursos de que o Exército disponha serão consagrados a uma impiedosa campanha de aniquilação; se pais e civis associados à OEI pagarem o preço, pior para eles.
A frágil lua de mel com a Rússia
Ainda que esse enfrentamento envolva sobretudo o Exército, ele comporta importantes implicações diplomáticas. Em primeiro lugar, é preciso informar a quem Washington deverá pedir que contribua para a erradicação da OEI. É nesse quadro que Trump imagina uma possível aliança com Vladimir Putin. “Não seria legal se juntar com a Rússia para esmagar a OEI?”, perguntou em 25 de julho de 2016, num comício na Carolina do Norte.3 Ele sugeriu também uma retomada das relações com Damasco: “Não gosto muito de Al-Assad, mas ele mata a OEI”, declarou no segundo debate televisionado que o colocou diante de Hillary Clinton, em 9 de outubro de 2016. Em contrapartida, os presidentes russo e sírio poderiam obter algumas vantagens: para o primeiro, o reconhecimento de fato da anexação da Crimeia pela Rússia e a suspensão das sanções; para o segundo, a interrupção de qualquer assistência aos rebeldes que lutam contra seu regime.
Trump sem dúvida tentará fazer arranjos desse tipo com os outros atores importantes da região. Pode-se imaginar, por exemplo, um acordo rápido com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, com os turcos aumentando sua pressão sobre a OEI em troca de um menor apoio norte-americano aos curdos da Síria – que, até o momento, se mostram a força mais eficaz na ofensiva terrestre contra os jihadistas. Erdogan foi um dos primeiros chefes de Estado a felicitar Trump após sua vitória, e os dois homens teriam tratado de um reforço na cooperação contra o “terrorismo”. É igualmente concebível que Trump facilite a extradição do religioso turco exilado Fethullah Gulen, considerado por Ancara o responsável pelo golpe de Estado abortado em julho de 2016.4
Em contrapartida, as relações de Washington com a Arábia Saudita correm o risco de sofrer com a intensificação da ofensiva norte-americana contra a OEI. Seus dirigentes, como os da Arábia Saudita, são sunitas, como a maior parte das possíveis futuras vítimas de bombardeios aéreos contra as posições da organização. Simetricamente, as forças que combatem a OEI em campo incluem uma proporção elevada de xiitas, quer se trate, no Iraque, das milícias apoiadas pelo Irã ou, na Síria, dos alauitas e de seus aliados. Aos olhos de Riad, a sobrevivência do regime de Al-Assad significa o triunfo do Irã, seu principal rival no Golfo. Uma rápida degradação da relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita parece cada vez mais provável quando se pensa que Trump deve insistir em fazer o país pagar um alto preço pela proteção que recebe. “Os Estados do Golfo não têm outra coisa senão dinheiro”, lançou, num desses resumos antropológicos nos quais é mestre, em um comício de 6 de dezembro. “Já nós não o temos; temos é US$ 20 trilhões em dívidas…”
As desventuras de Riad não são necessariamente um alento ao Irã, que, à primeira vista, tem muito a temer com a posse de Trump na Casa Branca. Ao longo de sua campanha, este sempre qualificou o acordo com Teerã sobre energia nuclear – oficialmente chamado de “plano global de ação conjunta” – de “pior acordo de toda a história”. E prometeu “desmantelá-lo”. O general Flynn, novo conselheiro de segurança nacional, é tido como um adversário intratável do Irã e sem dúvida fará pressão sobre ele para que mantenha seu engajamento.5 No entanto, a prioridade em esmagar o mais rápido possível a OEI poderia prevalecer sobre a vontade de aplicar sanções ao Irã. Além disso, o acordo nuclear conta como signatários a França, a Alemanha, o Reino Unido, a China e a Rússia, que não manifestaram nenhum desejo de rediscuti-lo.
As relações entre Washington e Moscou podem melhorar desde os primeiros dias da administração Trump. O novo presidente expressou várias vezes sua admiração por Putin e propôs encontrá-lo com o objetivo de melhorar relações bilaterais atualmente muito degradadas. Após uma conversa entre os dois, o Kremlin informou que eles haviam entrado em acordo para “normalizar as relações e levar adiante uma cooperação construtiva com base no maior leque possível de questões”.6 A escolha de Tillerson como secretário de Estado se explica em parte pelas boas relações que o chefe da Exxon estabeleceu há muito tempo com Moscou por ocasião de joint ventures entre a companhia petrolífera e as empresas russas que atuam no Ártico e na Ilha Sacalina. No entanto, seria imprudente prever uma lua de mel sustentável nas relações norte-americano-russas. A preocupação principal do presidente eleito é promover os interesses dos Estados Unidos, o que, na cabeça dele, exclui qualquer acordo passível de ser interpretado como uma renúncia à sua posição hegemônica.
De resto, Trump está determinado a reforçar o Exército, ainda que só o orçamento das forças navais corresponda ao dobro do total das despesas militares russas. Essa intenção não exerce nenhum encanto sobre Putin. E, se algumas das coisas preconizadas pelo próximo presidente dos Estados Unidos, como o reforço da Marinha, parecem dirigidas principalmente contra a China, outros projetos podem deixar a Rússia em estado de alerta. Em particular o de modernizar a frota norte-americana de bombardeiros estratégicos e adquirir um “sistema de última geração de mísseis defensivos”. Tais iniciativas inquietam Moscou sobremaneira, porque a Rússia conta principalmente com seu armamento nuclear para dissuadir qualquer ação militar do Ocidente contra ela. Aliás, em seu discurso anual sobre o estado da nação, em 1º de dezembro, Putin não dissimulou sua preocupação: “Gostaria de ressaltar que tentativas de romper a paridade estratégica são extremamente perigosas e podem levar a uma catástrofe planetária”.7
Desinteresse pela Europa
Em toda a campanha, Trump acusou os chineses de terem recorrido a práticas comerciais injustas em detrimento dos Estados Unidos e insultarem o presidente Barack Obama ao dar início à construção de uma base militar no Mar da China Meridional. “Os chineses zombam de nós”, declarou a jornalistas do New York Times em 26 de março. “Eles não têm nenhum respeito por nosso país e nenhum respeito por nosso presidente.”
O novo ocupante da Casa Branca prevê, assim, que as relações com Pequim vão se tornar tensas. Isso poderia desembocar num conflito armado? Quando lhe perguntaram se usaria a força para expulsar os chineses de suas bases no Mar da China Meridional, ele respondeu: “Talvez… Mas temos um grande poder econômico sobre a China: o poder do comércio”. Sem entrar em detalhes, sugeriu que preferia usar os direitos alfandegários e outros mecanismos comerciais. Sua ligação telefônica para a presidenta de Taiwan, Tsai Ing-wen – primeira conversa conhecida entre um presidente norte-americano, ou um presidente eleito, e um dirigente daquele país depois do rompimento de relações diplomáticas com a ilha em 1979 –, pode ser interpretada no mesmo sentido: uma ameaça de escalada a fim de convidar Pequim a aceitar certas exigências.
No entanto, Trump não ignora que em algumas questões essenciais vai precisar da colaboração dos dirigentes chineses. Em particular no caso da Coreia do Norte – uma das questões prementes da segurança nacional que ele deverá enfrentar a partir de sua posse. Ainda que muito isolados internacionalmente, os dirigentes norte-coreanos parecem ter tido sucesso em expandir seu arsenal nuclear e desenvolver mísseis balísticos capazes de atingir o Japão ou os territórios norte-americanos do Pacífico. Os chineses, que parecem temer o colapso do regime de Kim Jong-un (passível de precipitar tanto o afluxo no norte da China de centenas de milhares de refugiados como a unificação da Coreia sob tutela norte-americana), lhe fornecem por enquanto um apoio material decisivo. Se Trump espera forçar Pyongyang a congelar seu programa nuclear, vai precisar que Pequim continue a reduzir seu comércio com a Coreia do Norte. “A China deveria resolver esse problema para nós”, soltou durante seu primeiro debate com Hillary Clinton. Mas um arranjo como esse implicará negociações com Pequim e, portanto, concessões mútuas.
A maneira pela qual o futuro presidente parece vislumbrar as relações com a Europa e a Otan desvela nitidamente a separação entre suas concepções e as de seus predecessores. Enquanto estes viam na Aliança Atlântica a pedra angular da política de segurança norte-americana e a Europa como um baluarte da ordem liberal, ele volta as costas a essa postura. A seus olhos, a Otan se mostrou ineficaz na guerra mais importante dos tempos atuais, aquela travada contra o “terrorismo islâmico radical”. E a Europa, como entidade política, lhe parece desprovida da capacidade prática de colaborar para a defesa dos interesses vitais dos Estados Unidos. Ela merece assim menos atenção que potências como a Rússia e a China, mais ativas no grande jogo mundial.
Em conversa telefônica com o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, em 18 de novembro de 2016, contudo, Trump teria reafirmado a “importância persistente” da Otan; mas, depois, não forneceu nenhuma confirmação. E nenhuma de suas indicações para cargos militares de responsabilidade parece assinalar uma paixão particular pelo teatro de operações europeu. O interesse que a Aliança Atlântica inspira no próximo morador da Casa Branca parece se resumir a duas preocupações: impor aos membros uma contribuição financeira suplementar para a defesa comum e exigir que eles se consagrem prioritariamente à guerra contra a OEI. As outras questões, como a defesa do “flanco oriental” europeu contra um eventual ataque russo, aparentemente não chamam atenção de Trump, que parece pensar que, no tabuleiro mundial, a Europa constitui apenas um foco secundário de tensão. Sendo assim, ele só vai se preocupar com ela se interesses essenciais forem ali ameaçados. Isso, afinal, resume bem a linha de conduta do próximo presidente. “A América primeiro”, e todos os outros países apreciados em função de um único critério: eles representam um trunfo ou um obstáculo para a realização dos objetivos norte-americanos fundamentais?
*Michael Klare é professor na Hampshire College, em Amherst (Estados Unidos), e autor de The Race for What’s Left. The Global Scramble for the World’s Last Resources [Corrida pelo que sobrou. A disputa global pelos últimos recursos do mundo], Metropolitan Books, Nova York, 2012.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}